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Círios fluviais mantêm tradições ribeirinhas e reforçam calendário mariano na Amazônia

Pesquisadora destaca que procissões sobre as águas preservam religiosidade e identidade cultural de comunidades amazônicas

Gabriel da Mota

Para além do que ocorre em Belém, os círios fluviais pelo Pará — procissões religiosas realizadas sobre as águas — ocupam um papel central no calendário mariano da Amazônia, conectando devoção e modo de vida ribeirinho. Embarcações ornamentadas, cânticos, orações e fogos compõem um espetáculo de fé que, segundo a antropóloga Mariana Ximenes, pesquisadora do Círio de Nazaré, expressa não apenas religiosidade, mas também identidade cultural e resistência de comunidades que mantêm laços profundos com os rios.

“O rio é lugar de comer, de imaginar, de viver a religiosidade. É deslocamento, é alimento, é parte da cosmologia dessas populações”, afirma Mariana. Ela lembra que a própria palavra “círio” vem de Portugal e originalmente se refere à vela usada nas procissões, mas na Amazônia passou a designar, de forma mais ampla, qualquer procissão — seja por terra ou por água.

Entre os exemplos mais antigos e conhecidos estão o Círio Fluvial de Oriximiná, na região oeste do Pará, realizado à noite com dezenas de embarcações iluminadas, e o de Caraparu, no município de Santa Isabel do Pará, dedicado a Nossa Senhora da Conceição, que já ultrapassa sete décadas de história. Nessas localidades, o transporte fluvial não é apenas tradição: é a base do deslocamento diário e do abastecimento.

A estética dessas romarias é própria. Em vez das ruas enfeitadas das procissões em terra firme, nos círios fluviais são os barcos que recebem decoração especial, com bandeiras, flores e iluminação. Muitas vezes, a imagem do santo é conduzida em destaque em uma embarcação principal, cercada por fiéis em barcos menores. “É um tipo de procissão que conecta o sagrado à paisagem natural e ao cotidiano ribeirinho”, diz Mariana.

Promessas e agradecimentos nas águas

Para essas comunidades, a romaria é também um momento de agradecimento. Promessas são pagas por pescadores que sobreviveram a naufrágios, famílias que tiveram fartura na pesca ou que receberam proteção em situações de risco nas águas. “Existe uma dimensão muito forte de retribuição, de gratidão, que se materializa nesse deslocamento ritual”, explica a pesquisadora.

Apesar da força da tradição, as festas enfrentam desafios. Mudanças climáticas, secas severas ou cheias fora de época podem dificultar a realização das procissões, já que a variação natural dos rios amazônicos é grande e nem sempre considerada pela legislação nacional.

“Ainda não vi eventos cancelados por esse motivo, mas é algo que precisamos observar. As comunidades tendem a encontrar soluções criativas para manter o círio, mesmo diante das dificuldades”, ressalta.

Conexão com o tema do Círio 2025

O tema do Círio 2025, “Maria, Mãe e Rainha de toda a criação”, abre espaço para que o debate ambiental e a valorização do modo de vida ribeirinho estejam mais presentes nas reflexões deste ano. Para Mariana, há uma oportunidade de conectar fé e preservação. “Precisamos sair do discurso e construir uma agenda real de cuidado com a Amazônia e suas populações, no micro e no macro. Esse é um desafio que não cabe apenas às comunidades ribeirinhas, mas à sociedade como um todo”, afirma.

Embora o tema tenha origem em pautas mais amplas da Igreja Católica, com inspiração no Ano Jubilar de 2025 e nos documentos do Papa Francisco sobre o meio ambiente, a pesquisadora acredita que, no contexto amazônico, ele dialoga diretamente com a vida de quem depende do rio. “A identidade ribeirinha de Belém, por exemplo, foi renegada por muito tempo, mas está sendo resgatada. E o círio fluvial é um dos símbolos mais vivos dessa relação”, conclui.