Mizar Bonna relembra mantos do Círio com símbolos da Amazônia
Aos 89 anos, artista paraense narra bastidores e significados de mantos marcados por elementos naturais, fé e memória de Belém
Ao longo de sua trajetória como desenhista de mantos da Imagem Peregrina, a pesquisadora, escritora e artista Mizar Bonna já retratou diversos símbolos da Amazônia e da história de Belém. De barcos a periquitos, seus desenhos traduzem a fé mariana em uma linguagem visual viva, onde tudo tem significado. Aos 89 anos, ela relembra bastidores, parcerias e os detalhes que fizeram de cada manto uma paisagem sensível do Círio: “A natureza tem que estar com a gente em todo canto”, opina.
Um deles, o de 2008, trazia um barco à vela com a inscrição “Belém em missão” bordada no casco, singrando águas azuis sob um grande sol branco, irradiando luz sobre o fundo dourado. “Fiz a água e o sol que nos dá vida, calor, alegria… representa Deus em todo canto. E fiz a canoinha”, resume. À margem da composição, ramos floridos brotam dos dois lados, inspirados nas flores que decoram os altares sagrados: “Peguei umas flores que sempre têm na Basílica e coloquei”.
A imagem surgiu como um resgate de uma cena que ela temia ver desaparecer: as embarcações simples, à vela, que costumavam encostar aos montes no Ver-o-Peso nos dias do Círio. “Estava tudo virando popopô”, brinca, referindo-se ao som dos motores.
O ajuste final veio após a estilista Enid Almeida (in memorian), responsável pelo bordado daquele manto, mostrou a peça para o marido de Mizar, Evandro Bonna (in memorian).
“Ele pensou que ela não fosse ouvir, se virou pra mim e disse: ‘Ela esqueceu a sombra da canoa’. Ela ouviu e, no outro dia, colocou a sombra. A Enid caprichou. Esse ficou um espetáculo”, relembra.
Já o manto de 2009 é centrado no cordeiro de Deus, símbolo de Cristo sacrificado, bordado em tons dourados e rodeado por uma delicada malha de flores geométricas. Ao redor, uma borda exuberante em verde, roxo e preto exibe flores inspiradas na flor do maracujá, tradicionalmente associada à paixão de Cristo por seus cinco estames (as chagas), três estiletes (os cravos) e a coroa (os espinhos). “O pessoal ficou encantado com a flor do maracujá”, conta Mizar sobre a recepção da peça.
Atendendo ao pedido de um padre que desejava mais leveza no peso final do manto, ela optou por deixar o centro da peça sem aplicações de pedrarias, e recorreu a um tecido acolchoado para dar estrutura e suavidade. “Tu vês que aqui [nas bordas] está preenchido, mas aqui [no centro] não. É matelassê, pra ficar mais leve”, explica. O resultado é uma peça que respira equilíbrio entre forma e função, beleza e simbolismo.
Em 2010, Mizar emocionou o público com um manto que costura natureza e memória afetiva da cidade. O desenho traz periquitos amarelo-esverdeados pousados em ramos de parreira repletos de cachos de uva, ladeando o brasão cardinalício ao centro. Na base, espigas de trigo completam a cena de fartura e fé. Cada elemento carrega história. “Eu costumo dizer que a samaumeira é a testemunha silenciosa do nosso primeiro Círio, e os periquitos, as testemunhas barulhentas”, conta Mizar.
Na época, os periquitos ainda faziam parte da paisagem sonora da Praça Santuário, onde se reuniam aos bandos no fim da tarde — um símbolo vivo da casa de Nossa Senhora. Alguns anos depois, migrariam para a Praça do Operário, em São Brás.
O manto de 2010 também guarda uma história curiosa de bastidores: a parceria entre Mizar e o estilista Jorge Bittencourt.
“Eu botei ele doido”, brinca. “Ele fazia um ramo, e eu dizia: ‘Não, tá se destacando demais.’” Para ela, o equilíbrio visual era essencial, ainda mais considerando o impacto fotográfico da peça. “Você tem que pensar nisso. Vai fotografar. Os galhos tão aparecendo mais que as uvas? Não dá. As uvas têm mais destaque do que o passarinho? Também não dá”, defende.
Com delicadeza, ela posicionou os periquitos “calados, rezando, contritos” — e ainda incluiu, com seu senso de observação lírico, um casal namorando no meio do Círio, se beijando; e um casal alegre dançando. “Tem tudo. Tá aqui o Círio”, ensina a artista.
A cobertura do Círio de Nazaré 2025 de O Liberal tem patrocínio do Banco da Amazônia, Natura, Atacadão, Liquigás, além do apoio da Vale.
Palavras-chave