Sociedade Líquida: Deus segundo a opção ideológica Océlio de Morais 11.07.23 9h32 Na edição brasileira do livro “Se Deus fosse activista dos Direitos humanos (2013) – a obra analisa a concepção global da ideologia política dos direitos humanos, construída a partir do conceito hegemônica dos direitos humanos — o escritor Boaventura de Sousa Santos (1940) não esconde sua visão contra-hegemônica desses direitos e, em oposição, defende ”teologias pluralistas e progressistas (...) como fonte de energia radical para as lutas contra-hegemônicas dos direitos humanos” Veja-se o raciocínio do autor: — (...) Na lógica deste livro, se Deus fosse um activista dos direitos humanos, Ele ou Ela estariam definitivamente em busca de uma concepção contra-hegemônica dos direitos humanos e de uma política coerente com ela (...)”, escreveu, acrescentando que a concepção religiosa monoteísta em luta contra a concepção politeísta está associada à ideia de um Deus invocado pelos opressores em oposição ao Deus invocado pelos subalternos. O escritor luso defende políticas e “teologias progressistas e libertadoras, capazes de integrar nas lutas contra-hegemônicas contra a globalização neoliberal”, além de apontar que “(...) os direitos humanos são secularmente individualistas (...)”, hegemonia que, segundo interpreta, contribui à “fragilidade dos direitos humanos enquanto gramática da dignidade humana”. A “gramática da dignidade humana”, de que trata Boaventura, não é à “gramática” dos fundamentos de uma língua; mas, sim, a “gramática” relativa ao conjunto de princípios para identificação de novas experiências políticas, judiciais e epistemológicas, questões que, aliás, o escritor abordou em dois noutros livros: “A Gramática do Tempo - por uma nova cultura política”, editado no Brasil em 2008, e "Para uma nova revolução democrática da Justiça” , edição brasileira de 2015. Sobre Deus como “activista dos direitos humanos”, Boaventura ressalta que a pergunta “Se Deus fosse um activista dos direitos humanos” é apenas uma “metáfora que só pode ser respondida metaforicamente”. A obra procura identificar os principais desafios, que, na perspectiva das novas teologias, são apresentados aos direitos humanos e, também, identificar as transformações sociais progressistas como uma modernização alternativa à sociedade. Vou aproveitar a ideia (“Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos”) para oferecer outra reflexão, adotando para isso a seguinte pergunta: ideologias ou teologias ditas “progressistas” podem colocar numa mesma cesta de valores a fé cristã e as ideologias políticas? . A minha pergunta não se reveste de crítica às ideias de Boaventura, afinal, o seu ponto de vista está baseado na liberdade de pensamento, de expressão e de comunicação como direito humanos individual e coletivo. E o que farei, também se baseia na liberdade de pensamento e de expressão, inerente à dinâmica das ideias (convergentes ou divergentes), sempre regido pelo grau máximo da respeitabilidade acadêmica de cada qual. Sou adepto das novas e boas ideias, mas não as tomo como simples construções de interesses ideológicos. Por natureza, todo pensador é adepto e construtor de novas ideias. Porém, a questão, no fundo, é saber o que contém o “pacote” e o objetivo das “novas” ideologias que são apresentadas como “progressistas”. São idéias fluidas e disruptivas da sociedade como a conhecemos baseada nos valores cristãos e de outras culturas religiosas ? Antes de emitir um contraponto em face das “novas” ideologias “progressistas”, primeiro, faço uma ponderação sobre a observação de que os direitos humanos são “secularmente individualistas”. Quero pontuar que se a liberdade não fosse uma categoria individual dos direitos humanos gerais — portanto, um direito humano de origem liberal — o premiado escritor português certamente não teria a liberdade para expor e defender suas ideias. Portanto, e qualquer pensador tem consciência disso, foi a natureza hegemônica secularmente consagrada à liberdade como direito autônomo e individual, com a progressiva proteção do Estado, que lhe garantiu expor livremente seu pensamento crítico acerca da secular concepção dos direitos humanos como uma natural categoria individual da pessoa. Se não fosse o caráter autônomo e individualista das liberdades de pensamento, de expressão e de comunicação – isto é, liberdade como direito humano inerente à personalidade humana – logicamente não teria liberdade para defender ideias, conforme afirma, “progressistas e libertadoras, capazes de se integrar nas lutas contra-hegemônicas contra a globalização neoliberal”. Neste particular, apresenta-se como um paradoxo a crítica em face da característica ou natureza autônoma e individual dos direitos humanos. Mas também quero destacar – é disso bem o sabe o notável cientista político português – o aspecto histórico das liberdades como um secular direito humano individual. Não podemos esquecer a historicidade dos princípios seculares da liberdade como direito humano individual, a partir da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) – declaração que se opôs ao regime absolutista e plantou bases à revolução francesa (1789 - 1799) e, depois, os mesmos princípios relativos às liberdades foram ampliados na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), esta, como código universal contra os regimes ditatoriais, despóticos e nazifascismo. Então, precisamente por serem essenciais ao desenvolvimento integral da personalidade de cada indivíduo — assim como são fundamentais para a concepção coletiva, relativa à prevalência dos direitos humanos em oposição às ideologias despóticas de quaisquer regimes políticos – penso que a desconstrução dessa natureza, pode submeter perigosamente os direitos humanos às ideologias políticas fluidas e líquidas, aumentando, desse modo, o grau de vulnerabilidade dos defeitos humanos. Fecho aqui o contraponto sobre a observação do escritor português acerca dos direitos humanos secularmente individualistas. Em segundo lugar, quero destacar que a evolução das ideias é – e sempre será – a força motriz do desenvolvimento das ciências. Logo, indispensáveis ao progresso científico da humanidade. Assim, deixo bem claro que defendo o progresso das ideias e das ciências como critério para separar o “joio do trigo”, por exemplo, separar os valores da fé Cristã do problema ideológico, este, manipulador e dominador das mentes incautas. Então, a outra questão que desafia um ouro contraponto é relativa às proclamadas teologias progressistas. Essa questão precisa ser analisada na perspectiva da “modernidade fluida” para uma melhor compreensão dos seus propósitos ou objetivos. A modernidade líquida ou volátil – o filósofo Zygmunt Bauman (1925-2017) utilizou a expressão para definir o mundo globalizado – provoca disrupção das instituições seculares, enquanto os seus respectivos valores éticos são progressivamente relativizados ou ignorados em todas as dimensões das relações sociais. Nesse contexto, os indivíduos tornam-se cada vez mais vulneráveis aos processos “culturais” fluídos e imprevisíveis. A modernidade e a pós-modernidade (sociedade fluida), baseadas em processos culturais líquidos, verdadeiramente, aumentam o grau de insegurança social e imprevisibilidade quanto aos drásticos efeitos disruptivos dos valores éticos. A vulnerabilidade ética é uma consequência desses processos e também fragiliza a natureza e o conteúdo protetivo inerente aos direitos humanos individuais ou coletivos, à medida que a base dos direitos humanos é a ética, da qual emanam todos os demais valores ou categorias sociológicas e políticas relativas à incolumidade da dignidade humana. Um dos objetivos imediato e a longo prazo dos processos culturais fluídos é demonstrar à sociedade baseada no modelo da família tradicional como a conhecemos, defendendo idéias (ideologismos) como meras expectativas de interesses e não como bases sólidas para a edificação dos bons valores sociais. Neste modelo de relação social, não é raro identificar “novas” ideologias que relativizam a ética virtuosa e colocam na prateleira da “normalidade” o vício da corrupção em detrimento das virtudes tradicionais, como a ética, a honestidade e a justiça — virtudes que, todos sabemos, são as que verdadeiramente sustentam o ideário das sociedades sólidas, baseadas nos amplos valores da democracia . São esses processos “culturais” fluídos e imprevisíveis, inerentes às ideologias disruptivas – logo, não podem ser tidas como progressistas – que misturam os valores e princípios da fé cristã com as coisas da política. Por isso, é necessário fazer o crivo entre o que de fato constitui novas ideias para o bom desenvolvimento da personalidade humana e o que realmente é a ideologia disruptiva fluida, a qual, por exemplo, geralmente sustenta a “teologia progressista” e também coloca na mesma cesta de valores, a fé cristã e a ideologia política. Esse embaralhamento torna tudo fluido. Isso já é identificável nos tempos atuais, ambiente onde as coisas (nem sempre éticas) da política invadem perigosamente o campo especial das virtudes teologais da fé cristã. Nestes casos, Deus é desqualificado como Divindade; é perjuriado por aquele que abdicou da crença e da fé; é reduzido à condição de gênero sexual, dentre outras inomináveis e propositais desqualificações. Tudo isso pode ser visto abertamente nas gravações disponíveis na rede mundial de computadores. Boaventura assim descreve a questão das “teologias progressistas” em relação à fé cristã: – “De acordo com as teologias políticas progressistas, Deus está envolvido na história dos povos oprimidos e nas suas lutas de libertação. No caso das teologias cristãs, a história de Jesus mostra como Deus se torna pobre e desprovido de poder para que os oprimidos possam se libertar a si próprios da pobreza e da impotência, A ressurreição de Jesus é apenas uma metáfora para a liberdade de lutar contra os opressores”. Ora, somente mesmo uma ideologia disruptiva é capaz de reduzir a ressurreição de Jesus a uma metáfora de luta de classes. Na minha percepção, este é um notório exemplo da pós-modernidade fluída e disruptiva em face do valor da fé e da religiosidade Cristã Isso decorre de uma evidente ideologia “progressista”, aqui também tomado o caso da sexualização de Deus, o que é incompatível com a fé cristã e também com as outras confissões, que compreendem Deus como Divindade incorpórea, imaterial e imortal. Sendo Espírito fonte de Luz Eterna – Aurélio Agostinho de Hipona define Deus como a “verdade imutável”, sendo o “começo e o fim da vida humana” – designar Deus como gênero (“Ele ou Ela”) é o mesmo que reduzi-Lo à condição humana. Para os mais de 2,2 bilhões de pessoas que professam o cristianismo – equivalente a um terço da população mundial – Deus não é “Ele ou Ela”. Mas, Deus é o Criador e Senhor da vida, a verdade espiritual que liberta; por conseguinte, é o destino de toda evolução espiritual de cada ser humano. Acredita nessa perspectiva quem tem fé! Quem não a têm, constrói ou adota ideologias — não as considero progressistas, mas disruptivas – desse valor cristão. O reducionismo ideológico de Deus ao gênero humano ou à questão de politizá-Lo (“Deus dos opressores” e ao “Deus dos subalternos”), também abre a perspectiva para a seguinte pergunta: Deus é uma apropriação ideológica das classes sociais (“Deus dos opressores” e ao “Deus dos subalternos”)? Obviamente, a resposta é negativa, porque Deus não está atrelado à ideologia disruptiva. Quando Deus é apropriado por ideologias vetoras de luta de classes (Deus defensor dos “opressores” ou Deus dos “subalternos”), por evidente, afronta-se o ideário de Jesus: “Eu e o Pai somos um” para todos, disse ele. Isto é, para todos aqueles que, independentemente da classe social, decidam pelo livre arbítrio aceitar e colocar em prática seus ensinamentos. Aliás, o raciocínio (Deus segundo a opção ideológica) me faz lembrar a declaração do filósofo Ludwig Feuerbach (1804-1872) – considerado um dos “cavaleiros do ateísmo” ao lado de Karl MArx, Charles Darwin, Sigmund Freud e Friedrich Nietzsche — para quem o “Deus cristão é a própria idealização do homem projetada na ideia de Deus”, isto é, a ideia de que “O homem cria Deus para ser o sapientíssimo de todas as qualidades que gostaria de ter e não tem”. Então, a lógica do ativismo político na ideia (metafórica ou não) "Se Deus fosse um activista dos direitos himanos”, pode ensejar outra afirmação lógica: se Deus fosse um ativista dos direitos humanos, realmente não seria Deus! Seria um político, mas um político ativista das ideologias contra-hegemônicas dos direitos humanos. E Deus como um ativista contra-hegemônico dos direitos humanos seria tão falível e mortal como todo ser humano. Bem, pelo menos é o que a ideia de Deus como um ativista deixa transparecer, o que consistiria na negação da existência Divina. E no que se refere à sexualização de Deus contida nas ideologias volúveis da sociedade fluída, claramente tem-se não apenas um exemplo do que seria uma ideologia “progressista” disruptiva, mas também indica com clareza uma ideologia que se opõe à fé cristã, a fé daqueles mais 2,2 bilhões de pessoas. Mas, Deus não é humano, não é gênero (homem ou mulher). Nas palavras de João (1,1), “Deus é o Verbo vivo”. E Jesus, na sua condição de homem histórico – corporifica em sabedoria a imagem do Deus invisível (Cl, 1.15). Isso significa que Deus não depende de qualquer causalidade ou efeito. Ele simplesmente é o “Verbo vivo”. Em si, a expressão das ideias – concordemos ou não com elas – são importantes para estimular outras ideias e tantas outras novas ideias. Elas são importantes (e não podem ser cerceadas) , pois elas têm por missão – para usar a frase de Boaventura no prefácio do livro “Se Deus fosse um activista dos direitos humanos “ – de anunciar um novo ser humano e de vida em sociedade”. Esse “novo ser humano” e “nova vida em sociedade”, a partir de novas ideias políticas, podem enriquecer o pensamento. Mas, desde que as novas ideias sejam portadoras de princípios éticos sólidos, capazes de contribuir para a elevação da dignidade humana por todas as perspectivas desejáveis do bem-estar material e espiritual, este, baseado na “Verdade invisível libertadora” (Jesus Cristo, o Verbo) dos vícios que corrompem a natureza humana. Antes de encerrar, ainda é preciso fazer outro destaque: Boaventura não coloca como sua primazia a ideia relativa “ao novo ser humano e de vida em sociedade”. A primazia é de Jesus durante suas pregações: a Carta aos Efésios (4,23-24) anuncia o homem novo, aquele que vive na justiça e na verdade: “Os discípulos de Cristo revestiram-se do homem novo, criado segundo Deus, na justiça e santidade da verdade.” E também conforme o apóstolo Pedro (1Pd 2,1) “o novo homem deve rejeitar toda a maldade, toda a mentira, todas as formas de hipocrisia, de inveja e maledicência”. Por outras palavras: a revolução que Jesus provoca com uma nova e extraordinária teologia é baseada nas virtudes, bem diferente da teologia “progressista” disruptiva e bem diferente das ideologias também disruptivas dos bons valores sociais e dos sublimes valores cristãos. Esse paradoxo – novo homem anunciado por Jesus e o novo ser humano projetado pela ideologia fluída – são incompatíveis em si. Na ideologia fluída reside o perigo do ideologismo que alimenta um tipo de sociedade cada vez mais fluida – idealismo reduz Deus à mera condição de gênero humano ou a um ativista político. Tais ideologias são capazes de destruir a esperança da fé cristã em Deus. E, assim sendo, posso concluir: elas não podem ser consideradas ou elevadas à qualidade de novas ideologias progressistas, tampouco novas teologias libertadoras . ------------------------ ATENÇÃO: Em observância à Lei 9.610/98, todas as crônicas, artigos e ensaios desta coluna podem ser utilizados para fins estritamente acadêmicos, desde que citado o autor, na seguinte forma: MORAIS, O.J.C.; Instagram: oceliojcmoraisescritor Entre no nosso grupo de notícias no WhatsApp e Telegram 📱 Palavras-chave oceliodemorais colunas COMPARTILHE ESSA NOTÍCIA Océlio de Morais . Desculpe pela interrupção. Detectamos que você possui um bloqueador de anúncios ativo! 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