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Os filhos da inveja

Océlio de Jesús C. Morais
Saulo de Tarso - o  romano perseguidor de cristãos, o homem que depois da conversão ao cristiniasmo é considerado pelo catolicismo como o apóstolo dos gentios - numa conversa com Marcos, disse que todo homem é escravo de alguma coisa.  
 
Marcos  (João Marcos era o seu nome e um dos evangelistas do Novo Testamento)  era um médico grego convertido após tomar conhecimento dos ensinamentos de Paulo de Tarso.
 
Paulo de Tarso se referia às falibilidades que aprisionam as pessoas e à necessidade da pessoa estar em permanente estado de vigília para superar as fraquezas e evoluir espiritualmente.  
 
Então hoje quero falar de uma das falibilidades recorrentes da natureza humana.
 
Hoje quero falar sobre a inveja, uma das falibilidades humanas mais vorazes  da paz de espírito, pois é tão traiçoeira como a ave de rapina, à medida que fica na espreita dos cochilos para plantar suas raízes daninhas que se espalham pelas ondas do pensamento  dissimulado até a sua verbalização.
 
Quero compartilhar essa reflexão sob uma perspectiva teológico-filosófica a partir dessa questão na Suma Teológica de Tomás de Aquino, porque é um tema  que sempre esteve no centro das relações humanas, continua e  provavelmente continuará como um desafio a ser superado pelas boas virtudes humanas. 
 
Para quem acredita e tem fé em Deus, esse vício humano  é incompatível com o próprio Deus, à medida que, conforme a narrativa de Gênesis, “Criou Deus o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou”.
 
Entretanto, sendo Deus boníssimo e sapientíssimo, os humanos não deveríamos ter e nem alimentar inveja de ninguém, visto que todos são criados à imagem e semelhança de Deus.
 
Claro, ao ateu, que não acredita que  Deus existe, é mais fácil compreender o sentimento da inveja entre os seres humanos, coisa que não seria tão simples para o agnóstico que, pelo menos, se não tem plena convicção da existência de Deus, também não a nega .
 
De qualquer forma, a inveja - o dicionário a define como o sentimento de “desprazer causado pela felicidade ou pelo progresso de outra pessoa ou ainda o sentimento de cobiça da felicidade, da superioridade de outrem” - é tão real como mitológica.
 
É tão real que, por inveja, Caim matou seu irmão, Abel, tudo porque se considerou preterido por Deus, que aceitou as ofertas do coração de Abel e rejeitou as mesquinhas ofertas de Caim.
 
Lá no decorrer do século XIII, a teologia católica -  especialmente a partir da Suma Teológica,  do teológico-filosófico de Tomás de Aquino - definiu  os sete vícios ou pecados capitais: vanglória,  ira, avareza, tristeza, gula e a luxúria, mas dentre eles também está inveja. 
 
São vícios que se contrapõem às  virtudes  morais (justiça, fortaleza,  temperança, sabedoria), tidas como bons “hábitos que dispõem as potências apetitivas a obedecerem prontamente à razão”, pois, como destaca Tomás de Aquino, “as virtudes morais aperfeiçoam o homem na vida ativa”.
 
Para Tomás de Aquino, a inveja é vício oposto  à virtude, enquanto essa é  definida como um valor sensível da pessoa que cultiva a mansidão, a gratidão e a simplicidade.
 
O teólogo-filósofo também dizia que a inveja é uma espécie de tristeza que tempo objeto um mal  (ou desprezo) pelo bem de outrem, sentimento que, por si, repugna a razão  e, por isso, também “implica um certo mal”.
 
Por outras palavras, na sabedoria popular: a inveja tem o olho gordo e um olhar de seca pimenteira, tamanho efeitos que causa, especialmente  em termos espirituais ao invejoso, como uma espécie de lei do retorno.  Um dia, não se sabe quando, a inveja produzirá um efeito nocivo ao invejoso.
 
E a causa da inveja, dizia  também o teólogo-filósofo, repousa na soberba (sentimento ensimesmado cheio de arrogância),  filha do egoísmo.   “A soberba gera a inveja e nunca existe sem essa companheira”, escreveu na Suma Teológica. 
 
Antes  de Tomás de Aquino cuidar desse tema na Suma Teológica,  a inveja e o ciúme  - isso é o que  relata a mitologia grega - já frequentavam os banquetes dos deuses gregos, no Olimpo, porque  eles não se sentiam iguais e cada um queria ter mais poder do que o outro  e, desse modo, exercer domínio sobre os demais.
 
E, assim nesse campo de egos e vaidades inflamados, as intrigas iam sendo semeadas entre eles: Ftono era a deusa da inveja e do ciúme, por isso também comparada  em termos de maldade a Éris, o deus do caos e da discórdia. 
 
Ftono e Érs se completavam na promoção da rede de intrigas e maldades no Olimpo, semeando ciúme e inveja,  minando o campo de relacionamento entre todos os deuses. 
 
Da mitologia à realidade, saberíamos dizer quantas deusas Ftono (a inveja e o ciúme) e  quantos deuses Érs (o caos e a discórdia) são alimentados diariamente nas relações sociais, desde o lugar mais alto do poder aos círculos das corruptas transações ou  nas invejosas consciências inconfessáveis …
 
É dificílimo responder, mas uma coisa é certa: a inveja pode estar ao nosso lado, mas nem sempre é percebida porque o invejoso é sempre um dissimulado.  Às vezes, diz ser, mas não é amigo, pois não é solidário quando deveria ser. E a alegria que diz sentir pela felicidade do outro não revela a intensidade sincera por gestos e obras concretos.
 
Se Tomás de Aquino tivesse incluído essa questão na Suma Teológica (questão é o que hoje na academia se denomina de problema de estudo), seria bem  possível a formulação dessa questão: a  inveja, o ciúme e a discórdia vivem e proliferam como erva daninha corrói  o  tecido social .
 
E também seria possível que ele apresentasse como solução a seguinte hipótese:  considerando que a inveja implica um certo sentimento mal, porque revela desprezo e ciúme pelo êxito ou felicidade do outro, esse mal pode disseminar redes de intrigas nas relações humanas. 
 
Para cada questão relativa aos pecados capitais, Aquino identificava uma possível solução: quanto  à inveja, analisada como pecado mortal, disse que ela  “contraria à caridade, donde vem a vida espiritual da alma”, pois o invejoso é movido por um princípio que  consiste em diminuir a glória de outro, mas deseja para si a mesma glória, ainda que não a mereça. 
 
 Disso tudo é lógico, então, afirmar que a soberba (sentimento de arrogância em relação ao outro), que gera a inveja (desprezo pelo sucesso ou felicidade do outro), causa discórdias (redes de intrigas), essas podem promover desarmonia, notadamente em termos espirituais.
 
Em conclusão:  a solução  ao problema da inveja é esta: alimentar o espírito  por toda a vida  na misericórdia e na caridade, virtudes que são antídotos que impedem a ação nociva dos filhos da inveja e seus venenos vorazes e, por outro lado, alimentam a mansidão, a gratidão e a simplicidade.
 
 
PS. Todas as crônicas, artigos e ensaios desta coluna podem ser utilizados para fins estritamente acadêmicos, desde que citado o autor, na seguinte forma CARNEIRO M, Océlio de Jesus e respectiva fonte de publicação. 
Océlio de Morais