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Incêndio na Boate Kiss: ‘curar isso eu não sei se um dia eu vou conseguir’, diz sobrevivente

Em entrevista à Redação Integrada de O Liberal, a catarinense Jéssica Duarte, de 30 anos, uma das sobreviventes da tragédia em Santa Maria, falou sobre a noite do incêndio e como lida com as sequelas

Gabriel Pires

Na última sexta-feira (27), o incêndio da boate Kiss, que vitimou 242 pessoas, em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, completou 10 anos. As marcas da tragédia ainda são presentes na vida dos 636 sobreviventes da tragédia. Em entrevista à Redação Integrada de O Liberal, a fisioterapeuta Jéssica Duarte, de 30 anos, natural de Santa Catarina, uma das sobreviventes da fatalidade, falou sobre a noite do caso e como tem lidado com as sequelas.

Relembrar o que foi vivido no dia 27 de janeiro de 2013 ainda é motivo de comoção para a sobrevivente, que teve 40% do corpo atingido no incêndio. Naquela época, com 20 anos de idade, a fisioterapeuta relembra que a Kiss não era o destino dela naquela noite, que decidiu ir de última hora com o namorado Bruno Portella Fricks — que morreu no incêndio — após ir para um barzinho e se deparar com a fila lotada para entrar. Por achar que não iriam conseguir entrar, eles resolveram ir para a Kiss.

“Meu ex-namorado falou para a gente dar uma volta na cidade, ver o que que tinha. E aí ele acabou indo para a boate Kiss. Chegando lá, tinha uma vaga de carro exatamente na frente da boate. Então facilitou para a gente estacionar o carro ali. A fila não tinha mais ninguém. Já era quase uma e meia da manhã. Então, praticamente estava todo mundo lá dentro.  Tudo acabou para que a gente entrasse lá”, conta Jéssica.

O incêndio

Jéssica lembra com clareza o momento em que o incêndio se alastrou. Ela conta que estava saindo do banheiro quando tudo começou e, por um momento, achou que toda aquela movimentação tratava-se de uma briga, devido à movimentação incomum no local. Na tentativa de se salvar e no meio de todos o caos, a moça lembra somente que não saiu consciente da boate.

“A gente já viu que estava uma multidão e se empurrando, estava todo mundo indo em direção a porta de saída mas a gente não tinha entendido o que era. A gente achou que era uma briga. O primo dele [de Bruno], que também estava com a gente, nos avisou que não era uma briga, era fogo e nos apontou o local do fogo que era do outro lado da boate. A gente tava bem próximo da saída, na verdade. E, a partir dali, o primo dele pediu para eu segurar a camisa dele. E o Bruno foi atrás de mim, os dois me empurrando em direção a porta de saída só que daí eu não dei conta de segurar”, detalha a fisioterapeuta.

 

Recomeço

No decorrer de 10 anos, Jéssica conta que foram muitas as readaptações. No processo de recuperação, ela fez fisioterapia para ajudar a recuperar os movimentos do corpo. E, ainda, contou com fisioterapia pulmonar, para que pudesse ter um melhor desenvolvimento da respiração — em decorrência da fumaça inalada. Ao todo, foi um ano de tratamento intenso. Passado tudo isso, Jéssica vive uma vida saudável e realiza exames regularmente para checar se está tudo bem com a saúde.

“Logo depois que eu saí, eu era completamente dependente da minha mãe. Então eu não conseguia fazer atividades básicas do dia a dia, como ir ao banheiro, tomar banho. Os meus dois braços foram bem queimados e as minhas duas pernas. Eu andava com dificuldade. Eu não conseguia fazer nada desde comer, desde fazer todos os tipos de coisas básicas que a gente faz sem perceber. Foi o ano todo de muito tratamento. Eu fiquei muito debilitada”, diz.

Para viver bem e seguir em frente, Jéssica relata que precisou fazer tratamento psicológico. “Fiz e continuo fazendo. Terapia é uma coisa que, na verdade, a gente não deve parar nunca. Os traumas psicológicos com certeza são muito maiores. Hoje, fisicamente, sou uma pessoa com nenhum tipo de dificuldade. O trauma é uma coisa que a gente aprende a conviver. Curar isso eu não sei se um dia eu vou conseguir", fala emocionada.

Hoje, Jéssica mora em Curitiba, onde escolheu recomeçar a vida após a fatalidade. Ela é mãe de uma menina. Dez anos após a tragédia, apesar de ter se mudado, a sobrevivente conta, que mantém contato até hoje com a família do ex-namorado, além dos outros sobreviventes. A última vez que ela foi à Santa Maria foi em 2015. E, em meio a tudo isso, externa que os efeitos pós-episódio são de grande impacto na vida dela.

“Além de ser uma tragédia que comoveu o mundo, e você ter estado e ter sobrevivido a ela, eu acho que já é uma coisa que que pesa muito. Você carrega isso pro resto da sua vida, porque você não é mais uma Jéssica qualquer. Eu posso chegar em qualquer canto do mundo, e se as pessoas me perguntarem o porquê das minhas cicatrizes, e eu só falar ‘boate Kiss’ a pessoa sabe quando foi, onde foi. Dez anos depois eu ainda sou identificada como uma vítima. Isso pesa um pouco”, desabafa.

Jéssica diz que não tem mais o costume de ir a boates, mas revela que, após o episódio, ainda frequentou algumas festas. No entanto, com um olhar bem mais atento. “Eu ia pra balada, mas eu sabia onde estava o extintor de incêndio, eu sabia onde era porta de saída. Se o lugar estava muito lotado, eu não entrava. Se eu não sentia que o ambiente me parecia adequado, eu não entrava, eu saía e não frequentava mais o lugar. Frequentei muita balada, sim, mas o meu pensamento e a minha cabeça foram completamente diferentes. Porque eu passei por alguma coisa e eu precisava aprender com aquilo”, conta Jéssica.

(Gabriel Pires, estagiário, sob a supervisão de João Thiago Dias, coordenador do Núcleo de Atualidades)

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