Ilha do Combu vira vitrine de empreendedorismo com ecoturismo em alta
Do transporte fluvial ao restaurante familiar, o turismo tem mudado a paisagem econômica e social da Ilha do Combu, em Belém, e feito florescer o empreendedorismo local.
A travessia até a Ilha do Combu, em Belém, dura menos de dez minutos. Mas a distância entre a realidade de dez anos atrás e a que se vê hoje é de anos-luz. Há uma década, a renda das famílias ribeirinhas se sustentava, majoritariamente, na pesca e no açaí, colhido na força das próprias mãos. Hoje, com o crescimento do turismo e da visibilidade ambiental, pequenas embarcações, restaurantes, chalés e centros de vivência movimentam não só a economia da região, mas também os sonhos de quem mora ali. Em plena Amazônia paraense, o turismo comunitário virou alternativa de renda e um símbolo de resistência — e reinvenção.
De acordo com o Boletim de Inteligência de Mercado 2023, publicado pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas no Pará, Sebrae, esse crescimento é confirmado pelos números: o total de estabelecimentos na Ilha do Combu teve um aumento de mais de 800% em uma década, entre 2010 e 2020, quando foram registrados 32 empreendimentos na região.
No movimento pós-pandêmico, o Combu se consolidou como um ponto obrigatório para quem visita e quem mora na capital paraense. Em 2023, o número de estabelecimentos já chegou a 60, um aumento de 87,5% em apenas 3 anos.
Travessia abre as portas da ilha
Para entender a transformação econômica da Ilha do Combu, é preciso começar pelas águas do rio. Há 10 anos, nasceu a Coopertrans — cooperativa de transporte fluvial formada por moradores das ilhas. “A gente começou com 20 cooperados e muita luta. Hoje somos 52”, conta Deborah Vieira, gerente financeira da cooperativa e também do terminal fluvial que dá acesso ao Combu. Segundo ela, que é moradora da ilha Murutucu, a renda gerada pelas travessias representa 80% da renda das famílias dos cooperados.
Duas cooperativas se revezam semanalmente no transporte de passageiros para a ida do Combu. Em 2024, uma delas - Coopertrans Combu - contabilizou 75.109 passageiros em suas semanas de operação.
Mais do que isso, a atividade deu novo fôlego à juventude da região: “Empregamos muitos jovens, que antes não tinham essa dinâmica. Eles conseguem tirar carteira, trabalhar, construir seus sonhos aqui mesmo”, diz Deborah, com orgulho. A cooperativa também deu agilidade à vida cotidiana: quem estuda ou faz compras na cidade hoje conta com transporte regular. Mas é com o turismo que o faturamento cresce.
“Comparado a cinco anos atrás, posso dizer que o fluxo de turistas dobrou”, afirma a diretora do terminal da Ilha do Combu, destacando uma transformação significativa na movimentação da região. Esse aumento no número de visitantes reflete uma tendência clara de crescimento do turismo local, que tem impulsionado o surgimento de novos negócios e a expansão da infraestrutura na ilha.
Henrique Trindade, de 26 anos, é um desses jovens. Trabalha desde 2017 como barqueiro e ressalta que o aumento da demanda pela travessia beneficiou não apenas a ele, mas diversas outras pessoas da comunidade, gerando empregos e ajudando a movimentar a economia local. “A gente não pode trabalhar sozinho, precisa chamar ajuda, e com o aumento da demanda, o trabalho já beneficia muitos, tanto na travessia quanto nos restaurantes da região”, explica.
Henrique conseguiu comprar sua própria lancha há dois meses, depois de economizar por anos. “É gratificante ter algo meu. Com a alta na demanda, isso virou um extra que ajuda muito não só a mim, mas aos amigos, às famílias. O turismo deu oportunidade pra muita gente”, diz.
Segundo ele, em dia de grande demanda como os domingos, cada barqueiro faz cerca de 6 a 8 viagens, considerando ida e volta. Em cada um dos trechos transportando em média 30 passageiros por viagem. Ou seja, em um único dia intenso de trabalho, o barqueiro pode transportar até 240 passageiros.
E quanto ao rendimento disso, Henrique revela que em meses de ‘baixa temporada’, quando Belém passa pelo inverno amazônico, é possível lucrar de R$ 3.000 a R$3.500. “De junho a agosto, todo dia é domingo. Dá pra fazer até R$ 5.000”, detalha.
Viver e experimentar a amazônia em alta
Se as lanchas movimentam o corpo da ilha, a alma está nas experiências. Charles Teles, morador da região de Periquitaquara, fundou há seis anos a Ygara Turismo, um espaço de vivências e loja colaborativa com artesanato local. Começou com peças feitas por ele e a família; hoje, expõe criações de mais de 20 artesãos de diversas ilhas.
“Percebemos que tínhamos muito a mostrar: vivência do açaí, do chocolate, banho de cheiro, trilha na floresta... tudo isso tem valor”, explica Charles. Desde o anúncio de que Belém sediará a COP-30, o interesse cresceu 80%, segundo ele.
Com esse interesse pela experiência ribeirinha, o turismo virou o ganha-pão, como ele mesmo intitula, da família: “Hoje em dia a gente não vive só da loja, vive das experiências. É o que nos sustenta. O turismo é nosso ganha-pão”, revelou.
Além disso, Charles conta, com orgulho, como é fazer parte desse ciclo colaborativo de fomento ao turismo e artesanato amazônico. Ao valorizar o que é local, ele fortalece não só sua família, mas outras 20 — um elo da chamada bioeconomia, em que o conhecimento tradicional se transforma em produto turístico sustentável. “Temos artistas aqui das ilhas próximas e até de lugares mais distantes, como por exemplo lá Santarém. Tem gente de Barcarena, Outeiro, Mosqueiro e Icoaraci”, contou.
Respeito pela natureza
Há 43 anos, Dona Prazeres mantém o restaurante, fundado por seu pai e tio. Ela conhece de perto os altos e baixos de empreender na ilha. Nos anos 80, sem energia elétrica nem telefone, manter o restaurante exigia planejamento cirúrgico: “Não podia ter nada nem faltar, porque não tinha como armazenar. Tudo tinha que ser muito bem organizado”.
Hoje, o restaurante é uma referência no Combu com práticas sustentáveis. Lá são utilizados biodigestores para tratar resíduos orgânicos e gerar gás e biofertilizante. Composta resíduos vegetais e reutiliza óleo de cozinha para produzir sabão e sabonete. Para a responsável pelo restaurante, isso é o que mantém o sucesso do empreendimento.
Em 2018, o estabelecimento fez a troca de garrafas de água por copos reutilizáveis: “Só nesse primeiro ano, deixamos de colocar no ambiente mais de 5.000 garrafas plásticas. Imagine até hoje, o quanto conseguimos livrar o meio ambiente?”.
Prazeres acredita que os turistas de hoje buscam por isso: turismo consciente. “Percebo que eles procuram por uma experiência na natureza mas que seja de forma pensada e respeitosa”, disse.
Formada em turismo, Prazeres acredita no potencial transformador da atividade, mas faz um alerta: “A gente precisa de regras. A ilha não tem plano de manejo publicado nem estudo de capacidade de carga. O turismo sem ordenamento pode trazer mazelas. Mas com cuidado, ele muda vidas.”
Ela sabe do que fala. O restaurante, que já foi 100% operado por moradores da ilha, hoje tem metade da equipe formada por pessoas da cidade. Mas ela explica a evasão: “isso porque muitos da ilha abriram seus próprios negócios. O que é maravilhoso. Antes era a gente que ia trabalhar na cidade. Hoje é a cidade que vem buscar emprego aqui”.
Hospedagem também é opção
A hospedagem também ganhou força. Muitos espaços começaram como pontos de apoio e hoje oferecem pacotes completos, com experiências personalizadas. A lógica do turismo na ilha é comunitária e territorializada. Aqui, o pertencimento é ativo: os moradores são anfitriões, guias, cozinheiros, produtores e gestores dos próprios negócios.
Um dos exemplos é o empreendimento de Paulo Henrique Pereira, dono de um chalé com hospedagem e restaurante. Quase 90% da equipe é formada por moradores da ilha, e os que ainda 'não estão prontos' para o trabalho passam por treinamentos gratuitos, feitos em parceria com ONGs. “Se não conseguimos contratar, ao menos deixamos um legado. Essa é a ideia”, diz.
O projeto nasceu da visão de um grupo que queria unir sustentabilidade e impacto social. Mas esbarra, como outros empreendedores locais, na infraestrutura. “Água potável, energia e internet ainda são desafiadores. Estamos tentando tocar o nosso negócio com base em produção local e autossuficiência, mas o custo é alto”, diz Paulo.
Ainda assim, ele acredita que o momento é de virada. “Em pouco tempo, tivemos um salto imenso. Precisamos treinar a população para captar recursos, entender as leis. É uma mudança de cultura. Estamos no início, mas é assim que começa”, comentou.
A hospedagem de Paulo começou com um trapiche, que recebia pessoas que passavam de lancha e outros veículos. Conforme foram entendendo a necessidade do público, foi criada a opção de hospedagem. Hoje, além da estadia, oferece opção day-use, para reuniões e almoços. “As pessoas procuram viver uma experiência diferente, fazer um almoço de família diferente. Daí surgiu a ideia”, finalizou.
Apoio
Mesmo com os obstáculos para concessão de crédito para muitos empreendedores do Combu, que abriram seus negócios com recursos próprios, o estado com a parceria de inciativas como as do Sebrae tem buscado caminhos para tornar o financiamento uma realidade.
“A informalidade, a ausência de CNPJ, endereço formal ou certidões não são obstáculos ignorados por nós — pelo contrário. Temos atuado com estratégias que respeitam a realidade local e ajudam esses empreendedores a acessar políticas públicas, programas de crédito e regularização de forma progressiva”, afirma Péricles Carvalho, analista técnico do Sebrae/PA e gestor estadual de turismo.
Além disso, quanto ao fomento financeiro, a Setur alega que existe uma linha de crédito disponível para esse perfil de empreendedor: "O Fundo Geral do Turismo (Fugentur), voltado a empreendedores do setor”.
Péricles destaca que, muitas vezes, o mercado financeiro ainda não está preparado para as particularidades desses negócios, o que exige articulação com instituições parceiras. “Nosso papel é garantir que o crédito seja não apenas acessível, mas útil e sustentável — e que esses negócios continuem crescendo com autonomia, sem perder sua essência amazônica”, completa.
Ainda segundo a Setur, a Ilha do Combu está inclusa nas estratégias de promoção da capital paraense, como parte dos atrativos do ecoturismo e do turismo cultural-gastronômico. “O Combu é contemplado com ações que envolvem desde a rota do chocolate até a qualificação da população local para atuar com o turismo sustentável e de aventura”, informou em nota. Segundo a pasta, 77 pessoas já participaram de cursos como “Condutor Ambiental de Trilhas e Caminhadas”, “Manipulação de Alimentos” e “Processamento de Frutas”, além de workshops para uso da plataforma Cadastur, do Ministério do Turismo.
As ações visam ampliar o profissionalismo no atendimento ao turista, estão previstas ações como o cadastramento de novos empreendedores e cursos de capacitação na área gastronômica, como preparo de drinques e coquetéis. “São iniciativas que contribuem para desenvolver o setor no Pará e fortalecer a competitividade no mercado”, finalizou.
Já a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico (Sedcon) diz que ainda não atua diretamente no Combu, mas iniciou em 2024 o recadastramento de empreendedores nas ilhas de Outeiro e Cotijuba. Segundo eles, a meta é viabilizar o acesso a políticas públicas como linhas de crédito e cursos de capacitação. Já a Secretaria de Turismo e Cultura (Semcult) aponta que, embora não exista sistema informatizado de contagem de visitantes por ilha, relatos técnicos e de empreendedores indicam aumento significativo no fluxo, sobretudo nos fins de semana.
De acordo com a pasta, entre as ações em andamento, visando o fomento do empreendedorismo nessa região, estão a implantação de Pontos de Informação Turística (PITs) e o apoio à Semana do MEI com foco no turismo comunitário, além de parcerias com Sebrae e Senac para qualificação da mão de obra.
Desenvolvimento territorial
Com a Conferência das Nações Unidas pelo Clima, a COP30, se aproximando, a ilha vive um momento de ebulição. Mas os moradores sabem que o mais importante virá depois. “A gente espera que a COP fique, que ela não passe. Que os turistas venham, vivam uma boa experiência e voltem. Porque é disso que depende a continuidade desse ciclo”, diz Dona Prazeres.
Para Charles essa também é uma expectativa de crescimento do seu negócio: “A gente espera que voltem e que a gente possa atender a todos da melhor forma”.
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