Especialistas defendem regulação das redes sociais com equilíbrio entre controle e liberdade
No centro do debate está a possibilidade de responsabilização das plataformas por conteúdos ilícitos divulgados por seus usuários
A discussão sobre a regulamentação das redes sociais voltou ao cenário político e jurídico brasileiro. O tema envolve o Palácio do Planalto, que articula propostas no Congresso Nacional, ao mesmo tempo em que o Supremo Tribunal Federal (STF) analisa ações envolvendo crimes digitais. No centro do debate está a possibilidade de responsabilização das plataformas por conteúdos ilícitos divulgados por seus usuários, como fake news, discursos de ódio, incitação à violência e crimes contra crianças e adolescentes.
O movimento traz à tona uma série de dilemas envolvendo direitos fundamentais, liberdades individuais e o papel das big techs em democracias contemporâneas. De um lado, cresce a demanda por responsabilização das empresas que operam redes sociais; de outro, aumentam os alertas sobre riscos de censura, aumento da burocracia e impactos à inovação tecnológica.
Para o advogado Rafael Tupinambá, presidente da Comissão de Gestão, Empreendedorismo e Inovação da OAB-PA, o retorno da pauta representa uma tentativa necessária de atualizar o marco legal que regula o ambiente digital no Brasil.
“Retomar essa discussão representa um esforço para reavaliar e, possivelmente, reformular as leis e normas que governam o funcionamento dessas plataformas. Essa retomada envolve debates sobre temas como liberdade de expressão, responsabilidade das plataformas por conteúdos gerados por usuários, combate à desinformação, proteção de dados pessoais e o impacto das redes sociais na saúde mental e na democracia”, explicou.
O advogado destaca que a retomada do debate foi impulsionada por um cenário crescente de desinformação e violência, com reflexos diretos na saúde pública e na segurança digital. “Entre os principais fatores estão, principalmente, a disseminação de notícias falsas e de desinformação; ataques e violências em escolas; e questões relacionadas à saúde mental. Estudos têm demonstrado a relação entre o uso excessivo das redes sociais e problemas como ansiedade, depressão, baixa autoestima, especialmente entre os jovens”, observou.
Além dos danos emocionais, Tupinambá reforça que o uso das redes para práticas criminosas também pressiona por uma regulação mais rígida. “A utilização das redes para a prática de crimes como pedofilia, racismo, incitação ao suicídio e discursos de ódio também tem contribuído para a retomada da discussão sobre a regulamentação dessas plataformas”, afirmou.
No campo político, ele destaca a atuação conjunta dos Três Poderes como um fator determinante para o avanço de um novo marco regulatório. “O governo federal tem demonstrado interesse em regulamentar essas plataformas, buscando apoio no Congresso Nacional e no STF para avançar com propostas legislativas. O próprio STF tem se posicionado sobre o tema, por meio de julgamentos que podem definir novas regras para o funcionamento das redes sociais no Brasil”, pontuou.
Tupinambá lembra que o Brasil observa experiências internacionais, como a da União Europeia, para construir sua própria legislação. “A aprovação de leis de regulamentação em outros países, como o Digital Services Act da União Europeia, tem servido de inspiração e referência para o debate brasileiro”, disse.
Apesar de reconhecer a necessidade de avanço, o advogado alerta para os riscos de excessos. “O debate sobre a regulamentação das redes sociais também é marcado por preocupações com possíveis restrições à liberdade de expressão e com o risco de censura, o que tem gerado discussões acaloradas e polarizadas”, ressaltou.
Segundo ele, uma regulamentação equilibrada pode trazer ganhos relevantes à sociedade, desde que preserve os direitos dos usuários. “Uma nova regulamentação das redes sociais pode trazer benefícios incríveis. Imagina combater a desinformação de forma eficaz, proteger os dados pessoais dos usuários e reduzir o discurso de ódio. Podemos responsabilizar as plataformas, tornando o ambiente online mais seguro, especialmente para crianças e adolescentes. E claro, fortalecer nossa democracia, protegendo-a de interferências. Mas também há riscos. Precisamos evitar a censura, garantir a liberdade de expressão e não sufocar a inovação tecnológica. A chave é encontrar um equilíbrio para que essa regulamentação não cause mais problemas do que soluções”, avaliou.
Sobre a proposta de responsabilização prévia das plataformas por conteúdos postados, Tupinambá avalia que a medida traz benefícios, mas também perigos. “Se responsabilizarmos as plataformas antes de uma ordem judicial, poderíamos remover conteúdos nocivos rapidamente, incentivando a moderação proativa. Isso aliviaria o sistema judicial e os direitos dos usuários. Mas, por outro lado, o risco de censura é real. As plataformas poderiam cometer erros, removendo conteúdos legítimos e restringindo a liberdade de expressão. Além disso, a falta de transparência e o aumento do poder das plataformas são preocupantes. É essencial definir claramente o que é um conteúdo ilícito e garantir a supervisão judicial para evitar abusos”, ponderou.
Para ele, o maior desafio da discussão é encontrar o ponto de equilíbrio entre regulação, liberdade e inovação. “Um grande desafio é encontrar esse ponto de equilíbrio. Primeiramente, precisamos definir o que é conteúdo inadequado sem sermos vagos e abrirmos espaço para a censura. A liberdade de expressão é um direito fundamental, então restrições devem ser mínimas. Evitar a censura excessiva, combater a desinformação sem restringir opiniões e responsabilizar as plataformas de forma razoável são peça-chave. Transparência, educação midiática, cooperação internacional também são cruciais. É um quebra-cabeça complexo, mas precisamos encontrar soluções que protejam a liberdade e promovam um ambiente online saudável”, refletiu.
Tupinambá finaliza com críticas ao atual Marco Civil da Internet, que segundo ele já não responde às exigências do cenário digital atual. “O artigo 19 foi o avanço, mas o digital mudou muito. Ele não está acompanhando realmente os avanços tecnológicos. Ele é limitado e não aborda questões como notícias falsas, discurso de ódio, a moderação do conteúdo pelas plataformas. Precisamos de uma legislação atualizada que responsabilize as plataformas, proteja a democracia e a saúde pública, e regule a moderação do conteúdo de forma justa e transparente. O marco civil já não dá conta do recado”, concluiu.
Riscos de censura podem ser evitados com regras claras, afirma pesquisadora
A professora Ivana Oliveira, pesquisadora de narrativas digitais e professora universitária, também acompanha de perto a discussão. Para ela, é fundamental que o debate envolva diversos setores da sociedade e seja guiado por critérios técnicos, jurídicos e éticos bem definidos.
Entre os principais riscos apontados, Ivana destaca a possibilidade de uso político da regulação. “Sobre os contras, normalmente o que é apontado é um risco de censura. Eu acho o seguinte, a gente vai ter que lutar para que não haja um poder concentrado nessa regulamentação no Estado ou em agências reguladoras. Então a gente vai ter que definir o que é desinformação, o que é conteúdo nocivo, para não ficar sujeito a interpretações políticas arbitrárias, principalmente em contexto de polarização como a gente está vivendo agora”, afirmou.
Para garantir que a regulação não viole direitos constitucionais, ela defende que os conceitos usados na lei sejam objetivos e embasados. “Equilibrar esses conteúdos com a garantia de liberdade de expressão, eu acho que é o maior desafio dessa regulamentação digital. Critérios técnicos, jurídicos e também critérios éticos têm que estar muito bem delimitados. Termos como desinformação, discurso de ódio, ofensa e fake news podem ser muito subjetivos”, explicou.
A pesquisadora também alerta para os efeitos colaterais que uma legislação mal formulada pode causar à economia digital. “Essa regulamentação tem que ser feita de uma forma muito séria porque senão pode aumentar a burocracia, ter um custo maior para as plataformas, ter um risco mesmo para a inovação tecnológica porque vai desestimular algumas startups a investirem, a novas iniciativas no setor digital brasileiro”, observou.
Apesar dos desafios, Ivana acredita que a responsabilização das plataformas pode trazer avanços significativos no combate à desinformação e aos discursos de ódio. “A maior vantagem é a maior responsabilidade das plataformas: obrigar a Meta, o Google, o X a monitorar conteúdos nocivos e agir com mais transparência e rapidez diante das violações. Vamos poder combater a desinformação e, principalmente, os discursos de ódio, criando mecanismos legais para punir a disseminação da desinformação, a incitação à violência, os ataques à democracia e os discursos discriminatórios”, disse.
Ela também aponta que é urgente debater a transparência dos algoritmos e das campanhas de publicidade digital, principalmente em contextos eleitorais. “As regras de impulsionamento de conteúdo e os algoritmos de recomendação ainda são um segredo, como fórmulas da Coca-Cola, e precisamos entender claramente como funcionam, principalmente na publicidade política”, argumentou.
Ivana observa que o Executivo tem se empenhado na pauta por meio da Secretaria de Comunicação Social e do Ministério da Justiça, mas enfrenta obstáculos políticos e lobby das big techs no Congresso. “O problema é que quem defende a proposta enfrenta resistência, a oposição acusa o governo de querer censurar e controlar a opinião pública. Por isso, é essencial uma estratégia de comunicação clara e pedagógica sobre o que está sendo proposto”, destacou.
Diante da lentidão no Legislativo, ela ressalta o protagonismo do STF e a importância da mobilização social. “As escolas estão discutindo isso, nós na Universidade da Amazônia discutimos constantemente. É fundamental que pais e responsáveis também participem. Precisamos de regulamentações setoriais, para proteção de crianças, adolescentes e sobre propaganda eleitoral”, afirmou.
Por fim, Ivana defende que o Brasil avance com uma regulação democrática, baseada em experiências internacionais e construída coletivamente. “Retomar essa discussão sobre a regulamentação das redes no Brasil é um esforço do Estado para enfrentar um desafio urgente, ligado à desinformação, aos discursos de ódio, à violência política e à proteção de direitos fundamentais no ambiente digital”, afirmou.
“Sem isso, corremos o risco de ter nossa soberania digital e capacidade institucional de regulação ameaçadas. É preciso uma atuação coordenada dos Três Poderes, encontrar consensos, regular sem censurar e garantir direitos digitais de forma democrática”, concluiu.
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