Eu que vivi mais de meio século – folheando as páginas do livro de minha vida – já desejei por muitas vezes voltar a ser criança. É possível que milhares de milhões de pessoas, lá nas suas apofonias diante do Sublime e Supremo Criador, também já tenham tido igual desejo.
O desejo não é, simplesmente, para delongar a vida na Terra ou ter a experiência de Benjamin Button, do filme “The Curious Case of Benjamin Button”, estrelado por Bread Pitt, que tem o processo natural da vida investido: adulto, com o passar dos anos, vai rejuvenescendo até voltar a ser criança, enquanto que a sua mulher amada vai envelhecendo naturalmente.
Mas, confesso: esse desejo é sempre recorrente, especialmente quando vejo a simplicidade das crianças: tudo o que fazem tem cheiro de inocência e essência de pureza. E, assim, vão contagiando de felicidade a vida daqueles que têm o coração aberto à simplicidade.
Embora compreenda ser natureza de cada um os processos de escolhas que conduzem à leveza da alma ou ao endurecimento do coração – o que é próprio da fase adulta – é perceptível que o adulto tem a tendência de complicr as coisas, muitas das vezes para se dar bem em detrimento do outro.
Essa coisa de tentar a todo custo se dar bem ou justificar desvios do livre arbítrio por qualquer meio para atingir o seu fim, é uma prova concreta de que o adulto esqueceu a inocência e a pureza da criança que foi um dia e tanto encheu de felicidade a família.
É óbvio que isso é presente em todos os setores da vida humana. Mas é muito mais presente no exercício do poder, quando o poder realmente não é exercido em prol do bem comum ou coletividade, embora a narrativa aparente uma capa ou moldura de que o bem-estar das pessoas esteja em primeiro lugar.
Acho que já deu para perceber que a grande antítese da vida repousa no conceito filosófico de ser criança (expressão da inocência e da pureza) e de ser adulto, este, cercado pelas teias de aço do sistema – teias que o vão sufocando a simplicidade e o tornando árido nas relações sociais.
Essa antítese – natureza criança e natureza adulta – obviamente inata do ser humano era tão visualmente presente antes e nos tempos de Jesus e ainda transcende os tempos, pois aponta que a natureza humana é variável, conforme os objetivos de vida.
Jesus separou bem o que representa ser criança e como deve ser o adulto durante a vida, para que ambos sejam merecedores dos Reinos dos Céus:
Referindo-se aos pequeninos ( crianças), Jesus disse: “(...) O Reino dos Céus pertence aos que são semelhantes a elas”. Esse diálogo aconteceu, quando os apóstolos impediam que crianças chegassem até o Mestre, conduta imediatamente repreendida :
– Então, disse Jesus: Deixem vir a mim as crianças e não as impeçam, pois o Reino dos Céus pertence aos que são semelhantes a elas” (Mateus, 19:14).
E ao se referir aos adultos, disse Jesus, quando delegou poderes de cura e milagres aos apóstolos:
– ‘Eu os estou enviando como ovelhas no meio dos lobos. Portanto, sejam astutos como as serpentes e sem malícia como as pombas” (Mateus, 10:10).
Jesus falava por parábolas: os”lobos” do seu tempo queriam designar o sistema romano aliado ao religioso.
A recomendação para que fossem “ astutos como as serpentes” não era para que fossem traiçoeiros, venenosos ou hostis, mas, sim, inteligentes e vigilantes para que não se deixassem enganar com as facilidades e armadilhas daquele sistema.
“Sem malícia como as pombas" tem o sentido de que, mesmo entre lobos, o homem não deve se tornar um outro lobo devorador das ovelhas ou, por outras palavras: não deve corromper a natureza criança : a simplicidade, um terreno fértil para a cultura das demais virtudes indispensáveis à compreensão de vida humana, que é um importante estágio para a ascese espiritual.
A racionalidade – que resumidamente pode ser dita como as possibilidade das escolhas no livre arbítrio – na vida adulta é que nos dirá se optamos ou não em sermos lobos vorazes devoradores de ovelhas, homens-lobos devoradores de outros homens ou seremos astutos como as serpentes e sem malícia como as pombas” , tal como recomendou Jesus.
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