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A liberdade entre a torpeza e a virtude

Océlio de Moraes

No ensaio filosófico  'Liberdade para a felicidade', concluiu-se que a liberdade é um dos pressupostos inarredáveis  para a realização da felicidade. Ainda na esteira daquela  reflexão filosófica,  neste breve ensaio vou abordar o paradoxo da liberdade entre a torpeza e a virtude. Adota-se como tese ou argumento base a seguinte formulação:  a torpeza constitui ofensa à natureza da liberdade individual, bem como se volta contra terceiros, enquanto que a virtude, porque é inerente à sabedoria, é um pilar da liberdade natural .

Qualquer pessoa minimamente informada com qualidade de discernimento sobre o valor da liberdade não tem dúvida: não é fácil compatibilizar o direito à liberdade coletiva com  a personalíssima   liberdade natural de cada indivíduo, aquela inerente à  legitimidade de autônoma de ser livre, referida por Kant  na obra “Fundamentação da metafísica dos costumes”, onde também cuida do conflito inevitável entre uma vontade livre e uma vontade submetida à lei – tema que pode ser revisado no meu artigo "Liberdade para a felicidade”, publicado aqui na minha coluna. 

Recordemos que Kant considera que a autonomia da vontade é “propriedade do indivíduo” e que, em razão disso,  “ela é, para si mesma, a sua lei, independentemente da natureza dos objetos do querer.” A regra (ou lei positiva) representa, nessa perspectiva, o grande cesto de acomodação da autonomia da vontade dos indivíduos com diferentes visões de mundo em diversas culturas. 

Para se ter uma ideia sobre o dificílimo e complexo paradoxo da liberdade entre a torpeza e a virtude, é necessário ter bem vivo na mente o total da população mundial atual, que, para nossa finalidade, também precisa ser  analisada sob a perspectiva dos bilhões das ideologias ou   ou práticas conflitos sobre a liberdade. 

 Quando iniciei esse  sucinto ensaio,  na segunda, 22/08,  às 15 horas, o supercomputador Wordometer” – que atualiza os nascimentos e mortes no mundo a cada segundo tempo real – registrava que a população mundial totalizava 7.969,258,801 

Então, mais de 7 bilhões de seres humanos – mas aqui vamos considerar a grande maioria que  pensa e experimenta concretamente apenas relativa  autonomia de vontade –  com os mais variados desejos em  diversos países  com   ambiente de multiculturas: conforme  os valores que baseiam as escolhas, inimagináveis são  os conflitos pessoais (existenciais), os conflitos  interpessoais e os conflitos coletivos que decorrem da explosão iminente dos desejos individuais e da necessária restrição ou regulação da liberdade  pela lei .

Por isso, por todo o tempo, a vida natural  – breve ou longa –  constitui, em si mesma, um permanente  e potencial ambiente de conflitos que precisa ser, a cada instante, controlado e  apaziguado ao mesmo tempo em que funciona como um laboratório para o aperfeiçoamento das virtudes de cada um dos sete bilhões de seres humanos, todos sequiosas da liberdade como direito fundamental, tanto quanto dos demais direitos que as tornem dignas. 

Entre as sucessivas gerações, são permanentes os choques e os conflitos de valores da liberdade, os quais potencializam diversos outros conflitos nas esferas individual e coletiva.   

Quer isso significar que quanto mais longa a vida natural,  maiores serão os casos de conflitos de liberdade que cada indivíduo vai enfrentar, assim como  nossas condutas estarão sempre sob os regimes regulatórios das sucessivas leis,  conforme os valores e costumes vão mudando.

Sob uma perspectiva filosófica, a questão dos conflitos humanos é refletida por  Sêneca, o “velho”, – aquele nascido na cidade de Córdoba, Espanha, – ao tratar da injúria. da virtude  e a arte de ser livre – reflexão  que  virou o livro “Sobre a brevidade da vida”, editado pela  “Penguin & Companhia das Letras”.

Seneca, orador  e filósofo,   identificava na vida mais longa maiores oportunidades  à prática das ações virtuosas, desde que a vida fosse “bem planejada e utilizada”, isto é,  a felicidade dependia das decisões virtuosas – liberdade de escolhas –  no contexto de uma vida planejada. 

 Para ele, a rigor, a vida longa não era apenas uma questão temporal, mas sobretudo  uma questão de saber escolher as ações para bem executá las  e viver na  virtude,  porque, disse o filósofo, “não recebemos uma vida breve, mas a fazemos”, conforme as opções que tornam as pessoas escravas (das más escolhas) ou pródigas (porque virtuosas).

A execução das ações –  quando ele se refere que “a vida é longa o bastante e nos foi generosamente concedida para a execução  de ações, as mais importantes, caso toda ela seja bem planejada” – diz respeito à liberdade de escolha para a prática das “coisas mais importantes”.. 

“As coisas mais importantes" para a vida, na visão de Sêneca, era   “a virtude” precisamente porque, através dela, o indivíduo se tornava livre. “A virtude é livre, inviolável, firme, inabalável”, escreveu, significado que na atualidade pode ser compreendida (a virtude) como  aquilo que é indestrutível e incorruptível na natureza humana. 

Em oposição à virtude, Sêneca apontava a injúria,  uma espécie de vício da natureza humana:    “a injúria é uma torpeza”, advertia o filósofo enfatizando que a injúria (torpeza)  tem por objetivo fazer o  mal.

Logo,   em si mesma,  a injúria é ofensiva à própria natureza da liberdade individual, bem como se volta contra terceiros, visto que ela  consiste em  “fazer o mal a alguém”.  A  torpeza se revela por esse duplo aspecto negativo.

– “A injúria tem o seguinte propósito:  fazer mal a alguém. A sabedoria, contudo, não deixa  lugar para o mal”, escreveu  Sêneca,  distinguindo que a ação humana (“execução de ações”) está  entre a virtude e a honradez (as quais deduzem a sabedoria) e a torpeza (que é o mal), este,  como resultado da corrupção do sentido filosófico da liberdade de escolha e de ação. Portanto, as escolhas virtuosas (acerca das liberdades) são associadas à sabedoria

O mal ou torpeza enquanto corrupção da liberdade é, assim, incompatível com a sabedoria e com a felicidade. Nas palavras de Sêneca:.  “O mal é a torpeza. (...) Inadequada  a uma vida feliz, (...) e para a promessa de algo maior e mais elevado”, enquanto que as  “execuções de ações” bem planejadas  promovem a felicidade, porque “a virtude é livre” e essa decorre da sabedoria. 

Em síntese, pode ser dito, a par das reflexões do filósofo espanhol, que o mal (torpeza de caráter) corrompe a liberdade natural ( autonomia da vontade) e espalha  consequências nefastas em face das liberdades das outras pessoas e em face da sociedade.  A virtude associada à sabedoria necessária para a “execução das ações mais elevadas" é  a baliza necessária para o exercício da liberdade como condição à felicidade. 

Esse paradoxo da liberdade entre a torpeza e a virtude está no cotidiano dos mais de sete bilhões de seres humanos. Cada um de nós é desafiado às melhores e mais elevadas escolhas – na brevidade ou longevidade das nossas vidas –   dando especial significado ao sentido virtuoso da liberdade e às nossas liberdades fundamentais .

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ATENÇÃO: Em  observância à Lei  9.610/98, todas as crônicas, artigos e ensaios desta coluna podem ser utilizados para fins estritamente acadêmicos, desde que citado o autor, na seguinte forma: MORAIS, O.J.C.;  Instagram: oceliojcmoraisescritor

Océlio de Morais