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O.J.C. MORAIS

OCÉLIO DE JESÚS C. MORAIS

PhD em Direitos Humanos e Democracia pelo IGC da Faculdade de Direito Coimbra; Doutor em Direito Social (PUC/SP) e Mestre em Direito Constitucional (UFPA); Idealizador-fundador e 1º presidente da Academia Brasileira de Direito da Seguridade Social (Cad. 01); Acadêmico perpétuo da Academia Paraense de Letras (Cad. 08), da Academia Paraense de Letras Jurídicas (Cad. 18) e da Academia Paranaense de Jornalismo (Cad. 29) e escritor amazônida. Contato com o escritor pelo Instagram: @oceliojcmorais.escritor

A Montblanc e a BIC

Océlio de Morais

      Quando pensei na magistratura,  estava bem viva na minha memória a narrativa de “Eles, os juízes, visto por um advogado”, do jornalista, político e jurista italiano Piero Calamandrei, com  suas especiais lições, resultado de suas experiências forenses, especialmente quando se refere ao relacionamento entre juízes e advogados, que deve ser cordial, respeitoso e profissional.

       Numa delas, Calamandrei, ao comentar que “o juiz conhece o direito” - tradução do aforismo “iura novit curia “ - interpretou  que o magistrado  deve, por si mesmo, encontrar a lei adequada ao caso concreto, ainda que não indicada pelas partes. 

       Por outro lado, Calamandrei fez uma advertência ao advogado: “se quiser ganhar a causa, o advogado não deve tomar ares de ensinar ao juiz aquele Direito, em que a boa educação impõe considerá-los mestres.”

Não é que Calamandrei  tenha pretendido estabelecer uma relação de hierarquia funcional entre juízes e advogados; mas,  apenas do alto de sua experiência forense,   sabia separar o joio do trigo: ao advogado cabe postular, com  técnica e boa educação (linguagem respeitosa); ao juiz cabe decidir com as leis, ainda que não citados pelas partes.

        O “elogio  (com discrição) aos juízes” não significa um “servilismo”, mas respeito  à própria Justiça, pois - disse ele :

"O elogio dos juízes ou dos advogados será o elogio da Justiça e dos homens  de boa vontade, que, sob a toga do juiz,, ou sob a beca do advogado dedicaram sua vida  a servi-las".

O livro é uma lição de civilidade forense, cuja primeira edição italiana ocorreu em 1935 e a quarta, em 1954,   e entre uma e outra, o presidente Getúlio Vargas, em 1943, outorgou ao Brasil a Consolidação das Leis do Trabalho,   com várias inspirações na  Carta Del Lavoro italiana, de 1927, notadamente as regras relativas ao assistencialismo e ao custeio sindical .

Faço essas referências porque, apesar de não ter sido advogado trabalhista, mas civilista, dentre as lições de Calamandrei  - quanto ao  juiz cabe decidir conforme a lei, ainda que não citada pelas parte - é possível identificar, na CLT varguista, pelo menos duas regras que se assemelham ao ideário defendido  pelo jurista italiano.

 Uma,  o originário  artigo 765, que dispõe que “Os Juízos e Tribunais do Trabalho terão ampla liberdade na direção do processo e velarão pelo andamento rápido das causas, podendo determinar qualquer diligência necessária ao esclarecimento delas”; e o artigo § 1º,  852-I, o qual autoriza ao juiz  adotar, “em cada caso a decisão que reputar mais justa e equânime, atendendo aos fins sociais da lei e as exigências do bem comum” - este com redação pela Lei nº 9. 9.967,de 2000.

O excerto ilustra bem, dentro da série especial "Crônicas judiciárias, quase um quarto de século de magistratura”,  essa crônica com o título “A Montblanc e a  BIC”, um caso  que aconteceu  logo nos meus primeiros meses de magistratura - aquele período onde o novel magistrado se defronta com inúmeras dúvidas normativas  e  uma quase indisfarçável  insegurança na condução de processos e audiências. 

O título da crônica, antes, exige um breve parêntesis para duas palavras sobre as duas canetas esferográficas,  que são conhecidas mundialmente e que, certamente,  muitas delas, já foram usadas também por milhões de pessoas mundo afora.  

Desde o seu patenteamento  em 1909 por dois alemães, a caneta Montblanc sempre esteve associada ao luxo, à sofisticação, ao charme e ao poderio econômico do seu proprietário, porque seus variados modelos geralmente são cravejados “de diamantes, rubis, esmeraldas ou safiras e revestida  ouro, aço inox ou fibra de carbono”, conforme consta das informações no site da oficial da empresa. 

Sua referência ao Mont Blanc, a  mais alta montanha  da União Europeia, provavelmente não foi casual pelos dois inventores  alemães (um engenheiro e outro banqueiro), porque é provável que queriam um produto associado à imponência, ao  fascínio e ao charme dos alpes Mont Blanc.

Uma marca francesa, a caneta BIC -  a história está  no site oficial BicWorld -   homenageia o seu inventor, Marcel Bich, desde 1950, quando lançou a primeira versão. É uma caneta esferográfica popular e, portanto, mais acessível economicamente aos consumidores, porque a maior produção é à base de plástico.

Confesso que minhas condições financeiras nunca me permitiram comprar uma caneta esferográfica Montblanc - e sinceramente nunca a desejei -,  portanto,  minha parceira de sempre, desde que aprendi a escrever o  bê-a-bá, foi a caneta BIC, aquela tinta grossa, pois a tinta fina  era a mais cara, inacessível às posses daquela primeira infância.

O ano foi 1997, primeiro semestre. Os processos eram físicos, condição que exigiam despachos escritos manualmente.  Poucos  despachos eram feitos à máquina de escrever.  A caneta BIC - escrita fina ou grossa - era a que eu usava nos meus  mesmos despachos e à assinatura de sentenças.  

Era algo meio personificado, pois sempre gostei de usar a cor azul.  Um professor de processo civil, que foi desembargador federal na cidade do  Recife, me revelou um de seus personalismos: disse-me que sempre usava a caneta BIC com tinta verde. Justificou que era uma forma de ter maior controle sobre seus despachos, evitando-se fraudes.

Não sei se o tal controle funcionava com eficiência como me disse o professor-desembargador. 

Mas  essa história que envolve as canetas  Montblanc e BIC, não teve nada a ver com a cor da tinta de uma ou outra caneta; porém, mas tive a clara sensação de que aquilo se tratou de uma espécie de  exibicionismo, muito diferente da pregação de Calamandrei: ao advogado cabe postular, com  técnica e  boa educação,  no relacionamento com o magistrado.

 O advogado, que já faleceu, tinha muita experiência em processos trabalhistas e, por isso, possuía  uma  grande  clientela.   Nos corredores  do foro trabalhista em Belém,  tinha a fama de ser um expert em processos - e posso afirmar que, de fato, foi um estudioso e bem preparado advogado - e  ainda  um experimente profissional na arte retórica e na argumentação, seja nas audiências processuais, seja nas audiências específicas que solicitava a juíz para esclarecer e defender os interesses de seus clientes. 

Certa vez, a pedido, o recebi para uma audiência específica, no gabinete do juiz substituto numa das Varas trabalhistas da Capital. É dever  funcional do juiz atender  aos advogados nesse tipo de audiência, quando solicitadas previamente.

Ele chegou com  um certo ar de superioridade.  Confesso que me senti  um pequeno Davi diante do gigante Golias. Minha funda era uma caneta esferográfica BIC escrita grossa  e tinta  cor azul. O advogado parecia um “Golias”, um gigante cheio de força e poder,  portando  a caneta Montblanc, que foi retirada de sua  pasta  executiva para assinar seu requerimento e para receber a carga de vistas  de um processo para exame  fora da secretaria judiciária . 

 Afinal, ali estavam um novel juiz  com poucos pouco meses na magistratura e um advogado  muito famoso e muito experiente. Um advogado que, quando eu era jornalista, cheguei a entrevistá-lo com admiração pelo seu talento e conhecimento. 

Sim, ali, estavam um juiz, com uma caneta BIC, e um advogado, com uma caneta Montblanc

Antes de assinar a “carga processual", o advogado levou quase 30 minutos repetindo  tudo o que estava na petição, e com uma entonação de voz professoral, arrematou mais ou menos assim: excelência, os pedidos não têm como ser indeferidos; têm a força de minha caneta [Montblanc], disse, meu sorrindo. 

Naquele momento, lembrei-me de Calamandrei e de uma lição que,  ainda hoje,  guardo como preciosidade à minha carreira.  

No dia dia de minha posse (ocorrida no dia 13.12.1996), um magistrado de 2º grau,  disse-me em meio ao abraço de felicitações: "não esqueça, o juiz não deve se iludir com  as aparências  do que está escrito nas peças processuais e nem se intimidar diante da ameaça que possa acontecer como efeito de suas decisões. Decida sempre com a sua melhor convicção, pois se houver erros, o tribunal o corrigirá.” 

Ao levantar para sair, também levantei-me e disse ao advogado: “Pode deixar,  doutor: o senhor requereu com a sua Montblanc; eu vou decidir com a minha caneta BIC tinta grossa, mesmo”.

Daquele episódio, podem ser pensadas duas coisas: realmente não há servilismo entre  advogado e juiz, e nem entre juiz e advogado, pois ambos exercem seu mister com independência, sendo irrelevante se o pedido foi assinado com uma esferográfica Montblanc ou com uma caneta BIC  de plástico e com tinta grossa comprada num camelô da esquina ou numa papelaria.

O magistrado não pode decidir - sob pena de não ser a Justiça - atrelado à imponente força do poder econômico de quem possui  uma Montblanc.

A outra: pela própria natureza  da relação, decorre uma espécie de “hierarquia” processual: o advogado requer (com ou sem Montblanc); o juiz defere ou indefere com uma simples caneta BIC; noutro grau, o tribunal mantém ou reforma a decisão;  e a instância recursal hierarquicamente superior, também decide com independência, indistintamente.  

Com Montblanc ou com BIC, o relevante é que o pedido tenha fundamento fático e a Lei o  ampare. 

E o magistrado deve  decidir, conforme as provas, em favor  de quem realmente tenha o direito ameaçado ou violado, seja  trabalhador, seja o tomador de serviços ou seja empregador.

 

ATENÇÃO: Em  observância à Lei  9.610/98, todas as crônicas, artigos e ensaios desta coluna podem ser utilizados para fins estritamente acadêmicos, desde que citado o autor, na seguinte forma (Océlio de Jesus Carneiro Morais (CARNEIRO M, Océlio de Jesus) e respectiva  fonte de publicação. 

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