Coronavírus e politização; parábola e fábula
Da negação e da afirmação da liberdade
Da negação e da afirmação da liberdade
Autor dos livros “Do Ódio” e “DA sedução”, Gabriel Liicenau, filósofo e ensaísta romano, também escreveu a obra intitulada “Da Mentira”, uma perspectiva histórico-filosófica desde a Grécia antiga até a década de 1990 sobre a manipulação dos fatos para interesses políticos de grupos de poder, qualificando-a como “mentira pública” ou “mentira coletiva”, sempre relacionando-as com os valores da virtude e com os desvalores da corrupção.
Ele destaca que a “verdade” e a “mentira”, apesar de totalmente opostas, ambas são ligadas por um elemento cognitivo inter-relacional: “a língua”. Por isso, ele conclui que “somente o homem pode mentir porque tem parte num algo que pode exprimir e, que, exprimindo-se, pode mover-se em duas direções totalmente opostas: a verdade e o falso” (2006. p. 9-10).
A comunicação verdadeira ou a manipulação dos fatos é, desse modo, inerente à liberdade das pessoas, como seres ontologicamente providos da racionalidade. A liberdade humana fica dividida entre essa qualidade racional (que domina as emoções) e a paixão (aquele sentimento capaz de alterar a razão).
Liicenau deixa bem claro que “A mentira não pode ser enunciada senão como momento negativo da liberdade” (2006, p. 10).
A assertiva de que somente o ser humano pode mentir é lógica, considerando que é dotado da razão, portanto, tem a liberdade natural para fazer escolhas.
E quanto à manipulação (deturpação ou ideologização) dos fatos para exclusivos interesses de poder político desvirtuados dos interesses coletivos do país, atesta a conduta consciente (portanto, racional) e tipifica a politização negativa da liberdade.
Por isso, a mentira (política) é qualificada como o momento negativo da liberdade e a verdade (política) é qualificada como momento positivo da liberdade.
Então, as narrativas históricas comprovam que a verdade e a mentira sempre estiveram presentes em muitos momentos políticos da história da humanidade.
Como isso pode ser aplicado aos tempos atuais nestes tempos da pandemia do coronavírus? O ambiente politizado que se criou e se alimenta no Brasil em torno desse grave problema da saúde, pode ser melhor compreendido nessa dicotomia entre “a verdade e o falso”, de que trata Gabriel Liicenau.
Essa politização nociva (que está no perigoso estágio “A” da massificação ideológica das informações), também me reporta à fábula sobre a “Mentira e a Verdade”.
De autor desconhecido, mas atribuída à tradição judaica, não se sabe ao certo se a célebre fábula precede ou não à pintura “La Vérité sortant du puits” (A Verdade saindo do poço), pintada em 1896 pelo francês Jean-Léon Gérôme, que, no dia 10 de janeiro de 1904, foi encontrado morto em frente a um retrato de Rembrandt e perto de sua própria obra, “A verdade saindo do povo”..
Pode ser que a fábula tenha inspirado Gérôme, como também é possível que tenha nascido a partir do retrato à óleo “La Vérité sortant du puits”.
A verdade é que essa fábula sempre será útil, assim como a belo quadro de Gérôme encanta pela simbologia, para pensarmos um pouco sobre verdades (fatos) e mentiras (fakes) nesses tempos pandêmicos de coronavírus.
Na fábula, a Mentira (sempre dissimulada e com má-fé) ludibria a Verdade (sempre transparente e de boa-fé), usando os estratagemas tipo “o dia que estava lindo” (lábia para adquirir a confiança) e do convite para beber se banhar na água fresca do poço (convite para se mostrar afável e confiável).
"Venha, senhora Verdade, a água do poço está fresca, límpida, saudável. Beba um pouco e aproveite para banhar-se, pois o dia está fazendo muito calor", disse a Mentira, dando sequência ao seu plano final que era apropriar-se das vestes (roupas) da Verdade,. Enquanto ela, despida, se banhava no poço refrescante, aproveitando-se da boa-fé da Verdade, a Mentira pega as roupas, veste-as e saí a caminhar livremente pelas ruas do vilarejo como se a própria Verdade fosse.
E todos as pessoas a admiravam e a aplaudiam pela aparência das vestes alvas e reluzentes da Verdade.
Percebendo o golpe da Mentira, a Verdade (com toda a pureza e inocência) sai inteiramente nua à procura da Mentira para recuperar suas vestes. Mas é escorraçada pelas pessoas, que a acusam de impura, profana, imoral e desavergonhada.
A lição da desta fábula é que, como regra geral, é mais fácil e comum aceitar a Mentira vestida com as roupas da verdade, do que aceitar a verdade nua e crua.
Fábula é uma estória com a intenção de passar uma mensagem ou lição moral. A mentira é uma ilusão, é uma invencionice, é algo ludibriado, uma falsidade. A verdade é relativa a fato real, é sincera , revela pureza e de sentimento.
O que pode ser fato (verdade) ou mentira (fake) nesse ambiente toxicamente politizado do problema do coronavírus no Brasil?
Fakes (com manipulação de informações) e tramas políticas nocivas aos reais interesses da coletividade podem ser comparados à Mentira vestida com as roupas da Verdade.
Nesse ambiente, com confinamentos residenciais - o que significa, em sentido prático, a restrição do direito à liberdade de ir e vir, além da restrição a direitos fundamentais - diariamente estamos sendo “sufocados” por intensa, incisiva e massiva veiculação de fatos e fakes, criando-se um estado de exceção quanto ao exercício de legítimos direitos sociais fundamentais.
Redes sociais e meios de comunicações sociais (ressalto que temos boas e saudáveis exceções) têm produzido, veiculado e disseminado um turbilhão de dados (às vezes reais; às vezes falsos) sobre o coronavírus.
Cada um procura passar a sua “verdade” (a pretexto de manter a sociedade bem informada), sem se importar com o que realmente as pessoas estão sentindo com esse volume incontrolável (e muitos sem crivo ético ou piedade social) das ditas informações.
A politização desnecessária do problema do coronavírus procura “criar” suas “verdades” e ignora que o problema que estamos sofrendo deveria servir para unir lideranças (públicas e privadas) em nosso país em benefício do trabalho e da saúde do povo. Deveria servir para unir o povo em defesa dos direitos ao trabalho e da seguridade social, sem ideologização partidária.
A politização do problema do coronavírus passa a péssima ideia de que o país não é civicamente amado e tampouco respeitado.
Entre uma notícia e outra; entre uma mensagem e outra; entre um vídeo e outro e entre uma live e outra tem havido nítidos interesses políticos eleitoreiros ou vinculados a interesses meramente econômicos.
Um e outro não são nada republicanos; portanto, são interesses que manipulam e massificam informações, vestindo-as com uma “capa” ou “roupa” da verdade.
Quando o problema do coronavírus no Brasil é explorado politicamente para fins distintos das reais necessidades da coletividade, estaria a sociedade preferindo ver a “Mentira vestida com as roupas da verdade” do que aceitar “a verdade nua e crua?”, como dito na fábula.
São interesses que fazem parte de um projeto de poder político-econômico - poder que na história sempre dividiu os homens muitas das vezes ignorando as liberdades e massacrando povos. Os exemplos históricos mostram que a luta cega pelo poder nunca acaba bem. Depois, entre si, quando vão “fatiar o bolo”, aqueles que se reuniram por uma conveniência política, vão novamente se digladiar entre si. E começa tudo de novo...
Sêneca (o Moço), nascido em Córdoba (Espanha), tornou-se senador romano, nos deixou este testemunho no livro “Aprendendo a viver” : “a vaidade da fortuna e do poder obscurecem a liberdade”. (Pocket, 2019, p. 11).
Somente consegue identificar essa realidade politizada do problema do coronavírus no Brasil aquele que, com isenção de espírito e senso crítico, sabe separar o “joio do trigo”.
A parábola do “joio e o trigo” trata da existência do mal no meio do bem e da definitiva separação entre eles.
Está descrita no Evangelho segundo São Mateus (13:24-30; 36-43) - temas que, mais tarde, Santo Tomás de Aquino aborda na questão 20 (”Da bondade e da malícia dos atos humanos exteriores”) na Suma Teológica, explicando-os como decorrentes da razão e da vontade humana: “O livre arbítrio é a faculdade da razão e da vontade, que elege o bem e o mal”, sendo que, nessa perspectiva, “o mal corrompe totalmente o bem”.
A boa política, aquela voltada aos reais interesses republicanos e reais necessidades do povo, é indispensável à democracia, especialmente para o exercício da tolerância. Por isso, a política cidadã (como afirmação da liberdade) pode ser comparada ao bom trigo (é coisa boa e útil a todos); de outro lado, a politização eleitoreira do coronavírus (negação da liberdade) pode ser tida como o joio (que não é coisa boa para a sociedade).
Para encerrar essas reflexões, recorde-se o Evangelho São Mateus: “preciso separar o joio do trigo”. Então, deixo uma pergunta à reflexão.. O que deve prevalecer: a Mentira vestida com as roupas da verdade ou que aceitar a verdade nua e crua?
______
Psot Scriptum: Nos termos da Lei 9.610, de 1998, permito a utilização do artigo para fins exclusivamente acadêmicos, desde que sejam citados corretamente o autor e a fonte originária de publicação, sob pena de responsabilização legal.