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Culinária amazônica ganha destaque como solução sustentável no pós-COP 30

Projeto Prato Firmeza valoriza saberes culinários ancestrais da região, transformando relatos e receitas em um livro

Andréia Santana | Especial para O Liberal

A culinária amazônida, enraizada na comida ancestral, não é apenas tradição: é caminho para a justiça climática, evidenciada pela COP 30. Técnicas indígenas, ribeirinhas e quilombolas de cultivo e preparo sustentável preservam florestas, garantem soberania alimentar e mostram que, frente à crise climática, soluções podem surgir de saberes que existem há séculos e ajudam a manter viva a cultura e biodiversidade local. 


Buscando valorizar iniciativas culinárias periféricas, o projeto Prato Firmeza, que existe há 15 anos, chegou à região para dar voz a cozinheiros e cozinheiras da Amazônia, e a coordenadora, Jéssica Mota, falou sobre o trabalho que associa a importância da culinária amazônida ancestral e o meio ambiente, evidenciando como as mudanças climáticas impactam diretamente as comunidades locais.

“Mapeamos modos de fazer, receitas de comidas tradicionais, como a maniçoba e outras que vêm da culinária indígena. Nós olhamos para valorizar a nossa culinária, para entender que ela carrega uma sabedoria necessária para o futuro, principalmente diante da crise climática. As receitas, os modos de cozinhar e os modos de plantar são práticas que carregam soluções. Não precisamos inventar coisas porque elas já estão sendo praticadas pelas nossas populações há muito tempo”, explicou.

Para ampliar a divulgação dos saberes culinários ancestrais e tradicionais, o projeto lançou o livro “Prato Firmeza Amazônia – Raízes da culinária tradicional brasileira”, distribuído durante a COP 30. A obra reúne receitas e relatos de cozinheiros de comunidades paraenses, como o quilombo de Abacatal, em Ananindeua, valorizando práticas que preservam a cultura e a biodiversidade da região, e se conecta ao conceito de justiça climática, que defende que os impactos da crise do clima não são distribuídos igualmente e populações tradicionais, como indígenas, quilombolas e ribeirinhas, são as mais afetadas pela perda de safras, enchentes e escassez de recursos.

“A gente quis contar essas histórias para facilitar o entendimento do público sobre a relação entre alimentação e crise climática. As chuvas intensas, as secas e as enchentes já afetam diretamente a mandioca, o açaí e outras plantações, além do acesso ao peixe e a outros alimentos. O livro é uma maneira simples de entender tanto como a crise já afeta a alimentação na Amazônia e em outros territórios quanto como podemos olhar para o que fazemos aqui como solução, porque as comunidades tradicionais e periféricas realizam a culinária amazônica como resposta climática”, contou.

“Quando preservamos e fortalecemos territórios indígenas e quilombolas, garantimos a soberania alimentar dessas comunidades e a continuidade de formas de plantio sustentáveis, que já enfrentam impactos como mudanças no regime de chuvas”, completou.

Para a coordenadora, o debate sobre alimentação sustentável não pode ser separado das realidades e saberes dos territórios tradicionais. Ela destaca que a produção de alimentos na região, sustentada por práticas ancestrais e por empreendedores periféricos, revela caminhos concretos para enfrentar a crise climática.

“Falar em combater o aquecimento global exige incluir a pauta de uma alimentação mais sustentável, e são essas pessoas, muitas vezes da periferia, que mantêm essa produção viva, apesar das dificuldades de empreender. A COP na Amazônia mostrou que as soluções vêm dos territórios, onde tradições indígenas, ribeirinhas e quilombolas desenvolvem há milhares de anos sistemas alimentares de baixo carbono e manejo regenerativo. Valorizar esses saberes, incentivar pequenos empreendedores e fortalecer a sociobiodiversidade são passos essenciais e um dos grandes legados que o evento deixa para a região, para o Brasil e para o mundo”, finalizou.

Cozinheiras sentem mudanças e buscam valorização

Com mais de 15 anos dedicadas à culinária paraense, as irmãs Nazaré Reis e Rosiane Batista narram, com bom humor e orgulho, a trajetória da sociedade que construíram juntas. À frente de um restaurante no Bengui, elas venceram adversidades, enfrentaram preconceitos e conquistaram espaço na Blue Zone da COP, onde encantaram visitantes estrangeiros com o sabor autêntico da gastronomia paraense.

“Na COP, muitos estrangeiros vinham atrás da nossa maniçoba, curiosos sobre o preparo ancestral que exige pelo menos sete dias de cozimento. Mesmo com a barreira do idioma, explicávamos a origem e o sabor do prato com apoio das meninas que trabalharam com a gente. Muitos achavam que era feijoada. Dávamos prova, contávamos a história e eles se encantavam. Ver nossa equipe bilíngue apresentando a maniçoba em inglês mostrou que estamos no caminho certo”, contou Nazaré.

Além de divulgar a culinária paraense, as irmãs também passam por um processo de transformação dentro da própria cozinha. Elas explicam que essa mudança envolve a valorização de ingredientes regionais e a adoção de práticas mais sustentáveis, resultado de cursos, formações e iniciativas ambientais das quais vêm participando.

“Passamos por uma grande mudança de conscientização como produtor gastronômico. Antes usávamos temperos industrializados, mas com cursos e orientação de professoras da área voltamos a valorizar ingredientes da região, como a chicória e a alfavaca. Essa retomada tem guiado nossa cozinha nos últimos anos. Também buscamos práticas mais sustentáveis, como a coleta seletiva, que chegou a ser interrompida, e agora estamos fazendo um curso do Lixo Zero, pelo Emaús, para retomar esse trabalho e fortalecer um descarte responsável”, afirma Nazaré.

“Com os muitos cursos que fizemos, voltamos a valorizar ingredientes dos nossos antepassados, para que não se perdessem. Recentemente me perguntaram para escolher entre chicória e cebola. Escolhi a chicória, porque a cebola se encontra em qualquer lugar. A chicória não; ela é nossa, pertence ao Pará. Achei isso fantástico. Foi mais do que escolher um tempero”, completou Rosiane.

Além de fortalecer a identidade regional, Nazaré e Rosiane destacam a importância de valorizar o bairro do Bengui e o potencial empreendedor existente ali. “Tenho um sentimento de pertencimento muito grande ao bairro onde nasci e me criei, e onde meus filhos também cresceram. Quando participamos de feiras e eventos e as pessoas elogiam nossa comida e perguntam onde nos encontrar, digo que estamos no Benguiville para ver se entendem sem preconceito. Ainda existe um olhar torto sobre o Bengui, mas o bairro está em plena expansão. Há muitos empreendedores aqui, da gastronomia ao artesanato, do esporte à cultura, como em qualquer outra área da cidade”, destacaram.

Cuidados com o desperdício também são importantes

Ana Maria Batista e Eduardo Cravo são proprietários de um restaurante de culinária quilombola que preserva técnicas tradicionais do Marajó e de comunidades locais. Além de servir pratos repletos de sabor, eles trabalham para reduzir desperdícios e manter práticas sustentáveis na cozinha.

“Um dos alimentos que trazemos da nossa cultura quilombola é o frito do vaqueiro, um prato preparado basicamente com sal, água da própria carne e gordura. Seu preparo leva de dois a três dias, e a gordura final é usada para conservar o alimento fora da refrigeração, uma técnica utilizada pelo vaqueiro marajoara quando ficava dias longe da fazenda. Essa é uma das práticas que trouxemos para o nosso trabalho, representando nossa cultura alimentar”, explicou Eduardo.

“No manejo e na compra dos alimentos, seguimos costumes ancestrais de ribeirinhos e quilombolas, que trabalham sempre com pequenas porções para evitar desperdício e manter tudo fresco. Adaptamos essa lógica ao restaurante: mantemos apenas estoque semanal e produzimos os pratos na hora, a la carte. Assim garantimos qualidade e praticamente desperdício zero na cozinha”, completou.

Para o casal, que também apresentou o restaurante na COP 30, os debates sobre clima e alimentação e o reconhecimento da cultura alimentar e das comunidades tradicionais renovaram a esperança sobre o futuro.

“Nós realmente nos sentimos incluídos nesse debate, com nossa cultura reconhecida. Foi como furar uma bolha. Como micro e pequenos empreendedores, esse sempre foi nosso maior desafio nesses 12 anos. Levamos uma pauta de inclusão e valorização da nossa cultura alimentar, conquistando um espaço que parecia impossível, inclusive superando grandes empresas nacionais. Estar ali, diante de pessoas do mundo inteiro, foi motivo de orgulho e satisfação. Pudemos compartilhar saberes e técnicas amazônicas, fortalecer pequenos produtores, a agricultura familiar e os quilombos que caminham conosco. Contribuir para a discussão climática e mostrar a importância de ribeirinhos, quilombolas e amazônidas nos dá esperança de dias melhores, com mais valorização da nossa cultura e da floresta em pé”, finalizou Ana Maria.