Num reino bem distante, três “histórias” tornaram-se lendas pela lei da causa e efeito.
Um parêntesis necessário: a Academia Brasileira de Letras, desde 1943, padronizou o uso da palavra história para designar ao mesmo tempo o fato real e a ficção, eliminando a palavra estória, porque considerada arcaica. Fecho o parêntesis.
As “histórias” eram do “homem rico que ficou pobre”; do “homem pobre que ficou rico”, e do “homem todo-poderoso, o medroso”. Os três tinham algo em comum: a avareza. As histórias se passaram assim, no mesmo reino.
Um homem de origem pobre – e nessa condição viveu mais de meio século – encontrou uma enorme jazida de diamantes. E ficou muito rico.
O segundo homem – que sempre teve uma grande fortuna e nessa condição viveu mais de meio século – perdeu toda a sua riqueza.
O terceiro homem era o mais influente e poderoso do seu reino. As decisões passavam por ele. Dominava o conselho dos nobres e todos se submetiam aos seus caprichos e às suas decisões.
O homem da jazida de diamantes, que antes reclamava de tudo e de todos (menos de si mesmo), passou a viver do mesmo modo que ele sempre criticou na vida dos ricos. E, assim, a avareza e a luxúria dominaram o seu espírito.
O homem rico – que antes de perder a fortuna só conhecia o mundo ensimesmado do dinheiro, do poder e os seus correlatos desejos ambiciosos – não foi prudente e perdeu tudo nas negociatas corruptivas do reino. Viveu o resto da vida na miséria, exatamente naquele estado de vida que sempre abominou, e na demência espiritual, dor que da alma dele nunca se afastou.
O homem todo-poderoso do reino, no fundo, era um medroso. “Tenho medo até das sombras, pois lá moram as traições”, dizia ele. Andava com vassalos para proteger sua vida e nada comia ou bebia sem os provadores à sua frente. Seus amigos eram iguais aos inimigos, mais o temiam e o odiavam do que o admiravam. Porém, o bajulavam porque também tiravam vantagens daquele esquema de poder corrompido.
Como sempre ocorria nos reinos tirânicos, o homem todo-poderoso foi morto envenenado com uma taça de vinho, quando brindava mais uma de suas conquistas territoriais: a anexação de outro reino e a submissão da liberdade de mais um povo.
Qual dos três homens, nos estágios diversos de suas respectivas vidas, compreendeu melhor o paradoxo da lei da causa e efeito?-
Quero ressaltar que – de forma direta e pessoalmente – não conheço nenhum caso assim. Mas pensei nessas possibilidades porque, muito provavelmente, o mundo abriga (ou já registrou) casos semelhantes.
Então, essa ideia surgiu da intrigante parábola do homem rico, originada de uma conversa entre Jesus e um jovem. Aquele jovem rico que deseja seguir o Mestre e lhe pediu conselhos para ter a vida eterna – parábola narrada por Mateus (19:24), um legado para a perpetuidade da humanidade:
– “Então Jesus disse aos discípulos: "Digo a verdade: dificilmente um rico entrará no Reino dos céus (...). E digo ainda: É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus".
Não interpreto — como- alhures pode ser visto em várias situações entre os cavaleiros do ateísmo,, entre os cavaleiros do fundamenalismo religioso ou no idealismo radical manipulador das massas — que Jesus, com a referida parábola, tenha estimulado a luta de classes entre ricos e pobres. Verdadeiramente, a missão de Jesus não foi a luta de classes.
Se bem observado – e isso somente é possível quando se compreende que a mensagem de Jesus sempre procura distinguir os valores da riqueza espiritual, cuja fonte inesgotável é Deus, dos desvalores da riqueza material, colocando aquela como a condição para o bem-estar e o bem-viver humano, e ainda como o verdadeiro caminho para se ter a vida eterna.
A parábola do homem rico que perde para o camelo na possibilidade de passar pelo fundo de uma agulha — parábola, aliás, que é de uma atemporalidade teológica incrível — também alerta para duas possibilidades na vida: a avareza e a simplicidade de alma, questões humanas que estão sempre em confronto, pois, como afirmou Aristóteles, “a natureza humana é flexível, é ontologicamente variável"; portanto, é da essência humana os conflitos existenciais.
A avareza (de cada um, mas cada qual em sua medida própria) é uma desvirtude, à medida que geralmente põe a perder os benefícios da riqueza material, além de corromper os valores da honestidade e da honorabilidade. A avareza, aquele tipo de vida cega e extremo apego ao dinheiro, é o armazém de outras desvirtudes, como a usura, a ganância, a soberba e a prepotência tirânica.
É por isso que a corrupção da honradez é como um ferro incandescente que se perpetua no couro do boi ou do cavalo para indicar e designar o seu dono. Assim é a marca da corrupção que fica na honradez: entra para a história da pessoa e dela nunca mais será apagada.
A simplicidade é uma virtude. Adotá-la assim no mundo da relativização das virtudes, torna-se bem mais desafiador em relação às iscas e oportunidades corruptivas que estão espalhadas na estrada da vida como ervas daninhas.
Contudo, o ponto de partida singular é este, na minha percepção: cada um precisa alimentar a simplicidade de alma para evoluir como indivíduo e, desse modo, multiplicar ações virtuosas como boas sementes à fraternidade indispensável por toda a vida.
Então, o que realmente dificulta e pode impedir qualquer um de passar pelo “buraco de uma agulha” é a avareza, visto que essa desvirtude está na espreita (das oportunidades) para se alojar e dominar o espírito de qualquer um.
O homem rico e o homem todo-poderoso podem ser avarentos quando perdem o domínio de sua alma para as coisas corrompidas que decorrem das negociatas do dinheiro e do poder correspondente. E, desse modo, o homem perde a generosidade, que é uma das virtudes mais bonitas e especiais entre pessoas evoluídas.
Quando perde o domínio de sua alma, o homem todo-poderoso também, geralmente, transforma-se num tirano, reprimindo e suprimindo a liberdade do povo. Porém, é um prisioneiro de sua própria tirania, pois nem mesmo nas ruas de seu reino consegue andar sozinho sem ouvir os apupos do povo que o teme; mas, no fundo do coração, o despreza, e não o respeita e nem o ama.
O homem pobre pode ser avarento quando sua alma mergulha no poço fundo da ignorância e atribui a culpa de sua condição miserável apenas ao outro. Sempre o outro é exclusivamente culpado da sua condição. Suas flechas pontiagudas e venesosas são lançadas com rancor, com inveja e até com ódio contra aquele que acha ser o feitor da sua escravidão.
Os três casos hipotéticos, que adoto no início desta crônica reflexiva, querem mostrar o seguinte: é preciso evitar, a todo custo, a escravização que pode decorrer da avareza do mau uso da riqueza material e do desvio de finalidade do poder, pois – se assim for – os males que decorrem, podem subtrair a simplicidade, a singeleza e a generosidade da alma. E o “buraco do fundo da agulha” ficará cada vez mais estreito para o exercício das virtudes necessárias nas dimensões física e espiritual .
Nesse paradoxo da condição humana entre a simplicidade e a avareza, uma coisas é certa: para se obter a generosidade de alma, não importa de onde viemos – se da riqueza ou se da pobreza, não importa o gênero ou a raça – mas o que realmente importa é o caminho que se toma (escolhe) para o bem ou para o mal, para ser uma pessoa boa (com simplicidade de alma) ou para ser uma pessoa má (amargurada pela pequenez da avareza que gera ao espírito).
Para separar os males que a avareza causa às virtudes da simplicidade de alma, é importante que haja consciência acerca da lei da causa e efeito, que é a seguinte, conforme um dos fundamentos do budismo humanista (2019,p.42): “todos os atos, bons ou maus, geram consequências. É uma questão de tempo.”
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