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Lembranças do embaixador, o chef Paulo Martins

Lorena Filgueiras, Especial para O Liberal

“É fácil identificar um paraense no aeroporto”, diz Daniela Martins, chef de cozinha e filha do inesquecível chef Paulo Martins. “Basta olhar os isopores nas esteiras”, ela conclui, entre risos. Mas houve um tempo em que não era assim. Não, não estamos falando do período pandêmico, especialmente no pior momento da crise sanitária, em que os isopores rarearam tanto quanto os próprios voos, mas de uma época, já perdida em memórias enevoadas, em que isso seria considerado uma vergonha. Foi o chef Paulo Martins quem naturalizou o hábito.

Orgulhoso de suas origens, o título de grande embaixador da cozinha paraense nasceu do desejo de compartilhar os sabores únicos da Amazônia com o mundo todo. Logo, era recorrente: se tivesse de viajar para um compromisso profissional, lá ia Paulo levando isopores na bagagem. E fazia isso com um prazer enorme. Em 2004, quando recebeu o convite de conhecer o chef catalão Ferran Adriá e seu El Bulli, (então detentor inalcançável do título de “melhor chef e melhor restaurante do mundo), não hesitou em levar 64 quilos de comida paraense na bagagem. Como não podia deixar de ser, em dois isopores enormes. A razão? Paulo havia lido, semanas antes, uma entrevista de Adriá, em que dizia não conhecer os sabores da Amazônia. Um emocionado Paulo cruzou o Atlântico e encarou boas horas de viagem por terra para ir ao encontro do catalão (Adriá ficou apaixonado pelo bacuri – chamou a fruta de “rainha”). O personagem central deste texto era um homem, sobretudo, visionário. Afirmou inúmeras vezes que o “tucupi seria o sabor do século XXI”.

As histórias do chef ganham um ar nostálgico neste dia 9 de setembro, data que, em 2010, marcou sua partida para a imortalidade. Coincidentemente Paulo nos deixou no mesmo dia em que a filha caçula, Joanna Martins, faz aniversário. “A data foi triste para mim por muito tempo”, conta ela, “até que compreendi a marca especial que ele quis deixar”, afirma a empresária que, seguindo os passos do pai, dedica-se a apresentar também os sabores do Pará ao restante do mundo.

Paulo nasceu em Belém, também num dia 9. Era maio de 1946, quando Anna Maria Martins deu entrada na Santa Casa de Misericórdia do Pará. Neta do ex-governador José Malcher, ficou dias a mais, depois do parto, tendo recebido alta somente no dia 17 de maio. Paulo nascera com uma pequena deficiência na perna (uma era maior que a outra) e os médicos acharam melhor manter mãe e filho sob cuidados especiais. Iniciava-se naquele longínquo ano de 46 uma relação tão intensa quanto única – dona Anna Maria o chamava de “Paulinho, meu filho”. O vocativo composto não admitia abreviações ou encurtamentos e acompanhou Paulo até o último dia de vida da mãe.

Anna Maria e Mário Nicolau tiveram mais dois filhos: Sílvio e Helena

Dona Anna Maria, por si, já era uma mulher muito à frente de seu tempo. Divorciada, decidiu que cozinharia “para fora”, como se dizia à época. Foi um escândalo familiar sem precedentes, contava Paulo, adicionando um tempero a mais. “Era um absurdo uma neta de governador vender quentinha”, divertia-se. Era “Paulinho, meu filho” quem administrava o livro-caixa da mãe, que levava as encomendas, que recebia os pagamentos.

Mesmo estudando Arquitetura, na Universidade Federal do Pará (na segunda turma da Instituição), Paulo jamais tirou os pés da cozinha. Em 1972, no porão do chalé da família Malcher, mãe e filho abriram um “botequim que servia boa comida”. Paulo pediu demissão da Codem e passou a trabalhar com dona Anna Maria. O restaurante ganhou o nome de “Lá em Casa”, “pela falta de um nome melhor”. Os amigos perguntavam onde funcionaria o botequim, ao que o (então) arquiteto respondia que seria “lá em casa”. Assim ficou.

Não entrava pimenta, nem cominho na cozinha. Havia uma única máxima: “respeitar o modo de cozinhar dos antepassados”, então o tempero era caseiro e com ingredientes “pronunciáveis”. Da cozinha e das mãos mágicas de Don’Anna saíam pato no tucupi, maniçoba, Silveirinha de camarão. Há clássicos, entretanto, que nasceram do acaso (e necessidade) do próprio Paulo. O arroz de jambu, criado por ele, foi uma solução encontrada para satisfazer o amigo Romulo Maiorana – cliente habitual de fim de noite – e inspirador de um prato guarnecido pelo tal arroz: Bacalhau à RM. Uma noite, já na boca da madrugada, o velho Rômulo chegou acompanhado de Boni [então todo-poderoso da Rede Globo], Daniel Filho e Jô Soares. O pedido: bacalhau para a mesa toda! Mas quem disse que tinha brócolis àquela hora?

“Dizer que o prato não sairia, era bronca na certa”, recontou Paulo. E a epifania rolou ali mesmo, no centro da cozinha: usar jambu no lugar do brócolis. E a continuação da história… bem, creio que sabem. Na coluna que assinava em O Liberal, Paulo amarrou a questão. “Muitas pessoas se dizem autoras da invenção do arroz de jambu, buscando para si a paternidade do prato. Não discuto nem disputo essa autoria: as únicas paternidades que faço questão de proclamar é a de minhas três filhas”.

E o muçuã de botequim? Ele o chamava de “sucedâneo”, uma vez que era uma alternativa mais barata (e correta) à carne do quelônio. Botequim, boitequim. O fato é que os ingredientes ganhavam vida própria nas mãos do Paulo. Arquiteto, alquimista, ele sabia como estruturar os sabores, combinando-os e tornando-os inesquecíveis. A lista é interminável, mas para atiçar os sentidos dos leitores, peixe na crosta da castanha, arroz paraense, salada de feijão manteiguinha de Santarém, haddock paraense...

Em 2007 dona Anna Maria partia deixando um vazio enorme no peito de Paulo, reforçando a tese dos antigos, de que “morria-se apaixonado”. Sem a mãe, companheira de uma vida inteira, descuidou-se e Paulo também foi definhando. Sentia uma saudade avassaladora dela e naquele 9 de setembro de 2010, também se despediu. Seu legado fez e ainda faz história, porque pavimentou uma longeva estrada para jovens chefs e gestores da área da alimentação e turismo gastronômico.

O embaixador – afirmo – está mais vivo do que nunca

Seu legado continua – O 25 de julho (aniversário de dona Anna Maria) marca o dia da culinária paraense. Após 49 anos de existência, o Lá em Casa, restaurante da família, fechou as portas. A falta de políticas voltadas ao setor, em plena pandemia, tornou sua existência insustentável. Duas das três filhas de Paulo, Daniela e Joanna, continuam se dedicando ao legado do pai. Daniela montou um serviço de quentinhas congeladas por delivery e Joanna tem uma indústria alimentícia, exportando as matérias-primas paraenses para todo o mundo: duas ótimas alternativas para saborear o que há de mais autêntico na cultura gastronômica paraense.

Belém