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E nossa relação entre 'Nós' e 'Eles'?

Lena Mouzinho

Minha mão direita jamais atacaria minha mão esquerda, a não ser que alguma disfunção a fizesse sentir que ela está separada da mão esquerda.
Se existe uma lesão na perna esquerda, de onde o sangue começa a jorrar, minhas mãos não dizem: "Que chato... mas vou deixar que essa perna se vire sozinha".
Minhas mãos não discutem sobre o fato de o corpo ser algo uno.
Simplesmente "tem" essa consciência e funcionam dessa maneira.
Se meu estômago está com fome minha mão direita não diz: "Estou ocupada demais para colocar comida na boca".
Mas isso ocorre na sociedade.
E acontece porque vivemos uma disfunção chamada separatividade.
Se não enxergamos que nossas mãos, pés, cabeça e cabelo são partes de um único corpo, não cuidamos deles e adoecemos como conseqüência.
Por não compreendermos a unicidade do corpo social, acabamos por não cuidar dele devidamente e sofremos.

(Bernie Glassman)

Ah, sábia natureza interconectada e interdependente que move a tudo o que pulsa vivo!

Quando uma célula ou tecido de nosso corpo se desequilibra em seu funcionamento, imediatamente mobiliza recursos internos para reequilibrar-se.

Quando não o consegue, informa ao corpo seu estado, por meio de sinais, sintomas.

O corpo ao "reconhecer" que, mesmo uma pequena parte desequilibrada em si afeta sua saúde, mobiliza-se inteiro, em conexão, voltando toda sua energia/ação em busca da reparação do dano.

Ciente pelos sintomas – comunicação de alerta do corpo – a pessoa, quando responsável por sua saúde, toma atitudes que possibilitam que sua natureza se re-harmonize: repousa, cuida da alimentação, da qualidade de suas emoções, modifica hábitos, se religa com sua natureza e ao redor, enfim...

Quando isso já não é mais suficiente para a cura, mobiliza no sistema de apoio, no entorno, as condições necessárias para auxiliar o trabalho que já está realizando em busca de saúde: assistência médica e outras.

Importante atentar: entre todas essas partes citadas e inter-relacionadas há fronteiras. Como existem em tudo na natureza. Não para dividir ou separar. Limites existem para que nos reconheçamos dentro deles e nos responsabilizemos por gerir o como estamos: "sei como estou" e "o que me cabe realizar dentro desta fronteira clara". E justo com "o como estou", bem cuidado por mim, posso cooperar na relação com os outros e com tudo o mais que vive comigo, pelo equilíbrio do Todo que constituímos.

E ainda atentar para: as trocas – o dar e receber - com as outras partes do "corpo" acontecem no contato entre as fronteiras e por meio delas.

E mais: fronteiras são mutáveis e o que pulsa vivo dentro delas também.

Então, reflitamos: quando uma célula passa a consumir outra e outra e outra, um câncer está adoecendo um corpo inteiro.

Nossos grupos relacionais e organizações sociais são corpos vivos. Estamos sofrendo socialmente de um "câncer".

E somente cada um de nós (células), em relação com os outros (células), tem o poder para reverter o trágico quadro.

Separação

É fato que uma competição desmedida vem devorando nossos vínculos relacionais com conseqüências fatais e freqüentes.

O antagonismo que tem nos afetado, nasce da percepção contrária ao descrito acima: somos seres isolados, separados, sozinhos, existindo num universo cego, que é um amontoado de forças e massas sem propósito, onde mudanças acontecem somente a partir de uma força externa ("cada um por si e deus por todos"). Onde a finalidade da vida humana restringe-se a reproduzir e sobreviver, dando conta, cada um, de seus interesses próprios, nem que seja às custas dos interesses dos outros,

Para sobreviver entre indivíduos concorrentes e hostis é preciso exercer o máximo possível de controle, custe o que custar, por meio de dinheiro, status, informações e outras formas de poder sobre os outros e mais que os outros.

Nesta luta viemos nos separando da natureza - que transformamos em objeto de posse e consumo - nos alienamos de nossos corpos e da comunidade, imersos em escassez e insegurança.

O isolamento e a raiva/medo dos outros nos mantém divididos, inviabilizando ações coletivas capazes de cuidar de nossos espaços de convivência, sejam os lares, os bairros, os condomínios, os grupos de trabalho, a cidade, o país, o planeta. Condomínios? Perceberam que sequer conseguimos reunir para conversar sobre o como gerir o lugar em que residimos?

Ao longo da história humana uma possível estratégia surgiu, parece que para dar conta de nossa necessidade de pertencer a grupos, de coesão e de segurança. Vem, no entanto, paradoxalmente, contribuindo para fortalecer ainda mais a "cultura de separação".

Vejamos então:

Tornou-se comum o uso de classificações e hierarquizações, fundadas sobre as diferenças entre as pessoas: seu trabalho, a região onde nasceram, o sexo biológico, cor do cabelo e da pele, padrões de comportamento, estilos de vida, tendências ideológicas e religiosas, orientações afetivo-sexuais...

À partir daí criamos o "Nós": grupo onde incluímos aqueles que aparentemente coincidem com nossa visão e forma de nos comportar no mundo. Aqueles a quem consideramos "gente como a gente", "do nosso nível". E determinamos que esse nosso olhar/caminho era o único correto e deveria ser a norma para todos.

Para nutrir a ilusão de finalmente "pertencer", idealizamos a homogeneidade da família, do grupo de amigos, do grupo religioso... E, sentenciamos à exclusão as outras "células" que trilhavam caminhos diversos - a quem denominamos "Eles" - para que não colocassem em risco o "equilíbrio social", pois eram errados, inferiores, imorais, defeituosos, divergentes e anormais. Toda a diferença que ousasse se manifestar seria punida. A não ser que se "ajustassem" socialmente pela intervenção de agentes instituídos.

Estratégia trágica: a satisfação da necessidade de segurança social torna-se por ela, impossibilitada e a insegurança só cresce.

"Eles", movidos pela dor gerada pela violência da exclusão, desenvolvem formas de se proteger no jogo do "vale tudo", revidando, vingando-se e causando dores.

E o interessante: quando "Nós", depois da "limpeza", parecemos coesos, a vida dá voltas, sacoleja e as diferenças ocultas antes pelo medo emergem, nítidas, entre aqueles aparentemente tão afins.

"Eles" estão crescendo pela ação do fermento da nossa ignorância.

Sim! Pois a vida é impermanente, cíclica e somos seres singulares e mutantes. Daí também, o espaço entre nós ser sempre fértil para o desabrochar de novas diferenças.

Quando elas brotam, originam conflitos: o "em-frentamento" entre percepções opostas, grávido de aprendizados e transformações para todas as partes em contato, quando há disposição para o diálogo. É transformando conflitos em aprendizagens que nos desenvolvemos juntos.

Pela inabilidade em lidar com conflitos, vínculos humanos se despedaçam. Conflitos não resolvidos e acumulados constroem "Nós" contra "Eles" e vice e versa.

E assim temos tornado a busca por conviver – nossa maior aprendizagem na Terra - em competição predatória, nos espaços relacionais privados e públicos. E nutrido o rompimento que nos enfraquece a todos.

Precisamos urgentemente de uma outra forma de pensar que reja nossas atitudes no mundo: um pensamento que busque agregar, antes de separar.

Encontro

Assim temos também atrofiado nossa capacidade empática: a percepção de nossas semelhanças humanas essenciais, capaz de nos conectar aos outros, por nos tornar conscientes das emoções, sentimentos e necessidades universais, valiosos indicadores do que pulsa vivo em todos NÓS.

A empatia possibilita nos reconhecer nos outros e os outros em nós, sem precisar negar o que nos distingue.

Exercitar nossa capacidade empática torna-se possível, quando pensamos o Universo como um Tecido artesanal, vivo e inteligente, em processo constante de tessitura – sendo ao mesmo tempo o artífice e sua obra - numa dança cíclica, cuja ordem desconhecemos...

E quando também pensamos que somos "fios" deste Tecido, como células do mesmo "corpo vivo" - seja ele a família, a equipe de trabalho, a sociedade, a humanidade...co-construindo tudo, no dia-a-dia, em relação...

E que mesmo que cada "fio" tenha uma espessura, tonalidade e outras características diferentes, somos constituídos da mesma "matéria-prima" de tudo o que percebemos ao nosso redor, que está interligado a nós, incluindo todas as outras pessoas...

E que não temos controle algum sobre a dança inteligente do Universo, mas podemos escolher como gerir, acompanhar e fluir no movimento...

E que nossa comunicação - todo comportamento humano é comunicação – nos conecta. Por isto urge que aprendamos a lidar com os naturais conflitos que acontecem, quando percepções diferentes emergem, para usufruirmos da magnífica experiência que pode vir a ser conviver com tantos diferentes-complementares.

E ainda que, precisamos dar conta de nosso bem estar e desenvolvimento pessoais sim. São de nossa responsabilidade. Sem esquecer que, quando nossa ação afeta positivamente uma "célula", todo o corpo é afetado e nós também o somos, por conseqüência. E o mesmo se dá quando afetamos negativamente.

Segurança é pois resultante da busca do bem estar coletivo que nasce de uma consciência cada vez mais inclusiva do NÓS.

Para engajar-se nessa construção é necessário que cada pessoa se responsabilize por se movimentar relacionalmente, de forma atenta e cuidadosa para o que está oferecendo nas trocas que estabelece com seus pares, nos espaços privados e públicos, incluindo os lugares onde apenas cruzamos, em trânsito, com outras pessoas.

OFF Lena Mouzinho