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Por onde tudo começou

Crônicas judiciárias de quase um quarto de século na magistratura

Océlio de Morais

Há ditado popular que diz assim: “Deus escreve certo por linhas tortas”. Esse ditado possui muitos significados, dependendo da ocasião. Um deles, é este: o acaso (como alguns falam) ou os desígnios de Deus (como acredito que seja melhor) sempre nos reserva coisas boas, mesmo que aparentemente os caminhos  sejam outros.

A origem deste ditado seria bíblica. Estaria vinculada à mensagem de Timóteo, 3:15-17, quando fala que “a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção e para a instrução na justiça,para que o homem de Deus seja apto e plenamente preparado para toda boa obra”. Ou por outras palavras: Deus sempre reserva um bom plano aos amados  seus filhos, respeitando o livre arbítrio de cada um. 

Considera-se-o adequado ao caso. 

O ano era 1976 e o mês, janeiro.  Era o tempo da minha adolescência, bem no início. Foi quando sai  em definitivo de Monte Alegre (PA), minha terra natal - a homônima da Montalegre (Portugal), fundada em 1273 - para começar a trilhar uma outra vida:  estudar em Santarém, no seminário interno São Pio Décimo, com vistas a ser padre,  cidade também homônima da irmã portuguesa, da província de Ribatejo,  fundada em 1095.

Remonto esse fato  para contextualizar o ambiente desta crônica judiciária de quase um século de minha magistratura da Justiça do Trabalho, que diz respeito por onde tudo começou.

Então aqui entra o  sentido daquele dito popular.

Adulto,  compreendi que o ensino recebido no seminário foi para a “correção” daquele destino do barro tórrido e cáustico da infância  vivida na cidade onde foi aberta a janela espiritual ao meu nascimento - desígnio que mais tarde revelou-se: o ensino era parte do plano de Deus “para a instrução na justiça”, para ser magistrado e contribuir de modo correto e justo na solução dos conflitos humanos que são levados à Justiça através dos processos judiciais, e não era necessariamente para ser padre. 

Depois de uma espécie de laboratório sociopolítico na imprensa em Belém do Pará - ambiente onde é possível  aprender com clareza como funcionam as relações (às vezes éticas, mas nem sempre éticas) entre os poderes e seus jogos de interesses nem sempre republicanos - outra parte do desígnio se concretizou: veio a magistratura, a partir de 13 de dezembro de 1996.

Quase 25 anos depois daquele janeiro de 1976, precisamente em novembro de 2003 - a cidade que havia contribuído “para a instrução na justiça” do menino colono  - abriu novamente suas portas, desta feita, ao homem juiz. 

Capricho do destino? Para alguns, sim.  E já pensei assim. Hoje concluo que era parte do plano Dele para que o início do caminho como juiz titular também começasse por Santarém, jurisdição que inclui o território de minha terra natal, como uma espécie de retribuição por onde tudo começou.

Mas a investidura na única Vara trabalhista de Santarém da época - uma das cinco cidades mais importantes do Estado do Pará -  remeteu a memória à mensagem de Jesus, conforme o relato de Lucas (4:24): ‘Realmente vos afirmo: nenhum profeta é bem recebido em sua própria terra”. E ainda conforme Marcos (6:5-5): “Somente em sua própria terra, junto aos seus parentes e em sua própria casa, é que um profeta não é devidamente honrado”.

Aquilo não era um início como outro qualquer, era a prova de fogo ou desafio para bem servir, com o sentido do justo, aqueles que  “têm fome e sede de justiça”, como  disse Jesus no sermão da montanha (Mateus, 7).

O projeto “Judiciário Rio acima, rio abaixo” - título  que criei por adaptação da frase “Rio abaixo, rio acima”  da letra da música “Esse rio é minha rua”,  dos poetas paraenses  Paulo André e Ruy Barata - foi a forma adotada para levar a justiça ao encontro daqueles que não tinham acesso à Justiça: àqueles que tinham “sede e a fome de justiça”.

Com o projeto  “Judiciário rio acima, rio abaixo” ora singrando as águas barrentas  do Rio Amazonas e ora cruzando estradas, a Justiça ía até as pessoas nas suas próprias localidades (Monte Alegre, Prainha e Belterra). E com elas se reunia em centro comunitários ou debaixo de mangueiras  para explicar o que era e como funcionava, para falar de direitos e traduzir a linguagem árida das leis,  e para resolver os conflitos trabalhistas lá e na hora, através de acordos judiciais ou sentenças líquidas - prática, aliás,  que já adotava bem antes da vigência da Lei do Procedimento Sumaríssimo, que entrou em vigor em 13 de março de 2020, embora sancionada e publicada em 12 de janeiro daquele mesmo ano. 

A relevância do projeto realizado no ano de 2004 - felizes e entusiasmadas, as comunidade recebiam a Justiça com fogos de artifícios e também com fogos também se despediam, pedindo o breve retorno -  ganhou dimensão nacional: foi à finalíssima do I Prêmio Innovare, recebendo menção honrosa pelo caráter inovador na prestação jurisdicional trabalhista no coração da Amazônia brasileira. 

Quando relembro essas memórias judiciárias, posso concluir essa crônica com a seguinte afirmação: ser juiz, longe e bem longe do glamour, é estar sob uma espécie de “espada de Dâmocles”, porque enfrenta-se a fúria daqueles que não agem com justiça  e dela sempre querem se esquivar. Mas também exige exercício permanentemente à cultura dos valores da  sabedoria (ou prudência) coragem, da ponderação, da temperança e do ser justo, as milhares virtudes cardeais legadas à humanidade por Platão. 

Ah! Por último: Deus sempre escreve certo os nossos desígnios. O livre arbítrio de cada um é que pode contribuir para outras linhas, nem sempre certas e talvez tortas.

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ATENÇÃO: Em  observância à Lei  9.610/98, todas as crônicas, artigos e ensaios desta coluna podem ser utilizados para fins estritamente acadêmicos, desde que citado o autor, na seguinte forma (Océlio de Jesus Carneiro Morais (CARNEIRO M, Océlio de Jesus) e respectiva fonte de publicação.

Océlio de Morais