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Garantia de emprego à mulher vítima de violência doméstica e familiar

Agressor ressarcirá SUS e diferenças de salários à mulher

Océlio de Jesus C. Morais

Na abordagem sobre “A proteção previdenciária ao trabalho da mulher” na Constituição Federal de 1988 (CF-1988), na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT e nas Convenções Internacionais da Organização Internacional do Trabalho (OIT), destaquei regras, valores e princípios que, de modo interdependente, atuam de modo preventivo ou repressivo contra as violações aos direitos e garantias fundamentais das mulheres brasileiras no mundo do trabalho.

Agora, tratarei da conexão entre a CLT e a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2005), alterada pelas Lei nº 13.871, de 17 de setembro de 2019  e Lei nº 13.882, de 8 outubro de 2019 sobre as garantias trabalhistas à mulher vítima de violência doméstica e familiar .

É o princípio universal relativo à dignidade e aos valores do ser humano - presente na Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, incorporada à ordem jurídica infraconstitucional brasileira pelo Decreto nº 19.841, de 22 de outubro de 1945, e alçada a natureza constitucional pela primeira vez no país pela Constituição Federal de 1967 (Cf., Art. 157, II) - que justifica a ampliação jurídica protetiva ao trabalho da mulher.

Isto é relevante afirmar para afastar qualquer ideia ou presunção de que, normativamente, são concedidos privilégios à mulher em detrimento do princípio da igualdade legal entre todos.

A declaração “igualdade de direito dos homens e das mulheres” - de que trata a Carta da ONU e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher - deve ser entendida como princípio geral que norteia outro princípio clássico do Direito: tratar desigualmente os desiguais - desigualdades segregacionistas de variadas naturezas que foram sendo justificadas conforme o pensamento jurídico de cada época passada, mas que a partir do século XX não se sustentaram mais.

A Era dos Direitos a partir da década de 1980, que de que trata Noberto Bobbio - o império da Lei como freio às tiranias e como garantia de proteção das pessoas - apontou então para o necessário reconhecimento aos direitos das mulheres. E o Brasil entendeu bem essa necessidade quando a Constituição Federal de 1988, Art. 5º, I consagra no Título dos Direitos e Garantias Fundamentais que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”.

Note-se bem: a própria Constituição faz a ressalva ao princípio da igualdade entre homens e mulheres ao avisar que a igualdade será nos “termos da lei”, ideia que é logicamente sequenciada no inciso XX, do Art. 7º, quando trata da proteção do mercado de trabalho da mulher.

Desse modo, a garantia de emprego provisória ou temporária que a Lei Maria da Penha assegura à mulher vítima de violência doméstica e familiar está compreendida neste critério de maior garantia constitucional e também na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher.

O inciso II, § 2º, Art. 9º, da Lei Maria da Penha, dispõe que “O juiz assegurará à mulher em situação de violência doméstica e familiar, para preservar sua integridade física e psicológica, a manutenção do vínculo trabalhista, quando necessário o afastamento do local de trabalho, por até seis meses”.

A manutenção do vínculo trabalhista por até seis meses, por outro lado, produz outras consequências jurídicas, as quais exigem alguns pontos de reflexões:

a) quem paga os salários e quem os recolhe os depósitos do FGTS do período de afastamento do emprego?

b) quem fica obrigado ao recolhimento das contribuições sociais ao INSS?

c) Será, este período de afastamento, considerado para efeitos de concessão de auxílio-doença comum ou auxílio-doença acidentário?

Essas questões jurídicas são relevantes, pois se a violência doméstica familiar contra a mulher não decorre do ato do empregador ou empregadora, porque não mantém vínculo familiar de qualquer natureza com a vítima, legalmente não será possível impor ao empregador o ônus de continuar pagando os salários, nem recolher os depósitos do FGTS do período de afastamento..

A Lei nº 8.036, de 11 de maio de 1990, que regulamenta o recolhimento dos depósitos mensais do FGTS e cria procedimentos ao saque, torna obrigatório os depósitos na vigência do contrato, mesmo nos casos de afastamento do trabalhador quando afastado do serviço por motivo de acidente do trabalho , doença ocupacional, doença profissional ou concausa.

Esta mesma regra foi mantida na CLT, com a Lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017,, ao dispor no § 1º, Art. 4º, que “ Computar-se-ão, na contagem de tempo de serviço, para efeito de indenização e estabilidade, os períodos em que o empregado estiver afastado do trabalho (...) por motivo de acidente do trabalho”.

E a Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991, no Art. 60, § 4º, atribui à empresa o dever de pagar salários apenas nos primeiros quinzes dias do afastamento, se comprovadamente o empregado ficar incapacitado para o seu trabalho ou para a sua atividade habitual por mais de 15 (quinze) dias consecutivos.

Portanto, a hipótese da manutenção do vínculo de emprego como garantia provisória à mulher vítima da violência doméstica e familiar, por até seis meses, previsto inciso II, Art. 2º, da Lei Maria da Penha, não vincula a empresa ou empregador ao pagamento de salários nem ao recolhimento do depósitos do FGTS do respectivo período de afastamento.

A quem incumbirá então essas obrigações?

A Lei Maria da Penha atribui essa responsabilidade à Seguridade Social como política de assistência social, não como benefício previdenciário genuíno; por conseguinte, como benefício exclusivamente social, à medida que o Art. 9º dispõe que a “Lei Orgânica da Assistência Social, no Sistema Único de Saúde”.

Haverá, por certo, adequação quanto ao valor do benefício de Assistência Social, pois a Lei nº8.742, de 7 de dezembro de 1993, no Art. 20, garante apenas a concessão de um salário-mínimo mensal, mas sem prejuízo da ações e serviços socioassistenciais de prestação continuada, nos CRAS, desde que necessário, conforme previsto no Art. 24-A, da LOAS.

Mas, se a mulher vítima da violência doméstica e familiar, que for afastada do serviço por até seis meses, tiver salário superior ao valor do mínimo legal, quem pagará a diferença entre o salário-mínimo e o seu salário superior?

Como a garantia de manutenção do vínculo de emprego previsto na Lei Maria da Penha se dará por um motivo distinto daqueles previstos na LOAS, a resposta ao problema pode ser obtida pelo § 6º, Art. 9º da Lei nº 13.971-2019.

 Este dispositivo, que deve ser interpretado e aplicado em conjunto com os §§ 4º e 5º do mesmo artigo, veda prejuízo ou ônus de qualquer natureza ao patrimônio da mulher e dos seus dependentes”.

Então isso significará, nos termos do § 4º, Art. 9º da Lei nº 13.871-2019, que:

a)      O agressor que - por ação ou omissão, causar lesão, violência física, sexual ou psicológica e dano moral ou patrimonial à mulher - fica obrigado a indenizar todos os danos causados, inclusive ressarcir ao Sistema Único de Saúde (SUS), de acordo com a tabela SUS, os custos relativos aos serviços de saúde prestados para o total tratamento da vítima.

Por outras palavras: agressor terá que restituir ao SUS a integralidade dos valores relativos às despesas que a Assistência Social teve com a mulher vítima da violência doméstica familiar.

O § 5º, Art. 9º destaca que, inclusive quanto às medidas protetivas, os custos ressarcidos pelo agressor.

Por certo que essa ação de cobrança obedecerá ao devido processo legal na Justiça Federal comum, em cuja lide terá no polo ativo a União Federal, representada pela Procuradoria Geral Federal, e, no polo passivo, o agressor.

b) Com relação ao pagamento da diferença de salário (quando a mulher for afastada do emprego por até seis meses), o § 6º, Art. 9º contempla a possibilidade judicial de se impor ao agressor a obrigação de complementar as eventuais diferenças salariais, visto que este parágrafo dispõe que o ressarcimento ao SUS e quanto aos custos com as medidas protetivas “não poderá importar ônus de qualquer natureza ao patrimônio da mulher e dos seus dependentes”.

No mesmo sentido de vedação da existência de ônus de qualquer natureza ao patrimônio da mulher, será possível também impor judicialmente ao agressor as obrigações de indenizar o FGTS da vítima pelo período respectivo que ficar afastada do emprego.

Decisão judicial neste sentido será de competência do próprio juiz criminal, visto que lhe incumbe também adotar as medidas protetivas em relação mulher vítima da violência doméstica e familiar, e aos seus dependentes.

Toda essa ordem protetiva à mulher vítima da violência doméstica e familiar - ao abranger medidas criminais e aspectos securitários e trabalhistas - também tem por objetivo efetivar o princípio da igualdade de direitos entre homens e mulheres.

A garantia de manutenção do vínculo de emprego, quando necessário o afastamento por até seis meses, constitui direito personalíssimo da mulher vítima doméstica e familiar, conforme previsto na Lei Maria da Penha: violência física, sexual, psicológico, moral ou patrimonial, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana.

A seguir, no próximo artigo, vamos examinar o viés previdenciário, quando ocorrer o afastamento do serviço: o problema será responder a seguinte questão: Será, o período de afastamento, considerado para efeitos de concessão de auxílio-doença comum ou auxílio-doença acidentário?

Océlio de Morais