Sob a pressão da Polícia Federal, governo desiste de agência antimáfia
PF temia que o novo órgão conflitasse com suas atividades
O governo Luiz Inácio Lula da Silva decidiu desidratar o anteprojeto da Lei Antimáfia que pretende mandar para o Congresso até quinta-feira, 28, e excluiu do texto final a criação da Agência Nacional de Enfrentamento às Organizações Criminosas. O órgão constava da minuta final do projeto entregue na semana passada ao ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, a que o Estadão teve acesso. A decisão atende à pressão da Polícia Federal.
A reportagem apurou que a PF temia que o novo órgão conflitasse com suas atividades - pois as ações antimáfia seriam coordenadas por ele. Houve ainda questionamentos jurídicos da assessoria técnica, sobre a constitucionalidade da proposta, e políticos, sobre uma possível perda de autonomia do ministério na definição de políticas para a área.
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A criação da agência foi proposta por especialistas do setor e tem entre seus principais defensores os Ministérios Públicos especializados no combate ao crime organizado, que queriam seguir o modelo da Direção Investigativa Antimáfia, da Itália. No recuo, o ministério considerou ainda que a criação de um novo órgão com cargos e salários seria desaconselhável em momento de contenção de gastos do governo e de reforma administrativa.
A discussão sobre as atribuições da Polícia Federal não é nova. Cresceu no governo Lula, não só pela proposta da Lei Antimáfia, mas anteriormente pela chamada PEC da Segurança, que tem atualmente tramitação lenta no Congresso Nacional, após a criação em julho de uma comissão especial de análise. Entre as iniciativas em discussão está incluir o combate a crimes ambientais, a organizações criminosas e a milícias em âmbito interestadual e internacional nas competências da PF.
Há dúvidas diversas. Existe desde a questão de como ficariam as relações com as polícias estaduais até a discussão de como alocar mais recursos e pessoal, caso se abram mais frentes de trabalho. Isso sem contar o viés político, pois muitos governadores preferem ampliar as competências das polícias estaduais. O governo minimiza e alega que grande parte das atribuições novas já faz parte da rotina de operações conjuntas feitas pelas polícias, como se vê notadamente no combate a desmatamento e crimes ambientais.
Após a definição do texto final, em artigo no portal do Estadão, o promotor paulista Lincoln Gakiya, um dos principais especialistas em crime organizado do País, apontou duas necessidades que não haviam sido supridas pela PEC da Segurança: a criação de uma agência antimáfia e alterações no conceito de organização criminosa. O texto foi assinado em conjunto com o ex-ministro da Segurança, Raul Jungmann, e com Walfrido Warde e Rafael Valim, do Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresa (IREE).
No texto, defendiam uma agência com "efetivo próprio, sobretudo para obtenção de informações indispensáveis à concepção de políticas de desbaratamento das máfias, com poderes para recrutar agentes, explícita ou secretamente, em quaisquer polícias, submetê-los a critérios especiais de compliance e de integridade e infiltrá-los nos mais diversos ambientes onde se manifesta a criminalidade organizada, sobretudo para depurar o aparato estatal de combate às máfias". Essas propostas ressurgiram agora na Lei Antimáfia.
O que fica?
O texto desidratado, segundo a reportagem apurou, mantém os principais pontos levantados pelo Estadão no sábado, 23, endurecendo a legislação para o crime organizado. A proposta a ser apresentada nesta semana começa alterando a lei das organizações criminosas, para que essas organizações sejam assim consideradas quando têm ao menos três pessoas com divisão de tarefas (atualmente são necessárias quatro pessoas para essa organização) e aumenta a pena mínima de 3 para 5 anos e a máxima de 8 para 10 anos de prisão, sem prejuízo às demais infrações cometidas. Caso a organização seja considerada qualificada, a pena pode subir para 12 a 20 anos de prisão.
As organizações qualificadas são consideradas aquelas em que seus integrantes usam a força para intimidar pessoas por meio de influência exercida na sociedade com o domínio de atividades econômicas, políticas, concessões, autorizações, contratos públicos ou estratégia de domínio territorial. O que se busca é atacar as ações de facções como o Comando Vermelho e as milícias que dominam bairros e regiões de centros urbanos e obrigam as pessoas a contratar serviços como internet, gás, aplicativos de transporte e outros sob controle criminoso.
Da mesma forma, a pena será aplicada a organizações que queiram embaraçar processos eleitorais. Mais uma vez, o objetivo é evitar a ação de facções que só permitam a seus candidatos fazer campanha nos bairros. A corrupção de agentes públicos ainda pode fazer com que as penas subam para 12 a 30 anos de prisão.
Extorsão, lavagem e golpe terão pena maior
Entre os aumentos de pena ligados à nova dinâmica do crime no País previstos na proposta da Lei Antimáfia também está o de dobrar a condenação dos acusados de estelionato ligados a organizações criminosas. Há ainda a alteração do delito para a competência do Ministério Público, independentemente da vontade da vítima nesses casos. No caso das extorsões, vale o mesmo, atingindo os golpes do falso sequestro: se forem praticados com grave ameaça no contexto de organização criminosa terão também a pena dobrada para os condenados.
Hoje a pena de estelionato é de 1 a 5 anos de prisão e para a extorsão, de 4 a 10 anos. No caso da lavagem de dinheiro com ativos virtuais, como as criptomoedas, as penas devem crescer de um terço a dois terços e em dobro se os crimes estiverem ligados a organizações criminosas. As criptomoedas são hoje um dos principais caminhos para a evasão de divisas e a lavagem de bens das máfias internacionais.
Prisão preventiva
O projeto muda o Código de Processo Penal para permitir a prisão preventiva se o crime envolver organização criminosa e houver fundado receio de fuga ou obstrução das investigações, acrescentando assim mais uma possibilidade na lei para que alguém seja preso preventivamente, uma antiga reivindicação de policiais.
Também será possível pedir a prisão temporária de acusados de pertencer a organizações criminosas, independentemente do tipo de delito. O juiz deverá decidir em 24 horas sobre esse bloqueio de bens.
Gravação de visitas
Mais ainda, as visitas de presos e consultas nos parlatórios de prisões de segurança máxima poderão ser monitoradas e gravadas. E as visitas deverão ser separadas dos presos por vidro e interfone, impedindo contato físico com o detido.
A internação no Regime Disciplinar Diferenciado em casos graves e de lideranças de organizações criminosas será feita sem autorização prévia da Justiça, como ocorre hoje. Mas o magistrado poderá mantê-la ou revogá-la.
Proteção de vítimas
Por fim, o projeto tem um capítulo para a proteção de vítimas e testemunhas. As medidas nesse sentido deverão durar enquanto a ameaça existir e juízes, promotores, integrantes das polícias e seus familiares poderão entrar no programa.
Esse trecho da lei tem nome: chama-se Lincoln Gakiya, o promotor jurado de morte pelo PCC, que vive sob escolta policial, assim como sua família, há mais de uma década. Fonte: Dow Jones Newswires. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
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