A Montblanc e a BIC Océlio de Morais 09.11.21 9h25 Quando pensei na magistratura, estava bem viva na minha memória a narrativa de “Eles, os juízes, visto por um advogado”, do jornalista, político e jurista italiano Piero Calamandrei, com suas especiais lições, resultado de suas experiências forenses, especialmente quando se refere ao relacionamento entre juízes e advogados, que deve ser cordial, respeitoso e profissional. Numa delas, Calamandrei, ao comentar que “o juiz conhece o direito” - tradução do aforismo “iura novit curia “ - interpretou que o magistrado deve, por si mesmo, encontrar a lei adequada ao caso concreto, ainda que não indicada pelas partes. Por outro lado, Calamandrei fez uma advertência ao advogado: “se quiser ganhar a causa, o advogado não deve tomar ares de ensinar ao juiz aquele Direito, em que a boa educação impõe considerá-los mestres.” Não é que Calamandrei tenha pretendido estabelecer uma relação de hierarquia funcional entre juízes e advogados; mas, apenas do alto de sua experiência forense, sabia separar o joio do trigo: ao advogado cabe postular, com técnica e boa educação (linguagem respeitosa); ao juiz cabe decidir com as leis, ainda que não citados pelas partes. O “elogio (com discrição) aos juízes” não significa um “servilismo”, mas respeito à própria Justiça, pois - disse ele : "O elogio dos juízes ou dos advogados será o elogio da Justiça e dos homens de boa vontade, que, sob a toga do juiz,, ou sob a beca do advogado dedicaram sua vida a servi-las". O livro é uma lição de civilidade forense, cuja primeira edição italiana ocorreu em 1935 e a quarta, em 1954, e entre uma e outra, o presidente Getúlio Vargas, em 1943, outorgou ao Brasil a Consolidação das Leis do Trabalho, com várias inspirações na Carta Del Lavoro italiana, de 1927, notadamente as regras relativas ao assistencialismo e ao custeio sindical . Faço essas referências porque, apesar de não ter sido advogado trabalhista, mas civilista, dentre as lições de Calamandrei - quanto ao juiz cabe decidir conforme a lei, ainda que não citada pelas parte - é possível identificar, na CLT varguista, pelo menos duas regras que se assemelham ao ideário defendido pelo jurista italiano. Uma, o originário artigo 765, que dispõe que “Os Juízos e Tribunais do Trabalho terão ampla liberdade na direção do processo e velarão pelo andamento rápido das causas, podendo determinar qualquer diligência necessária ao esclarecimento delas”; e o artigo § 1º, 852-I, o qual autoriza ao juiz adotar, “em cada caso a decisão que reputar mais justa e equânime, atendendo aos fins sociais da lei e as exigências do bem comum” - este com redação pela Lei nº 9. 9.967,de 2000. O excerto ilustra bem, dentro da série especial "Crônicas judiciárias, quase um quarto de século de magistratura”, essa crônica com o título “A Montblanc e a BIC”, um caso que aconteceu logo nos meus primeiros meses de magistratura - aquele período onde o novel magistrado se defronta com inúmeras dúvidas normativas e uma quase indisfarçável insegurança na condução de processos e audiências. O título da crônica, antes, exige um breve parêntesis para duas palavras sobre as duas canetas esferográficas, que são conhecidas mundialmente e que, certamente, muitas delas, já foram usadas também por milhões de pessoas mundo afora. Desde o seu patenteamento em 1909 por dois alemães, a caneta Montblanc sempre esteve associada ao luxo, à sofisticação, ao charme e ao poderio econômico do seu proprietário, porque seus variados modelos geralmente são cravejados “de diamantes, rubis, esmeraldas ou safiras e revestida ouro, aço inox ou fibra de carbono”, conforme consta das informações no site da oficial da empresa. Sua referência ao Mont Blanc, a mais alta montanha da União Europeia, provavelmente não foi casual pelos dois inventores alemães (um engenheiro e outro banqueiro), porque é provável que queriam um produto associado à imponência, ao fascínio e ao charme dos alpes Mont Blanc. Uma marca francesa, a caneta BIC - a história está no site oficial BicWorld - homenageia o seu inventor, Marcel Bich, desde 1950, quando lançou a primeira versão. É uma caneta esferográfica popular e, portanto, mais acessível economicamente aos consumidores, porque a maior produção é à base de plástico. Confesso que minhas condições financeiras nunca me permitiram comprar uma caneta esferográfica Montblanc - e sinceramente nunca a desejei -, portanto, minha parceira de sempre, desde que aprendi a escrever o bê-a-bá, foi a caneta BIC, aquela tinta grossa, pois a tinta fina era a mais cara, inacessível às posses daquela primeira infância. O ano foi 1997, primeiro semestre. Os processos eram físicos, condição que exigiam despachos escritos manualmente. Poucos despachos eram feitos à máquina de escrever. A caneta BIC - escrita fina ou grossa - era a que eu usava nos meus mesmos despachos e à assinatura de sentenças. Era algo meio personificado, pois sempre gostei de usar a cor azul. Um professor de processo civil, que foi desembargador federal na cidade do Recife, me revelou um de seus personalismos: disse-me que sempre usava a caneta BIC com tinta verde. Justificou que era uma forma de ter maior controle sobre seus despachos, evitando-se fraudes. Não sei se o tal controle funcionava com eficiência como me disse o professor-desembargador. Mas essa história que envolve as canetas Montblanc e BIC, não teve nada a ver com a cor da tinta de uma ou outra caneta; porém, mas tive a clara sensação de que aquilo se tratou de uma espécie de exibicionismo, muito diferente da pregação de Calamandrei: ao advogado cabe postular, com técnica e boa educação, no relacionamento com o magistrado. O advogado, que já faleceu, tinha muita experiência em processos trabalhistas e, por isso, possuía uma grande clientela. Nos corredores do foro trabalhista em Belém, tinha a fama de ser um expert em processos - e posso afirmar que, de fato, foi um estudioso e bem preparado advogado - e ainda um experimente profissional na arte retórica e na argumentação, seja nas audiências processuais, seja nas audiências específicas que solicitava a juíz para esclarecer e defender os interesses de seus clientes. Certa vez, a pedido, o recebi para uma audiência específica, no gabinete do juiz substituto numa das Varas trabalhistas da Capital. É dever funcional do juiz atender aos advogados nesse tipo de audiência, quando solicitadas previamente. Ele chegou com um certo ar de superioridade. Confesso que me senti um pequeno Davi diante do gigante Golias. Minha funda era uma caneta esferográfica BIC escrita grossa e tinta cor azul. O advogado parecia um “Golias”, um gigante cheio de força e poder, portando a caneta Montblanc, que foi retirada de sua pasta executiva para assinar seu requerimento e para receber a carga de vistas de um processo para exame fora da secretaria judiciária . Afinal, ali estavam um novel juiz com poucos pouco meses na magistratura e um advogado muito famoso e muito experiente. Um advogado que, quando eu era jornalista, cheguei a entrevistá-lo com admiração pelo seu talento e conhecimento. Sim, ali, estavam um juiz, com uma caneta BIC, e um advogado, com uma caneta Montblanc Antes de assinar a “carga processual", o advogado levou quase 30 minutos repetindo tudo o que estava na petição, e com uma entonação de voz professoral, arrematou mais ou menos assim: excelência, os pedidos não têm como ser indeferidos; têm a força de minha caneta [Montblanc], disse, meu sorrindo. Naquele momento, lembrei-me de Calamandrei e de uma lição que, ainda hoje, guardo como preciosidade à minha carreira. No dia dia de minha posse (ocorrida no dia 13.12.1996), um magistrado de 2º grau, disse-me em meio ao abraço de felicitações: "não esqueça, o juiz não deve se iludir com as aparências do que está escrito nas peças processuais e nem se intimidar diante da ameaça que possa acontecer como efeito de suas decisões. Decida sempre com a sua melhor convicção, pois se houver erros, o tribunal o corrigirá.” Ao levantar para sair, também levantei-me e disse ao advogado: “Pode deixar, doutor: o senhor requereu com a sua Montblanc; eu vou decidir com a minha caneta BIC tinta grossa, mesmo”. Daquele episódio, podem ser pensadas duas coisas: realmente não há servilismo entre advogado e juiz, e nem entre juiz e advogado, pois ambos exercem seu mister com independência, sendo irrelevante se o pedido foi assinado com uma esferográfica Montblanc ou com uma caneta BIC de plástico e com tinta grossa comprada num camelô da esquina ou numa papelaria. O magistrado não pode decidir - sob pena de não ser a Justiça - atrelado à imponente força do poder econômico de quem possui uma Montblanc. A outra: pela própria natureza da relação, decorre uma espécie de “hierarquia” processual: o advogado requer (com ou sem Montblanc); o juiz defere ou indefere com uma simples caneta BIC; noutro grau, o tribunal mantém ou reforma a decisão; e a instância recursal hierarquicamente superior, também decide com independência, indistintamente. Com Montblanc ou com BIC, o relevante é que o pedido tenha fundamento fático e a Lei o ampare. E o magistrado deve decidir, conforme as provas, em favor de quem realmente tenha o direito ameaçado ou violado, seja trabalhador, seja o tomador de serviços ou seja empregador. ATENÇÃO: Em observância à Lei 9.610/98, todas as crônicas, artigos e ensaios desta coluna podem ser utilizados para fins estritamente acadêmicos, desde que citado o autor, na seguinte forma (Océlio de Jesus Carneiro Morais (CARNEIRO M, Océlio de Jesus) e respectiva fonte de publicação. Assine O Liberal e confira mais conteúdos e colunistas. 🗞 Entre no nosso grupo de notícias no WhatsApp e Telegram 📱 Palavras-chave colunas océlio de morais COMPARTILHE ESSA NOTÍCIA Océlio de Morais . Desculpe pela interrupção. Detectamos que você possui um bloqueador de anúncios ativo! Oferecemos notícia e informação de graça, mas produzir conteúdo de qualidade não é. Os anúncios são uma forma de garantir a receita do portal e o pagamento dos profissionais envolvidos. Por favor, desative ou remova o bloqueador de anúncios do seu navegador para continuar sua navegação sem interrupções. Obrigado! 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