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Assédio moral contra pessoas negras carrega também o racismo

É difícil dissociar as duas coisas quando o ataque é contra uma pessoa preta, mas há diferenças e um peso maior quando a agressão psicológica é também racista

Victor Furtado

Por conceito, assédio moral é uma forma de violência psicológica. É caracterizado por práticas prolongadas de pressão, humilhação, ameaça, exclusão, isolamento, chantagem, confusão, desrespeito, entre outras coisas. Tudo para a pessoa se sentir mal e acuada. O termo é mais comum no ambiente de trabalho, é crime, mas pode se manifestar de outras formas em ambientes coletivos, como universidade, academia, grupos de amigos ou o Big Brother Brasil (BBB). O ator Lucas Koka Penteado sofreu com isso até desistir do jogo. Mas há casos em que o assédio moral vem carregado com racismo. E aí fica difícil dissociar.

Flávia Ribeiro, jornalista e consultora de Equidade de Raça e Gênero, analisa que todas as formas de violência afetam muito mais a população negra. Contudo, aponta a necessidade de analisar cada caso de assédio por raça, classe e gênero porque as desigualdades nesses âmbitos são históricas e colocam, principalmente, as mulheres negras em situação de vulnerabilidade. "Agora, na pandemia, por exemplo, uma pesquisa mostra que mulheres negras profissionais de saúde formam o grupo que mais sofreu assédio moral. Cerca de 30% já passavam por isso antes mesmo da pandemia", observa.

Na maioria das vezes, diz Flávia, o assédio moral se dá em relações hierarquizadas. Na mesma direção, o racismo, que é estrutural e estruturante na nossa sociedade, também hierarquiza grupos, colocando alguns como ‘naturalmente’ superiores e outros como ‘naturalmente’ inferiores. Por serem ‘naturais’, essas posições são aceitas e não são questionadas, argumenta a jornalista.

"Muitas vezes, essas duas formas de opressão — racismo e assédio moral — se entrecruzam no corpo de pessoas negras e em diversas situações. A diferença é que o racismo fica como um pano de fundo nessas relações. Ele se reformula, se reinventa e pode agir até mesmo quando é negado. Uma pessoa negra pode ascender socialmente e não sofrer assédio moral no trabalho ou em outras situações, mas ela não vai deixar de ser negra. Ela estará suscetível ao racismo por toda a sua vida", comenta Flávia.

 

"Sociedade é pautada para dizer o que é o normal", diz vice-presidente do CRP

O psicólogo Antonino Alves, primeiro vice-presidente negro do Conselho Regional de Psicologia (CRP) e membro do Movimento Afrodescendente do Pará (Mocambo), diz que é difícil dissociar o racismo do assédio moral, ainda que possam sim ocorrer em situações separadas, quando essas violências são dirigidas a uma pessoa negra. As denúncias contra isso começaram a se tornar mais evidenciadas, ainda que sempre sejam rebatidas com o argumento "isso é mimimi e vitimismo". O racismo à brasileira, destaca, nega que o Brasil seja racista.

Em uma análise sobre o racismo e o assédio moral, o psicólogo aponta que a população negra convive e sobrevive resistindo à carga negativa de uma história de sofrimento, exclusão e desumanização que foi gerada pelo sistema escravocrata. Uma carga emocional que é aplicada desde o ensino infantil, já reduzindo a autoestima do negro desde pequeno. O racismo é estrutural e estruturante na cultura brasileira e na sociedade.

"Por isso precisamos descolonizar nosso pensamento. Precisamos desconstruir essa história e não afinar com ela. A cultura negra não pode ser sempre vista de carona quando se fala do sistema escravocrata. E é pra isso que temos a lei 10.639/2003, que determina o ensino da cultura afro e as colaborações para a cultura brasileira na escola, para que o negro se veja positivado em sua história desde pequeno e no ambiente escolar. Uma lei que segue sendo não cumprida", comenta Antonino.

Com isso, o psicólogo mostra o quanto o racismo e o assédio moral acabam andando juntos. O ser humano é um ser social e sociável, que quer se misturar e fazer parte de grupos. Mas quando há hierarquias nessas relações, que um é melhor que o outro, que o padrão de beleza europeu é melhor que o africano, o negro se vê diminuído, deslegitimado. É o que leva aos olhares maldosos, assustados e preconceituosos. "Eu, com 60 anos, psicólogo, conhecido na periferia do Marco, onde moro, quando saio às ruas, ainda vejo alguém me olhar com aquele olhar que machuca", pondera.

"E assim vai buscar medidas como o Michael Jackson, de embranquecimento. O negro era visto, no sistema escravocrata, como feito para trabalho braçal. Eu, agora, ser o primeiro vice-presidente negro do CRP, pode ser um reflexo desse racismo estrutural? Pode ser. É doloroso, cruel ao nosso processo de buscar a própria identidade. Seja por raça, classe, gênero ou identidade sexual, sempre há um preconceito porque nossa sociedade é pautada em dizer o que é normal, bom e bonito. A ideia do racismo e do assédio moral é a violência que exclui, diminui, segrega, machuca, mata e que é difícil de fazer alguém ser responsabilizado por isso", conclui Antonino.