Já me referi, em outras crônicas-ensaios reflexivos, sobre a frase-advertência de Jesus quanto ao exercício do poder, relatada no Evangelho de Mateus (16:26) , a seguir reproduzida: “Pois, o que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se perder a sua alma? Ou que dará o homem em recompensa da sua alma”.
Volto ao tema, neste breve ensaio teológico-filosófico, com a seguinte tese argumentativa: uma possível interpretação, acerca da perda da própria alma quer dizer, na advertência de Jesus, deixar-se dominar pelas tentações e armadilhas do poder, resultando, no plano individual, a perda de referência e do domínio de si próprio.
O meu objetivo, aqui, é defender a assertiva de Jesus sobre a natural incompatibilidade de se manter o controle e a serenidade da própria alma, quando o exercício de qualquer poder é desviado da função precípua do bem comum da sociedade.
O deixar-se dominar pelas tentações e armadilhas do poder pode ser consciente ou inconsciente.
Será consciente quando, por livre arbítrio, a pessoa opta em exercer o poder de modo desviado da finalidade ética que a investidura exige enquanto princípio ético-legal. E será inconsciente quando a pessoa desconhece a exata dimensão das forças e objetivos que compõem e dominam o poder, sendo, por consequência, utilizada como mero instrumento manipulado para a realização do referido poder.
Vamos ilustrar melhor com o caso de Pôncio Pilatos, o governador da Judéia nos anos 26 a 36 d.C, o homem que “lavou as mãos” na condenação de Jesus, fazendo um joguete político que entrou para história negativa da humanidade: ofereceu ao povo judeu, como era costume na sua Páscoa, a libertação de um preso condenado à morte.
Depois de interrogar Jesus, Pilatos disse aos líderes dos sacerdotes e à multidão: “Eu não encontro nenhum motivo para condenar este homem!” ( Lucas, 23).
No entanto, por interesses do sistema político, Pilatos – ele não era romano, mas samnitas – precisava agradar o imperador Tibério, que o havia nomeado ao cargo e, então, armou o circo da farsa do julgamento: “deu” ao povo a escolha entre Barrabás (guerrilheiro zelota, ladrão, salteador, assassino e condenado à morte) e o homem honesto, justo e correto, Jesus. Manipulado pelos sacerdotes, o povo escolheu a libertação do ladrão e assassino, condenado Jesus, porque aquele povo estava ligado pelas estruturas religiosas desvirtuadas.
E então, Pôncio Pilatos, fechando a cortina daquela farsa, lavou as mãos, conforme relatado no Evangelho de Mateus (27:24): “Ao ver Pilatos que nada conseguia, mas pelo contrário que o tumulto aumentava, mandando trazer água, lavou as mãos diante da multidão, dizendo: Sou inocente do sangue deste homem; seja isso lá convosco. “
Os registros históricos, quanto à morte de Pilatos, são desencontrados: há relato de que fora destituído do poder pelo imperador Calígula, sucessor de Tibério, depois que ordenou o massacre de um grupo de samaritanos armados na Vila Tiratana. Outro relato dá conta de que teria se convertido ao cristianismo e outro relata que ele teria se suicidado.
O caso de Pilatos tipifica bem a opção consciente pelo exercício desviado do poder político: como governador da Judéia, também era o chefe do sistema judicial – poder que lhe conferia autoridade para conceder liberdade ou impor pena de morte àqueles considerados inimigos do Impérito romano.
Então, Pôncio Pilatos fez o jogo do sistema estabelecido, o que significa – na perspectiva desse ensaio teológico-filosófico – que, de forma consciente, Pilatos “lavou as mãos” como mera retórica, isto é, manipulou o sistema para a condenação de Jesus e para a libertação de Barrabás.
E, assim, Pôncio Pilatos corrompeu a própria alma (perdeu o domínio de si mesmo) pelo desejo do poder político corrompido. A perda do domínio de si mesmo – a perda da alma – representou a perda da liberdade de dizer não às tentações e armadilhas daquele sistema.
Tivesse, aquele governador e chefe do sistema judicial, o domínio de sua própria alma – isto é, se não tivesse se corrompido pelo sistema político – certamente não teria promovido, tampouco participado da farsa dito julgamento de Jesus. E o teria denunciado.
Logo, a questão decorrente é a seguinte: seria possível o exercício do poder sem a perda do domínio ético de si próprio? Ou seja, sem o aprisionamento da alma?
A questão é altamente complexa e desafiadora porque implica nas escolhas – certas e legais ou erradas e ilegais – que a pessoa fará no exercício do poder.
A decisão certa – para não perder o domínio da alma – é Jesus como verdade libertadora das corrupções do mundo. Aliás, o apóstolo Pedro (2:20) foi preciso, quando afirmou que se liberta das corrupções pelo conhecimento (aceitação) do Senhor e Salvador Jesus Cristo.
Existe, por conseguinte, uma natural incompatibilidade de se manter o controle e a serenidade d’alma, quando a alma está aprisionada pelo exercício de qualquer poder corrompido, desviado da função precípua do bem comum da sociedade.
Com isso, outra questão que sobrevém: o que fica depois que o exercício do poder acabar? A resposta teológica está em Coríntios (15:50): “E agora digo isto, irmãos: que a carne e o sangue não podem herdar o reino de Deus, nem a corrupção herda a incorrupção”.
No fundo, diante de tudo isso e especialmente quando acaba o exercício do poder, o que fica é o que verdadeiramente somos: pobres mortais dependentes e carentes de ajuda e dos cuidados de outros para mínimas e naturais necessidades fisiológicas básicas – a isso denomina-se caridade – quando chega a velhice prostrada.
Então, a questão do presente, com uma perspectiva honesta ao futuro da nossa história, é saber: qual a lembrança que queremos que fique a respeito da nossa história? E qual a contribuição efetiva e positiva que deixaremos à sociedade no presente e às gerações futuras, na perspectiva do respeito à dignidade humana, sem narrativas e retóricas ideologicamente desviadas das finalidades do bem comum social.
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