Veja como a música pode melhorar a concentração e a comunicação de pessoas com TDAH
Ouvir música ou tocar um instrumento pode reduzir os sintomas e trazer mais qualidade de vida para crianças, adolescentes e adultos com o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH)
A música vem se fortalecendo como uma poderosa aliada para melhorar a concentração, comunicação, bem-estar e qualidade de vida de pessoas com Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). Estudos recentes da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e da Soonchunhyang University, na Coreia do Sul, mostram que tocar instrumentos ou ouvir melodias clássicas e tradicionais pode reduzir erros e sintomas depressivos em crianças e adolescentes. Em Belém, essa teoria ganha vida no Instituto Estadual Carlos Gomes, onde professores e alunos diagnosticados com TDAH relatam que as aulas funcionam como uma espécie de terapia, promovendo disciplina, socialização e até novas perspectivas de futuro.
Professor de saxofone do Instituto Estadual Carlos Gomes, Arley Bichara avaliou como a musicalização incentiva os alunos à socialização. “O estudo da música em si, já tem essa propriedade muito forte. E quando o aluno, independente da idade, tem uma inclinação à questão da arte sonora, que é o caso da música, ele tem essa habilidade de concentração, de disciplina. E eles acabam desenvolvendo talvez até atitudes e comportamentos que ainda não foram achados. A prática com instrumento, independente de ser de sopro ou de cordas, também potencializa isso cada vez mais", pontua.
O musicista é diagnosticado com o TDAH e afirmou que, por mais que a instituição não tenha uma modalidade de musicoterapia, as aulas acabam funcionando como um processo terapêutico. “Não é um lugar onde a música vai ser um processo terapêutico para os alunos. Mas a gente sabe que hoje com essa situação de TDAH e austismo, as pessoas têm tido laudos tardios. E muitos adultos já trabalham com certas profissões. No meu caso, eu sou professor e tenho TDAH. O que é importante também ver, é como eles encontram o caminho, se desenvolvem no contexto de cumprir a grade curricular da instituição, e quase todos eles, têm o potencial não só de ser músico, como também de ser outras profissões em relação a essa contribuição que a música faz”, detalha Arley.
“É um ensino que tem que ter uma dedicação mais imersiva, nós devemos ser mais persistentes nos conteúdos para que seja desenvolvido esse hiperfoco dentro do contexto musical. Aí depois que a gente consegue estabelecer esse hiperfoco, a gente começa realmente a desenvolver a questão técnica do instrumento em relação ao repertório e ao passar do tempo, eles entendem que eles precisam cumprir essa grade curricular para que possam sair daqui músicos versáteis que possam tocar desde a música erudita até o carimbó”, acrescenta.
Música como hobby
O aluno João Pêra, de 19 anos, contou sua trajetória até se tornar saxofonista. Ele disse que a música é um hobby e um estilo de vida. “Eu me senti muito inspirado porque eu via filmes da Disney, aqueles de desenho animado onde o pessoal toca numa banda, e tem principalmente, o saxofone alto. E eu me via assim, rapaz, eu quero tocar esse instrumento. Meus pais me viam quando eu era pequeno, eu cantava, pegava uns pratos e montava como se fosse uma bateria. Eles sabiam que eu já tinha um dom desde criança, aí lá na minha igreja tem um professor de música e eles me colocaram para estudar. Eu aprendi flauta doce e aí eles me mandaram para estudar no Carlos Gomes para ter um certificado”, relata.
De acordo com o professor, o apoio das famílias é fundamental para o crescimento dos alunos nos estudos. “A música tem esse poder de integrar, de sensibilizar, então, graças a Deus, na minha turma os pais têm sido sensíveis à questão da contribuição em relação às atividades musicais, não só da sala de aula, como nas apresentações. A ideia é que, por exemplo, eu tenho alunos que estão iniciando e daqui a um tempo vão estar na Banda Sinfônica. O pai e a mãe, quem não vai querer ver o filho tocando na Banda Sinfônica do Carlos Gomes e um dia se apresentando no Teatro da Paz?”, comenta.
Além disso, Arley Bichara ressaltou que não existe idade para a música e que dá aulas para um médico já aposentado. “ O que pode se dizer em questão da idade é porque alguns instrumentos, a grade curricular é enorme e o mercado de trabalho, para você entrar, ele é muito curto. É um espaço, tipo jogador de futebol, mais ou menos assim, com uma comparação. Mas para você viver da música, não tem tempo, por exemplo, eu, em uma das aulas particulares que estava dando, era para um médico aposentado como professor de medicina da UEPA. Um senhor de mais de 70 anos resolveu ter um saxofone, porque ele, um dia, quando era garoto, queria ter saxofone, queria ser músico, mas não pôde porque o pai dele o obrigou a fazer medicina. Três meses depois de muita dedicação comigo, ele começou a tocar saxofone. Então, é uma prova de que não tem idade. A música gera essa motivação”, frisa.
A melhora da comunicação acontece por meio do estudo disciplinado da música, conforme detalhou o estudante João Pêra. “Eu toco na minha igreja e também gosto de outras músicas, tipo música de jogos, música antiga, tema da Pantera Negra e eu escuto música agressiva, é funk, é PHONK, que é música de Drift, tipo o Velocífero. Eu escuto várias vezes e consigo entrar num interfoco tão grande que passo horas e horas estudando. A música já me deu um acesso à comunicação mais avançada com outros colegas que eu tenho na igreja. Eles também tocam, então eu consigo acompanhar o ritmo deles, falando sobre música, perguntando e aprendendo coisas”, afirma.
Música com leveza
Para Luciana Joquebellis, aluna do Instituto Carlos Gomes, a música representa leveza. “Ela representa leveza, foco e disciplina. Muitas vezes o meu dia é muito corrido, aí eu fico bastante estressada e quando eu começo a escutar música, já me traz uma leveza, uma paz. Tanto que às vezes eu até me perco no mundo, o saxofone me ajuda muito. Às vezes eu tô com uma respiração muito ofegante e eu nem percebo, mas quando começo a tocar saxofone, todo o sentimento vai indo. Meio que a gente faz uma meditação, porque é toda uma preparação para tocar”, destacou.
Além disso, ela esclareceu como utiliza a música para se acalmar. “Às vezes o processo tá muito dificultoso, mas quando tu pega as músicas que tu gosta, tu vê que não é tão difícil. Também serve como uma inspiração, hoje pode estar ruim, mas amanhã vai estar melhor”, disse.
"Eu era muito fechada ainda, porém, a música traz um certo repertório, até porque a gente tá estudando aqui e quando a gente encontra pessoas que tocam ou gostam de música, a gente conversa sobre isso mais abertamente. Eu queria aprender mais o piano e antes eu queria uma profissão na música, mas não vejo mais assim. Eu faço como hobby porque a música me traz muita disciplina, até porque, se tu quer ser um bom músico, tu tem que tocar mais ou menos todos os dias”, complementou Luciana, de 19 anos.
O que é TDAH
O TDAH é uma condição neurobiológica do desenvolvimento que afeta áreas do cérebro relacionadas à atenção, ao controle dos impulsos e à autorregulação emocional. Pessoas com TDAH costumam apresentar sintomas como desatenção frequente, hiperatividade motora e impulsividade, que podem impactar significativamente a vida escolar, profissional e social se não forem bem manejados, conforme explica a psiquiatra, Daniele Boulhosa, de Belém.
Ao todo, cerca de 5% da população mundial têm TDAH, sendo que em crianças, a porcentagem varia entre 5% e 7%, com um diagnóstico maior em meninos. Em adultos, o TDAH atinge de 2,5% a 4,4% da população, conforme informações da Organização Mundial da Saúde (OMS).
A psiquiatra detalhou como a música pode ter impacto profundo no cérebro de pessoas com TDAH. “Ela atua diretamente nas redes neurais envolvidas na atenção, motivação e regulação emocional. Estudos de neuroimagem mostram que a música ativa o sistema dopaminérgico, o mesmo que costuma funcionar de forma mais dispersa no cérebro de quem tem TDAH. Em outras palavras, a música pode ajudar a organizar a atividade cerebral e trazer foco, sobretudo quando bem escolhida e utilizada de maneira estratégica", exemplifica.
A música clássica, como exemplo de ritmo regular, tende a interferir na atenção, de acordo com a psiquiatra, Daniele Boulhosa. “Músicas com batidas repetitivas, ritmos regulares e poucos elementos melódicos, como música clássica, lo-fi, eletrônica suave ou trilhas instrumentais, tendem a ser mais eficazes para melhorar o foco. Sons com letra, especialmente em idiomas conhecidos, podem ser mais distrativos. No entanto, a resposta é individual. O estilo que funciona melhor pode variar conforme a sensibilidade auditiva e o nível de ativação mental necessário para cada tarefa”, explicou.
Acerca de benefícios emocionais em pessoas com TDAH, Daniele chamou atenção para a capacidade de concluir tarefas. “A música pode beneficiar principalmente a atenção sustentada e a capacidade de iniciar e concluir tarefas, dois grandes desafios para quem tem TDAH. Além disso, há um ganho importante na regulação emocional. As músicas com ritmos regulares ou melodias suaves podem acalmar estados de agitação interna, enquanto músicas mais animadas podem ajudar a sair de estados de apatia ou desmotivação”, pontuou.
Apesar do impacto favorável, algumas músicas com mudanças bruscas de ritmo podem sobrecarregar o cérebro. “A música pode atrapalhar quando contém muitos elementos que competem com a atenção, como letras complexas, mudanças bruscas de ritmo ou volume muito alto. Também pode ser contraproducente se for usada como fuga emocional para evitar tarefas difíceis. O excesso de estímulos pode sobrecarregar o cérebro de quem tem TDAH, especialmente durante atividades que exigem linguagem, leitura ou escrita.”, especificou a psiquiatra.
“Aprender a tocar um instrumento é uma excelente estratégia terapêutica. Estimula a memória, a coordenação motora, a disciplina e o senso de recompensa, áreas muito importantes para pessoas com TDAH. Além disso, tocar música em grupo favorece habilidades sociais e fortalece a autoestima. Muitas pessoas com TDAH convivem com ansiedade e autocrítica elevada devido às dificuldades cotidianas. A música pode funcionar como um espaço de acolhimento e expressão emocional, ajudando a diminuir a tensão interna, aumentar o senso de competência e favorecer momentos de prazer ”, informou.
Tratamento não deve ser substituído
Embora o estudo da música seja vantajoso para o bem-estar das pessoas com TDAH, Boulhosa alertou que a alternativa não substitui o tratamento médico. "A música não substitui os tratamentos tradicionais, como medicação ou psicoterapia, mas pode ser uma aliada poderosa. Ela pode ser incorporada em rotinas terapêuticas de forma individualizada, ampliando os efeitos positivos do tratamento e melhorando a adesão do paciente. O ideal é que esse uso seja orientado por profissionais que conheçam o perfil da pessoa e possam indicar formas adequadas de uso”, aconselhou.
"O mais importante é respeitar o gosto musical da pessoa e observar como ela reage a diferentes tipos de som. É necessário evitar impor estilos ou criar expectativas rígidas, pois o que ajuda uma pessoa pode não funcionar para outra. Também é fundamental equilibrar o uso da música com outras estratégias de organização, descanso e rotina. Quando bem aplicada, a música pode ser uma ferramenta de conexão afetiva entre pais, filhos e cuidadores e isso por si só já é terapêutico”, recomendou a especialista.
Palavras-chave