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A manipulação ideológica da liberdade

Océlio de Morais

Em 1966, ela defendeu a “liberdade para ser livre”. Em 1967, ele protestou contra a censura: “Eu digo não, eu digo não, é proibido proibir, é proibido proibir”.

Para ela, a liberdade é a razão fundamental  da dimensão política  humana, mas também  uma garantia para outros valores humanos. Para ele, a liberdade política é incompatível com a proibição, por isso, bradou que é proibido proibir.

Refiro-me à filósofa política Hannah Arendt e ao músico, cantor e compositor Caetano Veloso, respectivamente.  Ela, alemã de origem judaica, ativista das liberdades  e dos direitos dos judeus; ele, brasileiro,  um dos exilados políticos pelo regime militar de 1969.  Nascida em 14 de outubro de 1906, faleceu aos 69 anos, em 4 de dezembro de 1975, na cidade de Nova Iorque.

Não há registros de que os dois personagens tenham se encontrado em algum momento ou trocado correspondências pessoais, mas os dois pensamentos – apesar de expressados em momentos e ambientes territoriais e culturais diferentes  –  oferecem a ideia da liberdade política, naquele sentido  concebido por Aristóteles,  segundo o  “homem é um ser naturalmente político”, que busca a  sua completude na vivência comunitária.

Essa condição é naturalmente  permanente. Mas a gente nem percebe que a vida gira em torno do desejo de ser livre, de viver os sabores da liberdade e, por certo, entender o significado da liberdade para bem vivê-la.

Com o passar do tempo, os sentidos sobre a liberdade vão se formando em nosso imaginário e compondo o elemento conceitual que vai nos personificando. O tempo molda os sentidos da liberdade e a experiência tempera o seu exercício.

Com Johanna (mais conhecida como Hannah) Arendt não foi diferente. Antes de se tornar conhecida mundialmente, ela exerceu as profissões de jornalista e professora universitária na Alemanha. Mas, diante das perseguições nazistas aos direitos do  povo judeu a partir de 1933, ela  emigrou para os Estados Undos, onde se naturalizou em 1951.

Este breve ensaio é dedicado ao sentido da liberdade no pensamento de Hannah Arendt. A busca deste sentido, necessariamente, passa pela compreensão sobre o que a  filósofa política identificava nos movimentos ideológicos de sua época, à medida que repercutiam  no problema prático  da liberdade.

Hannah Arendt foi uma ativista política consciente, que bem diferenciava os aspectos do pensamento  ideológico de seu tempo:  o totalitarismo, a doutrinação e o racionalismo. 

Nos livros “Condição Humana, Origem do  totalitarismo e Liberdade para ser livre” é possível identificar o pensamento dela sobre   esses temas. Ela identificava que as  ideologias  totalitárias – no hitlerismo, no racismo estrutural, no marxismo, no comunismo e no stalinismo – geralmente adotam uma  espécie de explicação  total sobre a história, isto é, a ideologia procura explicar os fatos históricos  a partir de uma única ideia totalitária. Neste contexto, não haveria liberdade política. 

A doutrinação é outro aspecto ideológico, também utilizado por ideologias dos regimes totalitários,  que atuam através da propaganda massificante e onde o exercício da liberdade é manipulado. 

Ela adotou como exemplo o conteúdo ideológico das escolas de doutrinação naxistas e sosoviétivas de então, quando  crianças e jovens  eram submetidos às referidas ideologias; portanto, sem outras possibilidades de pensar, expressar e comunicar diferente.  

O terceiro aspecto da ideologia totalitária, conforme Arendt, é a manipulação dos fatos reais com o objetivo de distanciar as pessoas da realidade.  

Seria uma espécie de “racionalismo” manipulatório  com a ideia subliminar de que a ideologia serve para anestesiar a consciência livre, alimentando uma espécie de amnésia ou esquecimento da realidade. Nesse caso, a dinâmica, a contingência e  a complexidade dos  atos e fatos reais são propositalmente substituídos por uma uma ilusão ou  conforto irreal. Em suma: o objetivo é a alienação da consciência acerca da realidade. 

O pensamento político filosófico de Arendt incorpora influências na fenomenologia e no existencialismo de Heidegger, de quem foi aluna na Universidade de Marburg e com quem manteve relações amorosas duradouras.  Na teologia, alimentou-se nas ideias da teologia liberal do filósofo Rudolf Bultmann – teologia cuja hermenêutica procura entender o significado da linguagem (mitológica ou não) na Bíblia Sagrada.  

A liberdade para ser livre , no pensamento de Hannah Arendt,  é explicada a partir das motivações das revoluções, comparando o significado da liberdade na revolução americana (1776) e   na revolução  francesa (1789 e 1799).   

Abro um parêntesis para contextualizar os princípios da liberdade nas duas revoluções:  a revolução americana promove a separação das Treze Colônias da América do Norte do colonialismo inglês dos meados do século XVII –  conhecida como a Declaração de Independência dos Estados Unidos, a partir do congresso de Filadélfia em 1775 – também adota princípios iluministas: separação de poderes, a garantia à liberdade individual e à igualdade social.

A revolução francesa, a partir da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), é a responsável pela universalização das garantias das liberdades  individuais, cujos sentido e amplitude  estão definidos no artigo 4º da referida declaração: 

“A liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique o próximo. Assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão aqueles que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos.”

 Aí estão reunidos os três princípios básicos da revolução iluminista francesa: Liberté, Égalité, Fraternité = liberdade, igualdade e fraternidade. Liberdade como direito natural; igual garantia e gozo do mesmo direito  aos demais membros da sociedade e a fraternidade, isto é, “a  liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique o próximo”, nos limites da lei. Fecho o parêntesis.

O sentido da liberdade nas duas revoluções, no pensamento de  Hannah Arendt traduzia a  máxima expressão da liberdade política como necessidade da pessoa participar  da vida  pública, para definir o seu destino coletivo. Portanto, seria necessário tomar parte nas decisões e destino de seu país.

A par da concepção da liberdade como direito natural –  base da liberdade como garantias à liberdade civil, política, religiosa, por exemplo – Hannah entendia a liberdade política como uma espécie de liberdade mãe no âmbito de uma democracia, à medida que tem como pressuposto a participação do indivíduo na vida comunitária – participação inerente ao exercício e defesa dos direitos da sociedade.  Ele defendia a liberdade e a igualdade políticas entre as pessoas como base do pluralismo político, 

Liberdade para ser livre significa, para ela, a existência de sociedade livre e de Estado democráico onde o povo tem a efetiva participação na coisa pública.

Por um sentido prático, penso que é possível afirmar: a liberdade  é o valor que projeta luzes sobre outros valores da vida humana, por isso sua missão é sempre libertadora.  

A frase “Liberdade para ser  livre” – que virou slogan nos meios intelectuais no Século XX – consta de um manuscrito de Arendt, datado de 1966, dois anos depois da revolução militar (para uns) ou golpe militar (para outros) de 1964 no Brasil.  Por isso, por certa medida, refletiu nos movimentos estudantis, intelectuais e políticos contrários ao episódio histórico de 1964. 

Aqui no Brasil, é contemporânea daquele  manuscrito,  a música “É proibido proibir”, de Caetano Veloso – música que foi vaiada e desclassificada no III festival internacional da canção, em 1967 – quando o cantor  desabafou no palco: “Eu digo não, eu digo não, é proibido proibir, é proibido proibir”

Certamente Caetano Veloso não se referiu, ao compor a música, ao princípio da liberdade como condição de participação política no mesmo sentido  adotado por Hannah. Mas, nas décadas de 1970 e 1980, a frase "é proibido proibir" virou modismo nas universidades públicas e nos meios intelectuais do Brasil.  "Proibido proibir” era um protesto contra o regime militar que impôs a censura política e cultural. 

E é  bem presumível que tenha se inspirado nas ideias culturais vanguardistas em Gilberto Gil e em Cacilda Becker porque, quando vaiado naquele festival, visivelmente enfurecido, Caetano xingou quem o xingava, ao mesmo tempo em que enaltece os predicados políticos de liberdade de Cacilda Becker de Gilberto Gil: 

“...mas é isso que é a juventude quer, que diz que quer tomar o poder… (...) hoje não tem Fernando Pessoa (...) quem teve a coragem fazer explodir a estrutura foi Gilberto Gil … (..,) E Viva Cacilda Becker, viva Cacilda Becker”, discursou Caetano enquanto o público o vaiava.”

    A falta de liberdade corresponde a uma “camisa de força lógica”, dizia Arendt.  Então, como as ideologias totalitárias  são inerentes aos grupos políticos que sempre aspiram o poder,  e por eles é utilizada, isso significa que na sociedade atual o problema liberdade ainda apresenta como pano de fundo o ideologismo radical, a doutrinação e o racionalismo.

    Pela doutrinação massificante, quaisquer que sejam os meios e os métodos utilizados,  essas coisas ideológicas vão entrando nas cabeças sem pedir licença.  É a espécie de “camisa de força lógica” a que se refere  Hannah Arendt. 

    Como naqueles movimentos ideológicos identificados por Arendt, também na atualidade  as narrativas ideológicas estão em confronto permanente. E a liberdade para ser livre, nos termos concebidos por Hannah Arendt, se apresenta como atemporal, porque  sempre as liberdades de pensamento, de expressão e de comunicação   são  questões centrais.

A liberdade política é, assim e  também,  a necessidade (portanto, um bem) que deve traduzir o desejo de ouvir e viver coisas sinceras e transparentes no trato da coisa pública, mas também a certeza de que outros ouvidos estarão abertos a ouvir verdades acerca das  quais têm sido surdos

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ATENÇÃO: Em  observância à Lei  9.610/98, todas as crônicas, artigos e ensaios desta coluna podem ser utilizados para fins estritamente acadêmicos, desde que citado o autor, na seguinte forma (Océlio de Jesus Carneiro Morais (CARNEIRO M)

Océlio de Morais