Documentos apontam que mãe de jovem com autismo autorizou extração de dentes no CIIR
Em vídeo publicado nas redes sociais, o advogado da família da paciente afirmou que a mãe da jovem “talvez não tenha lido linha por linha”
Documentos obtidos pela reportagem do Grupo Liberal indicam que a mãe de uma jovem de 19 anos, diagnosticada com autismo severo, autorizou a extração de 13 dentes realizada na última segunda-feira (16), no Centro Integrado de Inclusão e Reabilitação (CIIR), em Belém. A documentação inclui termos assinados pela responsável legal da paciente, com descrições detalhadas sobre os riscos do procedimento, o uso de anestesia e a quantidade de dentes a serem extraídos. Apesar disso, em entrevista concedida ao Grupo Liberal na terça-feira (17), a mãe da jovem negou ter consentido a extração. A negativa foi reforçada em vídeo publicado nas redes sociais nesta quarta-feira (18) pelo advogado da família, Harrison Sarraff.
A reportagem teve ainda acesso a um relatório elaborado pelo CIIR e encaminhado à Coordenação Estadual de Saúde Bucal da Secretaria de Estado de Saúde do Pará (Sespa). No documento, a instituição detalha o histórico e o contexto clínico da paciente. O caso está sendo investigado nas esferas administrativa e policial.
A equipe do Grupo Liberal tentou contato com a família da jovem novamente nesta quarta, mas não obteve retorno. Harrison Sarraff comentou sobre a documentação. “Talvez a mãe [da jovem] tenha assinado esse termo, como milhões de brasileiros fazem diariamente, confiando na equipe médica que acompanha sua filha há anos. Talvez ela não tenha lido linha por linha, isso é possível”, afirmou.
Relatório
De acordo com o relatório, a jovem vinha sendo acompanhada no CIIR desde 2020, com orientação contínua sobre cuidados de higiene bucal. “A paciente estava sendo atendida desde 2020 no CIIR por profissionais odontólogos variados ao longo destes anos e consta na evolução dos prontuários, a orientação recorrente de melhora na higiene bucal da criança, o que não vinha acontecendo. Motivo este que estava levando a cáries generalizadas, problemas periodontais, problemas endodônticos, inclusive com perdas anteriores de dentes”, aponta o documento.
“A paciente ficou dois anos sem comparecer na instituição, o que agravou consideravelmente sua condição bucal; a mesma já apresentava um quadro de muita dor, foi solicitado uma radiografia panorâmica, mas a família não chegou a realizar e pelo estado de dor da criança foi optado por realizar o procedimento de extração em série, sem a radiografia, já que o quadro clínico indicava a intervenção, pois, a criança, além da dor, corria risco de agravos à saúde por conta de quadro infeccioso”, diz o relatório.
O documento também afirma que houve esclarecimento prévio à responsável sobre o procedimento da última segunda-feira (16). “A responsável pela criança foi esclarecida dos procedimentos e concordou que fosse efetuado, assinado os Termos de Consentimentos que são da rotina hospitalar”, consta no relatório.
Ainda segundo o CIIR, outros procedimentos também foram realizados. “Vale ressaltar que a menina só fazia procedimentos odontológicos sob anestesia geral, inclusive, no dia do fato, foram realizados, além das extrações, mais 11 restaurações para aproveitar o tempo da anestesia”, afirma a instituição.
Termos de consentimentos
Os documentos assinados pela mãe da jovem também apresentam detalhamento sobre os riscos clínicos do procedimento. “Declaro que fui informado(a) pelo(a) cirurgião(ã)-dentista que o tratamento proposto está sujeito a riscos e intercorrências, tais como: lesões nos dentes vizinhos; lesões de tecidos moles adjacentes; hipersensibilidade dentária; fratura dentária; fraturas de restaurações; comprometimento pulpar ao remover cáries extensas, podendo ser indicado a realização do tratamento endodôntico”, diz trecho de um dos documentos.
Outro trecho esclarece sobre a possibilidade de desfechos diferentes do esperado. “Além dos fatores acima, fui esclarecido(a) que, como todos os procedimentos de saúde, o resultado esperado também poderá não se concretizar devido a fatores individuais, como a resposta biológica, limitações da ciência, além de outras variações de ordem local ou sistêmica”, consta na documentação assinada pela mãe da jovem.
O documento ainda destaca que a responsável discutiu previamente a proposta com o profissional. “Informo que discuti com o cirurgião(ã)-dentista minha história de saúde geral, inclusive as doenças conhecidas por mim. Quanto às alternativas de tratamento, fui esclarecido(a) sobre as vantagens e desvantagens de outras técnicas e optei pela proposta”, diz o documento.
Anestesia
Outro termo assinado pela mãe é o de consentimento para anestesia ou sedação. “A proposta desse procedimento anestésico e/ou sedação possui benefícios, riscos, complicações potenciais e alternativas que me foram explicadas claramente. Tive a oportunidade de fazer perguntas que me foram respondidas satisfatoriamente. Entendo que não existem garantias absolutas sobre os resultados a serem obtidos, mas que serão realizados com todos os recursos, medicamentos e equipamentos disponíveis no Centro Integrado de Inclusão e Reabilitação em busca do melhor resultado”, afirma o documento.
Esse mesmo termo também autoriza outras intervenções médicas, se necessárias. “Autorizo qualquer outro procedimento, exame, tratamento ou cirurgia incluindo transfusão de sangue (hemocomponentes e/ou hemoderivados), em situações imprevistas que possam ocorrer e necessitem de cuidados diferentes daqueles inicialmente propostos. Confirmo que informei, com fidedignidade, ao médico, sobre todas as doenças que possuo e medicações que faço uso”, diz a documentação analisada pela reportagem.
No Termo de Consentimento para Cirurgia Oral, a mãe também declara estar ciente de riscos específicos. “Declaro estar ciente da impossibilidade de realizar tratamento reabilitador (prótese) e que o método proposto está sujeito a riscos e intercorrências, tais como: edema; hematoma; fratura dentária; comunicação buco-sinusal; lesões nos dentes vizinhos; penetração de dentes nas vias respiratórias e digestivas; lesões de tecidos moles adjacentes; lesões em vasos e nervos”, afirma o termo. O texto também apresenta as possíveis complicações no pós-operatório, para os quais a mãe da jovem informou que estava ciente.
Mãe nega que tenha autorizado o procedimento
Em todos os termos, a responsável afirma ter compreendido os riscos e autorizado o tratamento. Apesar disso, em entrevista à reportagem na última terça-feira (17), a mãe da jovem, Izabel Machado, negou ter autorizado a extração de dentes. “Ela deu entrada às 9h e só saiu do consultório às 13h. Eu já estava muito assustada com tanta demora. Em nenhum momento pediram autorização para arrancar qualquer dente da minha filha. O objetivo era fazer uma limpeza e, caso fosse necessário, uma restauração ou outro procedimento, eles fariam. Mas a extração exige autorização da família, e isso não aconteceu”, afirmou.
Defesa
Por meio de um vídeo publicado nas redes sociais, o advogado criminalista Harrison Sarraff, que representa a família da paciente, contestou a versão de que a mãe da jovem teria autorizado a extração dos dentes. Sarraff afirmou que o termo de consentimento apresentado como prova de autorização “não menciona, em momento algum, a possibilidade de extração de múltiplos dentes” e trata apenas de “procedimentos periodontais, como limpeza gengival, raspagem e gengivoplastia”. “A assinatura da mãe, por si só, não sana a omissão de informação objetiva, tampouco valida um procedimento radical não pactuado”, disse. Segundo ele, “não houve reviravolta no caso”, mas sim “uma tentativa clara de construir uma justificativa após o fato consumado”. Sarraff defendeu que o procedimento foi feito “sem laudo técnico prévio, sem exame clínico documentado e sem consentimento informado e consciente”.
Ministério Público
O caso gerou repercussão e foi levado, na terça-feira (17), ao Ministério Público do Estado do Pará (MPPA) pela deputada estadual Lívia Duarte (PSOL), que pediu investigação rigorosa. A parlamentar também cobrou esclarecimentos da Secretaria de Estado de Saúde (Sespa).
Na Câmara Municipal de Belém, a vereadora Nay Barbalho declarou apoio à família e criticou o ocorrido. “Desde o primeiro momento, estive ao lado da família, oferecendo suporte jurídico, psicológico e acionando todos os órgãos responsáveis. Vamos continuar acompanhando esse caso até que haja justiça. É por essas e tantas outras histórias que precisamos seguir firmes na luta por políticas públicas efetivas e pela garantia dos direitos das pessoas com deficiência”, disse a vereadora nesta quarta-feira (18), na tribuna.
OAB acompanha o caso
A Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Pará também acompanha o caso. A instituição afirma que, desde a segunda-feira (16), vem prestando apoio jurídico à família por meio de diversas comissões temáticas. Entre as medidas já adotadas estão a orientação para registro de boletim de ocorrência, solicitação de exame médico pericial e envio de ofícios ao CIIR, Sespa, Defensoria Pública e MPPA.
A entidade também expressou solidariedade. “A OAB Pará reitera sua solidariedade à jovem Juliane e sua família, e reforça seu compromisso permanente com a defesa dos direitos das pessoas com deficiência, da dignidade humana e da justiça. Hoje, 18 de junho, Dia do Orgulho Autista, reafirmamos que a luta por respeito, acolhimento e políticas públicas efetivas é urgente e coletiva”, diz trecho da nota publicada nas redes sociais.
Conselho Regional de Odontologia
Já o Conselho Regional de Odontologia do Pará (CRO-PA) informou que vai apurar o caso conforme os trâmites previstos. Em publicação nas redes sociais nesta quarta-feira (18), o presidente da entidade, Marcelo Folha, explicou que o papel do conselho é “apurar e deliberar sobre a ocorrência de infração ao Código de Ética Odontológica, uma vez recebida a denúncia, acompanhada de documentos comprobatórios, será dado o andamento conforme os trâmites do Código de Processo Ético Odontológico. Caso haja condenação, ao final, as sanções são variadas, podendo ocorrer a cassação do registro profissional”, disse o presidente.
A reportagem do Grupo Liberal acionou a Sespa e o CIIR em busca de um posicionamento sobre o caso e aguarda retorno.
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