Uma das minhas inquietudes – permanente inquietude – é a injustiça em todas as esferas da condição humana. Então esse problema está localizado na concepção do pensamento (aquela área subjetiva que ninguém penetra), quando a tomada de decisão é premeditada com o objetivo de prejudicar alguém ou, ainda, quando a injustiça decorrer do ato involuntário, mas ainda assim é atinente à ação humana.
A injustiça está entre os piores resultados de uma ação humana. Ela causa uma dor incurável na alma, no coração da alma. O tempo até pode cicatrizar as feridas abertas e atenuar o sentimento da revolta, mas lá na gaveta da memória histórica ela é a flecha venenosa que sangra a dignidade do injustiçado. Na mente e no coração do injustiçado, a ofensa, a injúria e a difamação nunca se apagam.
Dedico-me a este breve ensaio filosófico para refletir sobre o problema da irreversibilidade da injustiça e da imprevisibilidade de suas consequências. Resolvi escrever sobre o tema ao ouvir na televisão, recentemente, uma palestra espírita, ocasião em que foi referenciada a obra “A Condição Humana”, da filósofa política Hannah Arendt, notadamente sobre as consequências da ação humana à espiritualidade.
Adoto a seguinte tese ao ensaio: a inquietude com a injustiça é uma questão ética, mas também espiritual.
Já em 1958, quando foi publicada a primeira edição da referida obra, Hannah Arendt tratou do problema da irreversibilidade e da imprevisibilidade como uma potencialidade da própria ação humana.
Arendt explica que “a condição humana não é o mesmo que a natureza humana, e a soma total das atividades e capacidades humanas que correspondem à condição humana, não constitui algo que se assemelhe à natureza humana.”
A natureza humana é marcada pela capacidade do pensamento que define os sentimentos (razão e emoção) – pensamento que impulsiona as ações. A linguagem verbal ou não verbal é uma espécie de libertação do pensamento, expressão do raciocínio que se vai deduzir pelo gesto ou pela fala o caráter ético da pessoa.
O problema da injustiça é visto, por conseguinte, é deduzido pelas questões da irreversibilidade e da imprevisibilidade da faculdade de pensar e de agir – pensamentos e ações que podem destacar a relevância do discurso ético-moral, do discurso político cidadão, do discurso ideológico manipulatório, do discurso religioso, os quais traduzem a natureza da pessoa e servem para compreender ou comprometer a sociedade em que vive.
O pensamento que se concretiza na palavra ou no gesto traduz a índole da pessoa. É mais ou menos assim: se o pensamento é corrompido e desvirtuado dos valores éticos, irá produzir ações corruptas que geram injustiças e se projetam em prejuízo da sociedade. Se a sociedade não reagir às tomadas de decisões e às ações corruptivas dos valores éticos, ela compromete a sua própria essência ética, que deve ser a casa ou lar humano saudável ao aperfeiçoamento das virtudes e, portanto, da espiritualidade.
A irreversibilidade do pensamento e da ação que deliberadamente cometer a injustiça assim pode ser compreendida: o ato que comete injustiça não retroage pela própria natureza do tempo.
A irreversibilidade do ato praticado, que sempre se consuma na imediatíssima fração de tempo seguinte, é uma questão da vida e para a vida inteira. A irreversibilidade e a impossibilidade de voltar ao tempo da ação.
Já a imprevisibilidade da ação, motivada pelo pensamento injurioso, difamatório, calunioso em face de alguém, está relacionada à dimensão dos efeitos ou consequências nem sempre controláveis na esfera subjetiva da pessoa ofendida e na impactação reflexa, e também danosa, que se expande à família da pessoa injustiçada.
Colocadas nestes termos – a irreversibilidade e a imprevisibilidade – seriam absolutamente irreversíveis quanto às consequências do pensamento e da ação? Podemos oferecer as seguintes possibilidades ao problema, que é, verdadeiramente, relevante ao aperfeiçoamento da condição humana.
Sob a perspectiva do respeito à dignidade humana, a irreversibilidade e imprevisibilidade do pensamento e da ação, se apresentam, por si, como do ponto de reflexão e inflexão para evitar a injustiça deliberada.
Sob a perspectiva espiritual, a irreversibilidade e imprevisibilidade da ação ficam perpetuadas na alma como nódoas ou manchas, que precisarão ser perdoadas. Mas o perdão, por ser relativo ao caráter, envolve dupla condição humana: a comiseração, aquela compaixão pelo injustiçado, o que revela a capacidade do auto-perdão; e a decisão do injustiçado em querer perdoar.
A palestrante no evento espírita explicou que a capacidade do perdão reside, antes, na capacidade do auto-perdão, aquela condição que a pessoa que comete injustiça faz a inflexão no sentido da promessa (ética e espiritual) de não repetir o deliberado pensamento que leva à injustiça. Essa inflexão positiva pode contribuir na obtenção do perdão pelo injustiçado.
Aliás, o perdão é abordado na obra “A Condição Humana" como “a única solução possível para o problema da irreversibilidade: a faculdade de perdoar”, enquanto que “a solução para o problema da imprevisibilidade, da caótica incerteza do futuro, está contida na faculdade de prometer e cumprir promessas.”
Se a ação (concepção do pensamento) expressa uma conduta ética, a consequência seguramente será positiva ao aperfeiçoamento das virtudes, cujo reflexo da ação será respeitoso à dignidade humana.
Penso que a tese deste ensaio restou comprovada: A inquietude com a injustiça é uma questão ética, mas também espiritual.
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