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O.J.C. MORAIS

OCÉLIO DE JESÚS C. MORAIS

PhD em Direitos Humanos e Democracia pelo IGC da Faculdade de Direito Coimbra; Doutor em Direito Social (PUC/SP) e Mestre em Direito Constitucional (UFPA); Idealizador-fundador e 1º presidente da Academia Brasileira de Direito da Seguridade Social (Cad. 01); Acadêmico perpétuo da Academia Paraense de Letras (Cad. 08), da Academia Paraense de Letras Jurídicas (Cad. 18) e da Academia Paranaense de Jornalismo (Cad. 29) e escritor amazônida. Contato com o escritor pelo Instagram: @oceliojcmorais.escritor

O desnível ético em processos judiciais

(Crônica judiciária de quase um quarto de século na magistratura)

Océlio de Morais
Não tem jeito. É assim mesmo.  Como no futebol, onde cada torcedor é um técnico e escala seu time ou seleção, no “tribunal ético” da opinião pública, todo mundo veste sua “toga” de julgador e “sentencia” o fato, e muitas das vezes sem saber se, realmente, é fato, conforme a sua  emoção. 
 
E neste “julgamento sumário", nem sempre a ética é o parâmetro à compreensão dos fatos e das pessoas.  
 
Isso está atrelado à natureza moral que cada pessoa carrega a partir da história de vida.  Aliás, isso sempre foi assim, desde o princípio e continuará assim, até final do tempo de existência de cada um. E esse “tribunal ético”  continuará com a sua pauta de julgamentos diários como algo autofágico, que revela  as  mazelas e as fragilidades humanas.  
 
Quando se trata de processo judicial, isso não muda muito. É uma percepção bem singular, mas objetiva. 
 
Se bem observado, cada processo judicial guarda uma questão ética   na origem  acerca do fato que originou a causa.  A  ameaça ou lesão a direito decorre, no fundo,  da consciência aética daquele que  passou como um rolo compressor sobre o direito de outrem.  Ou  ainda da consciência aética daquele que utiliza o processo  para o enriquecimento sem causa ou como espécie de vingança pessoal ou ainda como conluio entre as partes.
 
Não se espante, o leitor, pois , sim, muitas coisas antiéticas podem acontecer no âmbito dos processos judiciais. 
 
Nesse quase um quarto de século de magistratura trabalhista passaram processos com esse perfil pelas minhas mãos, por exemplo, mãe contra filha e filho contra pai; ex-esposa contra ex-marido; advogado contra advogado; e irmão contra irmão. 
 
Confesso que no início da carreira essas causas aéticas me assustaram muito porque, no meu ideário de julgador, às portas da Justiça só poderiam bater as causas reais (e não fictícias) e as causas éticas (e não aéticas). 
 
Considerava impossível que processos fossem utilizados para fins outros, outros bem diferentes e distanciados dos valores cardeais da Justiça.
 
Não sei ao certo, mas essa estupefação talvez  possa ser  explicada um pouco por uma certa visão purista que  tenho em relação às pessoas, dentro daquela perspectiva  teológica da caridade cristã. E também por uma certa medida da visão da filosofia socrática, que  continua a nos desafiar, atravessando milênios: “Não penses mal dos que procedem mal; pensa somente que estão equivocados”, conforme nos legou o pai da filosofia grega.
 
É um desafio muito grande - dificílimo, aliás; porém, não impossível - pensar  como Sócrates, pois a natureza humana é variável conforme as vicissitudes da vida.  
 
Um amigo magistrado, que é racionalista, me disse que eu “era um ingênuo” por um dia ter acreditado ou ainda acreditar que, à porta da Justiça, batessem apenas causas éticas.
 
Meu amigo é um magistrado centrado: ele disse também que, até mesmo dentro dos muros da Justiça, são cometidas injustiças. 
 
 Respondi-lhe que acreditava no princípio da boa-fé das pessoas, especialmente considerando que a regra processual “é clara”, como dizia Arnaldo César Coelho,  o ex-árbitro e ex-comentarista de futebol brasileiro. Considera-se litigante de má-fé aquele que alterar a verdade dos fatos;  ou  usar do processo para conseguir objetivo ilegal, por exemplo.
 
No entanto, o tempo do tempo de aprendizado vai mostrando que  entre as ondas do mar e o rochedo existe sempre um caramujo e no fundo do mar uma surpresa, que pode ser um tubarão ou outro ser carnívoro ainda desconhecido.  
 
Quero dizer que o sistema tolera coisas que não deveria aceitar. Quero dizer que  as páginas de um processo condensam muitas questões éticas e também não éticas e, entre elas, alguém pode ser o pequeno caramujo. 
 
O caramujo, em regra, é a parte que tem o seu direito violado e, acreditem ou não, até o próprio magistrado responsável o pode ser o caramujo, quando é vítima de ataques daquele que não gostou de sua decisão ou ainda  em razão de coisas (in) explicáveis ou inaceitáveis que podem ser feitas para tumultuar o processo e colocar o juiz sério sob suspeição.   Ou seja, o vilão  se faz  de vítima , passando a ideia de que o juiz sério, que cumpre a lei,  é o  vilão  algoz. 
 
Desqualificar a decisão  judicial transitada em julgado, inclusive sob todas as modalidades recursais, é uma das táticas das condutas antiéticas no processo. O objetivo dessa conduta antiética é transformar o magistrado sério e responsável  no vilão, naquele que viola o devido processo legal. É como se a fé pública do juiz sério não existisse. Não são raros os casos dessa natureza.
 
Então, o amigo magistrado tem lá suas razões. Basta  recordar os processos de  irmão contra irmão; de mãe contra filha; de filho contra pai; de ex-esposa contra ex-marido; de advogado contra advogado que um dia se diziam amigos, formavam sociedade e depois brigavam por dinheiro. São  casos onde a  questão ética ficou assim,  meio de escanteio.  
 
Por isso, é possível testemunhar que,  nesse quase um quarto de século de magistratura,  o desnível ético processual aumenta à medida que o valor da causa não guarda uma proporção adequada ou compatível entre o fato real, o direito ameaçado ou violado e o que realmente deveria corresponder como reparação.
 
Tempos depois daquela conversa com o amigo juiz,  um  professor-filósofo, do programa de doutorado na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, de quem fui aluno  -  hoje somos amigos e confrades acadêmicos - certa vez  me disse mais ou menos o seguinte: você é como um dos últimos romanos puros que acreditava na força ética da Justiça.
 
Todo estudioso da teoria do Direito sabe da relevância do legado ético e da universalidade da filosofia e do Direito romanos ao campo da ética e dos princípios da Justiça. 
 
Bem, a observação do professor-filósofo-amigo, fruto da sua generosidade para comigo, pode ser perfeitamente aplicada a todos os magistrados vocacionados  que levam a sério os valores éticos da Justiça. 
 
Foram exatamente esses fundamentos éticos e principiológicos  universais que me levaram à magistratura e nela apostar - ainda que como um pequeno beija-flor com sua minúscula gota d'água ajudando a pagar um incêncio  na floresta ou como uma pequena fagula nesse universo - que é possível lutar pela boa justiça e, assim, bem servi-la. 
 
E também a crença de que - mas isso ficou mais claro quando li "Ética a Nicómaco”, uma das obras de Aristóteles, que ganhei de um presente de aniversário de um advogado consciencioso  - o maior princípio ético da Justiça é  evitar a injustiça. 
 
Processos judiciais são laboratórios humanos  que, se bem observados, revelam como as questões éticas neles são tratadas. Portanto, a árdua missão de evitar injustiça começa pela preservação dos dois pilares éticos : a lealdade e a boa-fé processual.   
 
 Assim, é nesse contexto que adoto uma máxima aos meus julgamentos:  é dever do juiz fazer a justiça tão sincera como deseja recebê-la, porque este é o  paradigma ético em todas as relações processuais e pessoais.
 
ATENÇÃO: Em  observância à Lei  9.610/98, todas as crônicas, artigos e ensaios desta coluna podem ser utilizados para fins estritamente acadêmicos, desde que citado o autor, na seguinte forma (Océlio de Jesus Carneiro Morais (CARNEIRO M, Océlio de Jesus) e respectiva fonte de publicação. 
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