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Dia Internacional da Parteira: conheça a paraense de 91 anos que fez mais de 1.500 partos

Data criada pela OMS e ICM busca valorizar o papel dessa profissão na saúde reprodutiva das mulheres

Eva Pires | Especial para O Liberal

O Dia Internacional da Parteira, celebrado em 5 de maio, reconhece o papel essencial dessas profissionais na saúde reprodutiva das mulheres. Embora hoje o ofício seja menos comum, ele representa uma tradição ancestral e uma rede de apoio entre mulheres. Mais do que trazer crianças ao mundo, parteiras simbolizam acolhimento, cuidado e respeito ao parto humanizado. Como exemplo disso, a paraense Merandolina Rosário, de 91 anos, carrega a memória de mais de 1.500 partos realizados ao longo de cinco décadas — muitos feitos apenas com as mãos, a fé e a experiência acumulada, sempre guiada por um dom que acredita ser divino.

A data foi criada em 1991 pela Confederação Internacional de Parteiras (ICM) e é comemorada anualmente com apoio da Organização Mundial da Saúde (OMS. No Brasil, a Rede Cegonha, do Sistema Único de Saúde (SUS), é referência internacional por garantir atendimento seguro e humanizado a gestantes, inclusive às assistidas por parteiras. Em regiões quilombolas, indígenas, ribeirinhas e áreas de difícil acesso — especialmente na Amazônia profunda, onde a saúde ainda se apoia nos saberes tradicionais —, as parteiras tradicionais seguem sendo fundamentais no cuidado com mulheres e crianças.

Com o avanço das políticas de parto humanizado, os saberes ancestrais ganham novo reconhecimento. Em 2024, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) declarou o ofício das parteiras como Patrimônio Cultural do Brasil. Já o Ministério da Saúde adota o termo Parteiras Tradicionais como forma de valorizar os conhecimentos e identidades culturais dessas mulheres.

Mãos que trazem ao mundo: paraense realizava 30 partos por ano

A história de Merandolina é marcada por uma vida dedicada à arte de trazer vidas ao mundo. Nascida em Bragança, no nordeste paraense, hoje vive em Ananindeua, na Grande Belém. Filha de uma benzedeira, fez o primeiro parto aos 17 anos, ainda adolescente. Com o tempo, o nome dela se espalhou pela cidade como sinônimo de confiança e acolhimento. Em uma época de acesso limitado aos hospitais, passou a ser procurada por gestantes de diferentes regiões.

Ela conta que, nos partos que realizava, fazia questão de respeitar o corpo, o tempo e as escolhas de cada mulher, sem jamais apressar o processo. Estima ter feito cerca de 30 partos por ano — muitos deles de forma voluntária, especialmente para mulheres em situação de vulnerabilidade.

“Se a mulher vinha comigo, eu fazia o exame, via se ela tava saudável, sem anemia, sem risco. Quando chegava o tempo certo, a gente esperava os nove dedos de dilatação. Aí sim, nascia. Cortava o umbigo, banhava o neném, vestia, dava o comprimido à mãe para evitar hemorragia”, lembra Merandolina.

A sacolinha de pano com álcool, gaze, tesoura e linha era tudo que Merandolina precisava para realizar partos em casa, sem apoio médico ou recursos técnicos. Com prática e intuição, desenvolveu um olhar clínico capaz de reconhecer riscos. Quando algo fugia do normal, ela mesma levava a gestante ao hospital, onde médicos que já a conheciam e confiavam no trabalho dela assumiam o atendimento. Após o parto, seguia acompanhando mães e bebês, com cuidados e orientações que muitas vezes se estendiam até a primeira semana de vida.

Uma das histórias que mais marcaram a parteira foi a de uma mulher mandada embora de um hospital de maternidade em Belém, onde os médicos disseram que o bebê só nasceria na semana seguinte. Ao escutá-la e avaliar a situação, a parteira percebeu que o nascimento era iminente. A mulher deu à luz horas depois e Merandolina garantiu que o bebê estavivesse nos braços da mãe, são e salvo.

Em outra ocasião, um parto desafiador ficou na memória: o bebê estava em posição pélvica, com os pés para baixo e a cabeça para cima. Foi preciso habilidade, delicadeza e coragem. Com ajuda do pai da criança, a parteira conseguiu manobrar o corpo do bebê para a posição certa, garantindo um nascimento seguro. “A criança nasceu bem, com saúde. Esses momentos a gente nunca esquece”, diz.

Tradição e saberes populares que atravessam gerações

Vista pela comunidade como guardiã de saberes populares, Merandolina é referência de cuidado e acolhimento na vizinhança. A tradição de realizar partos atravessou o tempo e as gerações. A parteira não apenas trouxe ao mundo filhos e netos de antigas parturientes, como também cuidou da saúde da comunidade com massagens terapêuticas, rezas e remédios caseiros. Até hoje, moradores do bairro do Coqueiro batem na porta da idosa em busca de cura e orientação. Na frente de casa, uma placa discreta avisa: atendimento até às 21h.

Merandolina é mãe de 12 filhos e parteira das próprias filhas. Entre elas, está a pedagoga Benedita Socorro, de 56 anos, que aprendeu com a mãe os saberes terapêuticos e mantém viva a memória dessa trajetória inspiradora. Benedita cresceu vendo a mãe ajudar outras mulheres, e muitas vezes participou dos partos, levando água morna, limpando, dando apoio à parturiente. Foi assim também quando chegou a vez dela. Grávida e insegura, ouviu da mãe que o bebê viria naturalmente, sem complicações. “Ela fez o toque, disse que ia dar tudo certo. E deu. Eu confiei nela, além de parteira, é minha mãe”, relata com emoção.

O legado de Merandolina vai além da técnica: é sobre afeto e estar presente em um dos momentos mais transformadores da vida de uma mulher. Lembrada não só como parteira, mas como símbolo de uma ancestralidade feminina, cada criança que ela ajudou a nascer carrega um pedaço dessa história. Aos 91 anos, ela não faz mais partos, mas segue sendo procurada por quem deseja ouvir, aprender, ou apenas agradecer. Sobre a data em homenagem à profissão, ela afirma: “Significa muita coisa, por tudo o que eu já vivi. Porque Deus é quem me deu essa força. É fé. Quando a gente tem fé, a coragem vem junto”.

Belém