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As virtudes de Sócrates

Océlio de Morais

Até no momento do auto-envenenamento Sócrates foi virtuoso. E no tempo em que permaneceu preso, debateu com seus discípulos sobre as virtudes filosóficas. Acusado de cometer “crime público”, nem  no último dia de vida,  Sócrates renunciou à sua filosofia moral baseada na vida virtuosa.

O filósofo grego foi condenado pelo  tribunal ateniense mediante as acusações de infidelidade aos deuses gregos, por desrespeito aos costumes da cidade e corrupção da juventude.

Mas a história comprova que Sócrates  nunca cometeu tais crimes. A partir dos livros “Justiça”,  Fédon e Apologia de Sócrates – todos de autoria de Platão –  acredito ser possível afirmar que a condenação do filósofo se deu, no fundo,  por motivação política de seus adversários sofistas   – assim posso interpretar –  porque a filosofia moral de Sócrates condenava a corrupção na política, condenava o relativismo das virtudes e a chamava a atenção para a ignorância absoluta do povo. 

Os sofistas de então – também filósofos gregos – viajavam de cidade em cidade para divulgar suas ideias e conhecimentos, mas cobrando em dinheiro. 

A filosofia moral de Sócrates se opõe aos sofismas, aquelas espécies de argumentos que têm aparência de certeza, mas, no fundo, são relativistas e ardilosos. Para a filosofia socrática, os sofistas alimentavam a ignorância absoluta do povo.  Sócrates, portanto, desagradou o sistema da sua época e pagou com a vida por ter sido coerente na defesa de sua filosofia moral. 

Sócrates sempre viveu com honradez. Fiel ao que pregava e  coerentemente viveu, o filósofo grego (470 a.C a 399 a.C)  recusou a oportunidade da fuga que amigos haviam lhe oferecido, assim justificando, segundo  relato de Fédon de Élis, um dos filósofos que estava com ele na prisão no instante do auto-envenenamento.

– “(...) o  homem me parecia felicíssimo, Equécrates, tanto nos gestos como nas palavras, reflexo exato da intrepidez e da nobreza com que se despedia da vida”, relatou Fédon, conforme Platão no livro “Fédon, diálogo sobre a alma e a morte de Sócrates , acrescentando que as última palavras de Sócrates foram as seguintes, depois que lhe falaram  sobre a quantidade de veneno que deveria tomar: “Só preparamos, Sócrates, a quantidade que nos parece suficiente”, ao que Sócrates respondeu: 

– “Compreendo. Mas pelo menos é permitido, e até um dever, pedir aos deuses que façam feliz a passagem deste mundo para o outro. É o que peço. Prouvera que me atendam!”, disse Sócrates. 

Fédon relata ainda que Sócrates “levou a taça aos lábios e com toda a naturalidade, sem vacilar um nada, bebeu até à última gota” e, por fim, Sócrates despediu-se dos amigos, dizendo: 

– “Quanto ao que vos tenho dito tantas vezes, que depois de beber o veneno não ficarei convosco mas irei compartilhar da dita dos bem aventurados” . E , conforme ainda Fédon, reproduzido por Platão, assim foi o gesto final do sábio dos sábio dentre todos os filósofos que a humanidade já conheceu,:

– Sócrates [pegou] a taça [com veneno], que a tomou das mãos dele com toda a tranquilidade, sem o menor tremor nem alteração da cor ou das feições”.

Um parêntesis: Eu havia lido Fédon na década  de 1980, quando estudante de teologia e filosofia, mas foi necessário relê-lo – agora com um olhar mais maduro – para melhor compreender a filosofia ética de Sócrates. Fecho o parêntesis. 

No diálogo entre  Fédon,  Equécrates, Símias, Cebete e outros filósofos –  na obra  “Fédon, diálogo sobre a alma e a morte de Sócrates” – a ideia central é a imortalidade da alma e  a morte de Sócrates.  Mas é desenvolvida num confronto entre as virtudes e as desvirtudes humanas. A obra foi escrita por volta do ano  370 a.C.; contudo,  a temática  relativa às virtudes do poder não perde a atualidade.

A partir da filosofia moral de Sócrates, esta pensata tem por objetivo provocar a reflexão se é preterível a honradez para justificar o relativismo ou a mortificação  das virtudes. 

Fédon de Élis, que também foi discípulo de Sócrates, o visitou na prisão em Atenas e, a partir de sua narrativa, Platão   relata os últimos dias e minutos  de vida de seu mestre, reproduzindo o diálogo sobre as virtudes, o exercício do poder, a alma, o corpo e a morte. 

Da filosofia moral de Sócrates, para a finalidade desta reflexão, destacam-se as virtudes da sabedoria, da coragem,  da temperança  e da justiça – virtudes que, na visão de Sócrates, são objetivos que a alma pretende alcançar através do conhecimento, esta, concebida como “algo imortal, invisível, que se assemelha ao divino",  que habita temporariamente um corpo. 

Em oposição às virtudes, estão as injustiças, a tirania ou a rapina, a absoluta ignorância, as quais são identificadas  e encontradas entre “aqueles homens amigos da riqueza e amantes do poder”.

No capítulo XXXII, a disputa entre as virtudes e as desvirtudes humanas está bem evidenciada quando são colocados em lados opostos os  homens "amigos da sabedoria" e os homens “amantes do poder”.

Na visão socrática, os   homens  "amigos da sabedoria“ são aqueles que deixam a “Filosofia dirigir-lhes a alma”, enquanto que os homens “amantes do poder”, são  os que têm apetite desregrados pela riqueza e pelo poder. Ou seja, os homens audaciosos e sem pudor ético,  aqueles “(...)  que não têm medo da ruína de sua própria casa, como a maioria dos homens, amigos das riquezas, nem temem a falta de honrarias e a vida inglória, como se dá com os amantes do poder.” 

A antítese entre as virtudes e as desvirtudes – é seguro afirmar que esse problema sempre esteve nas relações humanas como um dilema da natureza do poder  –  também posso dizer que ele decorre do desprezo conscientes das virtudes e do culto às desvirtudes, bem como do relativismo das virtudes.  

Aliás, na época de Sócrates , e assim também foi com Platão,  condenou-se o relativismo das virtudes pelos sofistas, fato  que, na atualidade, também está, infelizmente,  em alta evidência e com incrédula aceitação em setores específicos da sociedade.  

O relativismo das virtudes – diferente é o relativismo doutrinário sobre ideias variáveis  que dependem das condições de meio e de tempo – é aqui colocado como a relativização  manipuladora de que a virtude depende do ponto de vista  ideológico de quem comete um ato  ilícito ou aético. 

Se bem observado, o relativismo das virtudes – como acentuado por Platão na obra “Fédon” –  é uma prática enraizada no sistema, prática reveladora dos desvios ou corrupção do poder. Por isso,  é muito mais presente  entre os “amantes do poder”, na medida em que o poder lhes oferece tantas vantagens e facilidades, ao ponto de lhes cegar a visão ou  o discernimento entre o legal e o ilegal, entre o certo e o errado. 

Então, aqui também é  razoável dizer que  a “ruína da própria casa” é uma consequência anunciada para o “amante do poder”, porque – como também disse o filósofo grego – ele é uma “pessoa insensata” , pois “não tem medo de um mal ainda maior, nem  temor (...) de que lhe aconteça” (...) ”antes mesmo da morte.”

Eis uma evidência de que, na perspectiva da obra “Fédon”, o exercício das virtudes é o caminho que deve ser escolhido pelo sábio  (o amigo da sabedoria) em oposição absoluta ao amigo ou amante do poder, quando este opta pela prática das injustiças, da tirania. da rapina e da absoluta ignorância.

Nas palavras de Sócrates, conforme relato na obra referida, isso  pode ocorrer entre os “amantes do poder”, porque eles não têm “medo da ruína de sua própria casa“.  

Faço, contudo, uma ponderação,  precisamente para não generalizar:  o relativismo das virtudes será mais visível entre os  amantes e amigos do poder – , mas daquele poder viciado e corrompido – pois, em lado oposto, o exercício do poder em defesa das virtudes e dos direitos da sociedade é algo legítimo e algo justo.

Em conclusão: a filosofia moral de Sócrates, opostas à filosofia sofista, mostra e recomenda que ainda hoje é preferível a vida coerente com as virtudes – porque é das virtudes que a honradez se alimenta – do que preterir a ética e as leis, ainda que a finalidade passageira seja ser aceito no clube dos “amantes do poder” corrompido.

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ATENÇÃO: Em  observância à Lei  9.610/98, todas as crônicas, artigos e ensaios desta coluna podem ser utilizados para fins estritamente acadêmicos, desde que citado o autor, na seguinte forma: MORAIS, O.J.C.;  Instagram: oceliojcmoraisescritor

Océlio de Morais