Um dia desses, era um domingo de sol aberto e céu azul celeste reluzente. Fui fazer uma caminhada na praça Batista Campos em Belém do Pará – que já foi Largo da Salvaterra e Praça Sergipe , um conjunto arquitetônico e paisagístico desde 1897 à moda clássica-romântica francesa – e parei um pouco para observar algumas espécies de raças de cães (grandes e pequenos) que corriam, se enrolavam na grama e brincavam uns com outros. Ali pensei: eis uma verdadeira celebração da amizade canina.
Então, me lembrei dos cães de minha infância: o “Tupã”, um Pastor da Mantiqueira, parecido com um lobo selvagem de pele cinza, o “Rex”, um cão malhado nas cores branca e avermelhada, da raça dogue brasileiro, a "Fofóia", uma cadela vira-lata, e a “Suzete” era uma Pequinês.
O “Tupã” e o “Rex” foram meus companheiros da infância nas colônias do Jacaré e do Ypiranga, lá em Monte Alegre, época de colono e árduo trabalho infantil de sol a sol nos roçados da família. Naquele tempo, era assim mesmo: solidariamente, todos da família trabalhavam, mas, claro, à medida de suas forças e habilidades. A “Fofóia" e a “Suzete” eram de estimação do início da adolescência, já na cidade, sendo que a “Fofóia” era uma parideira de alta fertilidade, enquanto que a “Suzete” era um mimo da família.
Todos eles constituíram aquilo que a minha memória infantil e adolescente convencionou chamar de meus cães, minhas amizades caninas. E quando vi aqueles cães brincando na praça, fiquei pensando: as espécies semelhantes realmente se atraem e quando colocam suas semelhanças para fins comuns, brincam e se sentem bem. Ali, era a liberdade animal expressada no lazer animal.
Continuei pensando e então fiz uma analogia com os semelhantes humanos, que se atraem e comungam ideais alinhavados pelos bons costumes e bons princípios, terrenos férteis à amizade honesta e fraterna. E, de outro lado, os semelhantes que se atraem e comungam objetivos ocultos e não confessáveis, geralmente são destruidores dos bons valores.
Cães adestrados e domésticos se tornam os melhores guardiães-amigos dos seus donos ou cuidadores. Tornam-se, assim, membros da família. E como membros da família são tratados. São especialmente fiéis até a morte. Não atacam a família humana que os acolheram; mas, ao contrário, se expõem ao risco, defendendo-a quando percebem que a família está sob perigo.
O “Rex” foi, com toda certeza, o meu melhor amigo canino. Comigo, ia para o roçado, onde minha tarefa era espantar as graúnas que iam comer arroz ou porcos que fuçavam a plantação de mandioca e melancia no roçado.
Ao “Rex”, devo a vida; Ele me salvou de morrer afogado num riacho de forte correnteza. Estava dando uma soneca – era o início de uma tarde abafada e calorenta do verão amazônico, naquele roçado da localidade Jacaré – sobre um galho ou “braço” de uma árvore que projetava sobre o riacho. Caí e o meu amigo canino pulou atrás, resgatando-me, puxando-me pelo velho calção roçeiro para a beira do riacho. A amizade canina é assim mesmo: é instintiva porque, embora irracional, mas pela convivência contínua, ganha contornos de afeição, uma espécie de relação especialmente protetiva.
A amiazade entre pessoas não depende do adestramento ou domesticação, mas da opção (da liberdade de escolha) inerente à inteligência humana. A amizade humana, racional e seletiva, decorre da liberdade de escolha: amizade honesta ou amizade interesseira.
É verdade – mas, infelizmente – que pessoas até podem ser manipuladas (ideologicamente) e, assim, podem se tornar adestradas, sem poder de reação às manipulações das consciências e dos ideários que as personificam.
Pessoas dominadas pelas manipulações das consciências perdem o sentido sincero da amizade e em tudo (ou em quase tudo) veem ameaças aos seus espaços e às suas pretensões. Vítimas, perdem também a referência de si mesmas. E, com isso, perdem a perspetiva do sentido sincero da amizade.
Manipuladores das consciências constroem narrativas de que – sob a sua proteção – os manipulados terão a proteção necessária. Na realidade, neste tipo de “amizade” adestrada, não existe amizade sincera, mas uma dominação do semelhante, o que significa, em última observação, a manipulação da liberdade do outro.
Vou afirmar, com a devida licença cultural, que a amizade sincera pode ser tida como a fiel amizade canina. Nem o tempo – que tem o poder de transformar a natureza das coisas – é capaz de transformar a amizade canina (amizade sincera) em inimizade, salvo se o sentimento humano não for e nunca tenha sido honesto; porém, se manipulado pelos interesses das conveniências ocultas e não confessáveis daquelas que maculam a alma pura da amizade.
A amizade sincera, com o passar do tempo, vai se tornando cada vez mais fiel como a marca peculiar do companheirismo canino e tão especialmente indelével como um excelente vinho envelhecido para brindar a vida. A amizade sincera exige reciprocidade de bons princípios e valores. O tempo afaga e premia a natureza da amizade honesta.
A amizade interesseira, ao revés, tem sua natureza volúvel e autofágica revelada pelo tempo. E seus efeitos nocivos são insanáveis. O tempo não apaga da alma as dores do infortúnio de uma amizade interesseira.
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