Carros de promessa revelam mudanças e permanências na história do Círio
Elementos presentes desde o século XIX ajudam a entender a relação dos devotos com Nossa Senhora e as transformações na festa
No meio da multidão que acompanha a berlinda do Círio de Nazaré, um cortejo chama atenção pelo tamanho, pelas cores e pelas histórias que carrega: são os carros de promessa. Presentes na procissão desde pelo menos o início do século XIX, esses elementos formam um capítulo próprio da devoção mariana no Pará.
Segundo o historiador e professor da Universidade Federal do Pará (UFPA) Márcio Couto Henrique, o mais antigo registro é do carro dedicado a Dom Fuas, ligado a um dos milagres fundadores da devoção a Nossa Senhora em Portugal.
Carros registram a fé ligada aos rios amazônicos
Muitos dos primeiros carros faziam referência à proteção divina nos mares e rios da Amazônia, refletindo a ligação entre fé e navegabilidade em uma região onde o transporte fluvial é essencial. “Grande parte desses carros simbolizam essa relação de fé, de devoção e de proteção àqueles que circulam pelos rios da região amazônica”, explica Márcio.
No século XIX, também existiam modelos que não fazem mais parte do cortejo, como o Carro dos Fogos, que anunciava a chegada da procissão e foi retirado por questões de segurança na década de 1980. Outros carros, como “Chiquinha” e “Faceira”, tinham nomes curiosos e não necessariamente religiosos, evidenciando um caráter cultural mais amplo da festa naquele período.
Mudanças refletem nova condução da festa
A partir de 1910, com a criação da Diretoria da Festa de Nazaré (DFN), os carros passaram a receber nomes e temas religiosos, como a Santíssima Trindade e a Sagrada Família. Mesmo com essa institucionalização, a cada edição há espaço para inovações, como o Carro da Saúde, criado em homenagem aos profissionais que atuaram durante a pandemia de Covid-19. “Os carros mostram um pouco dessa busca pela novidade, tanto na estética quanto naquilo que eles referenciam”, observa o historiador.
Tradição popular anterior à organização da Igreja
Márcio destaca que, no século XIX, o Círio era organizado por uma irmandade leiga com forte participação popular. Há relatos de edições realizadas sem a presença de padres e de tensões entre a programação cultural e as diretrizes da Igreja. “A devoção a Nazaré é anterior ao Círio e se espalhou entre a população mais pobre antes da institucionalização da festa”, afirma.
Mesmo com todas as mudanças, os carros de promessa seguem como ícones da fé popular. “Eles contam parte importante dessa rede de milagres, de fé e devoção. É uma tradição que se renova, mesmo sendo já tão antiga”, resume.
Há 22 anos, restaurador mantém os carros prontos para o Círio
Desde 2003, o restaurador Everaldo Farias é o responsável por preparar e recuperar os carros e as berlindas antes das procissões. Este ano, os trabalhos incluíram a troca do altar do carro da Sagrada Família, substituição das laterais por chapas metálicas e a repintura da Barca com Remo, além do reforço estrutural no Carro do Cesto de promessas.
Sozinho na função, Everaldo diz que o trabalho é uma missão de fé. “Se Deus permitir, até quando Deus e Nossa Senhora quiserem, eu estou por aqui. Já consegui muitas bênçãos com ela, então é uma satisfação muito grande fazer esse serviço com amor e dedicação, para que não tenha problema nenhum nas procissões dela”, afirma.
A cobertura do Círio de Nazaré 2025 de O Liberal tem patrocínio do Banco da Amazônia, Natura, Atacadão, Liquigás, além do apoio da Vale.
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