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Exposição ‘Círio Negro’ abre caminho para memórias silenciadas da Festa ganharem visibilidade

Diretor do Museu do Círio pretende organizar exposições que contemplem atualizações históricas, como as experiências na periferia e durante a pandemia

Gabriel da Mota

A fotografia do chamado Círio Negro, em cartaz no Museu do Círio em parceria com o Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), abriu um caminho para novas interpretações sobre a maior manifestação religiosa do Pará. As imagens de Jacques Huber, do fim do século XIX, revelam ex-escravizados e trabalhadores pobres no cortejo, em um tempo marcado pela exclusão social em Belém. Para o diretor Márcio Figueiredo, o exemplo mostra como ainda há muitos aspectos da festa a serem explorados em futuras exposições.

As fotografias resgatam personagens esquecidos pela memória oficial. Enquanto a Belle Époque transformava Belém em vitrine da borracha, políticas urbanas restringiam a presença da população negra no centro da cidade. No dia do Círio, no entanto, as barreiras sociais se quebravam. “O Círio mostrava esses homens e mulheres descalços, vivendo sua fé como iguais. É um olhar que nos ajuda a entender que a festa sempre foi de todos”, explicou Figueiredo.

O diretor avalia que o resgate dessa memória deve inspirar novas leituras. “Se conseguimos trazer à tona o Círio Negro, também podemos olhar para outras dimensões pouco registradas da festa, como a experiência das periferias ou o impacto em tempos de pandemia”, completou.

Periferia e metrópole

Entre os temas que podem ganhar espaço está a vivência do Círio nas periferias de Belém e na região metropolitana. “A festa é muito centralizada no bairro de Nazaré, mas é preciso lembrar que o Círio também acontece nos Jurunas, na Terra Firme, em Ananindeua e Marituba. Nessas áreas, o impacto é tão forte quanto na avenida Nazaré? Cabe perguntar”, disse Figueiredo.

O olhar periférico inclui ainda questões práticas, como a mobilidade. “Como uma família de baixa renda se desloca para acompanhar a procissão? Muitas vezes sem transporte público suficiente, sem recursos. Esse aspecto social precisa estar presente nas narrativas do museu”, reforçou.

Um fenômeno internacional

O Círio já não é apenas paraense. A festa se multiplicou em diferentes cidades do Brasil e até em outros países, como Portugal (onde foi originado) e Sérvia. Para Figueiredo, uma exposição sobre essa expansão internacional poderia mostrar a dimensão universal da devoção. “É impressionante como a imagem de Nossa Senhora de Nazaré rompe fronteiras. Esse fenômeno precisa ser registrado com mais força”, observou.

Outro ponto a ser explorado é a relação ecumênica. “As matrizes africanas, as comunidades evangélicas e outras expressões de fé participam, de alguma forma, desse grande movimento popular. É um espaço de diálogo que merece ser contado”, afirmou.

Memória digital

Uma das propostas em estudo é reunir digitalmente todos os mantos e cartazes do Círio, permitindo acesso virtual de qualquer parte do mundo. “Seria uma forma de democratizar o acervo e de tornar a memória mais acessível às novas gerações”, explicou Figueiredo.

Outro caminho possível é mapear a procedência dos ex-votos e dos brinquedos de miriti, mostrando a diversidade regional que compõe a festa. “Muitos acreditam que o miriti vem só de Abaetetuba, mas ele chega de várias cidades, como Igarapé-Miri, Santarém e até do Marajó. Fazer esse mapa ajudaria a valorizar comunidades inteiras que vivem da tradição”, afirmou o diretor.

Pandemia

Entre os temas mais delicados que podem ganhar espaço está a pandemia de Covid-19. Em 2020, o cortejo não ocorreu de forma tradicional, mas a devoção se manteve viva em manifestações domésticas e digitais. “Foi um momento de dor, mas também de fé. As pessoas não puderam velar seus mortos, mas não deixaram de professar sua devoção. Contar essa história é essencial para compreender o Círio em tempos de crise”, ressaltou Figueiredo.

Para o diretor, o maior desafio é evitar que o Museu do Círio se torne estático. “O Círio não pode ser contado em uma única exposição definitiva. Ele é vivo, múltiplo e em constante transformação. O museu precisa acompanhar essa vitalidade”, defendeu.