Saúde mental: novo alerta no Arquipélago do Marajó
Pandemia fragiliza moradores e quem atua na saúde. Ansiedade é um dos sinais. Breves viu alta de 50% nos suicídios em 2021: média de um por mês
No primeiro ano da pandemia de covid-19, em 2020, enquanto o labirinto da alta taxa de mortalidade do novo coronavírus se apresentava à comunidade científica e às autoridades em saúde de todo o mundo, a cidade de Breves, no Arquipélago do Marajó, listava novos números de um outro drama paralelo para a atenção em saúde pública na região: foram oito os registros de mortes por suicídio oficializados até o fim daquele ano no município. O maior número de casos ocorreu na faixa etária de 40 aos 49 anos - com 90% das ocorrências envolvendo pessoas do sexo masculino. E no ano seguinte, em 2021, houve um aumento de 50% nos casos: foram as 12 mortes por suicídio registradas em Breves naquele ano. Dessa vez, o maior índice de ocorrências envolveu pessoas na faixa etária de 20 a 29 anos - e com maior incidência, mais uma vez, entre moradores do sexo masculino. As causas da morte são por enforcamento, estrangulamento e sufocamento, atestam os dados da secretaria municipal de saúde.
Ainda que não se tenha dados mais robustos voltados à observação da relação desse problema com os anos de tensões e restrições impostas pelos cuidados com o coronavírus, é patente que a pandemia deixou profissionais de saúde e moradores do Arquipélago do Marajó afetados. Os problemas relacionados aos cuidados com a saúde mental cresceram e demandam cada vez mais atenção a casos como os de ansiedade e depressão. E o mais grave: há muitos jovens nessa situação, e não apenas na maior cidade da região, como já confirma a gestão pública de saúde Breves, o mais populoso entre os 16 municípios marajoaras.
“Breves sempre teve um histórico de casos e altas em suicídios. Só que esse problema, que estava estabilizado, agora retornou com o período pós-pandemia. No CAPS [Centro de Atenção Psicossocial], a gente está em um movimento constante. Tem tentativa de suicídio todo mês. Já teve mês de ter 20 tentativas de suicídio. E a equipe conseguir chegar a tempo”, ressalta Jucineide Barbosa, a secretária municipal de Saúde de Breves.
Em 2021, o município de Breves foi obrigado a realizar uma ampla campanha de combate ao suicídio. Além disso, também foram ampliadas parcerias de atendimento e se modificou o fluxo de atendimento em psicologia na saúde pública. O objetivo foi conscientizar mais pessoas sobre o problema e aumentar o fluxo de assistência em saúde mental para a população, afirma a secretária. “E hoje há a ansiedade pós-pandemia. As pessoas ficaram muito nervosas, perderam muita gente próxima”, pondera Jucineide.
Mas os profissionais de saúde também sofreram. Foram muito exigidos nos momentos mais críticos da pandemia. Na linha de frente, muitos trabalharam doentes, quando não havia onde colocar mais pacientes e faltavam cilindros de oxigênio. “Aquele boom que deu entre final de abril para maio foi o pior momento que tivemos, em 2020. Profissionais de saúde morreram. Outros estão com depressão”, diz a secretária de saúde.
O médico Diego José de Oliveira continua trabalhando na UPA de Breves, onde estava no auge da pandemia. “Um simples vírus pode acabar com tudo. Pode vir e te deletar todo”, diz ele, resumindo a angústia daqueles piores dias de trabalho diário na linha de frente. “Era difícil. Era difícil pela estrutura que nós tínhamos. Algo totalmente desconhecido, algo que não sabíamos como tratar, algo de que tínhamos medo, até mesmo como profissional da saúde. Algo muito novo. Aquilo pegou muita gente de surpresa, levando à lotação máxima [da UPA]. Eram jovens e idosos morrendo. A gente tinha que assinar óbito dentro de táxi, na porta do hospital, por não ter leito. Foi algo terrível para todos nós”, recorda Oliveira.
“No começo, como pai de família, isolei meus filhos, minha esposa, pensando que nunca mais iria vê-los. Fechei a casa. Contratei empresa de desinfecção. Tudo o que eu podia fazer para evitar o contato ao vírus. Montei uma zona vermelha, onde todos que chegavam eram obrigados a fazer limpeza, trocar de roupa, passar álcool. Era uma forma de blindá-los. Como ser humano, é algo bem devastador”, pondera o médico.
Portel: três mortes por dia em hospital em obras
No auge da pandemia, o hospital de Portel, outro município na ilha do Marajó, chegou a ter três mortes por dia relacionadas à covid-19, num período extremamente sensível para a infraestrutura da saúde local. Entre março e abril de 2020, o grande boom dos casos de covid em Portel coincidiu com a reforma do prédio, lembra a assistente social Ana Cleia, que trabalha no hospital municipal há dez anos.
“Tivemos muitas dificuldades. Não tínhamos espaço adequado. O hospital estava praticamente reduzido em 50% da sua totalidade de leitos por causa da reforma. E foi bastante difícil para toda a equipe, por conta do grande índice de mortes”, afirmou ela, que na época respondia pela direção.
“Eram três mortes por dia. Eu já estava há quase 10 anos no hospital e, até então, eu nunca tinha vivenciado isso. Ter que lidar com a parte emocional, a busca de leitos, internação... e apenas um médico clínico geral atendendo o hospital. A questão era manter essa assistência. Procurar alocar esses pacientes da forma mais adequada possível dentro do isolamento. Imagina: um hospital pequeno ter que conseguir isolamento para ontem”, contou.
“Era tudo muito rápido. Uma luta para salvarmos essas pessoas que davam entrada aqui. Não tínhamos leitos e nem para onde encaminhar esses pacientes. E tínhamos que recebê-los, dar assistência”, diz Ana Cleia.
Melgaço: alerta para ansiedade entre jovens
“Mudou tudo, na verdade. Na vida dos profissionais e da população. O quadro de ansiedade é muito grande. Conversa com dez pessoas, sete, oito relatam que ficaram com esse problema de saúde”, ressalta, por sua vez, o enfermeiro Jaymison Barbosa de Freitas. Hoje respondendo pela coordenação de vigilância em saúde da vizinha localidade de Melgaço, Jaymison foi um dos enfermeiros que atuaram diretamente no enfrentamento à covid no primeiro ano da pandemia no município.
Jaymison Barbosa de Freitas (Tarso Sarraf / O Liberal)
Ele se inclui no rol dos que precisam de suporte. “Eu sou um entre essas pessoas. Fiquei ansioso. Não consigo dormir direito, não tenho aquele sono leve. Me espanto com qualquer barulho. Na época da covid a gente não descansava praticamente. A média de sono eram duas horas. Trabalhava praticamente 20 horas todo dia”, conta Jaymison. “Melgaço é muito grande. Ficávamos até 12 horas fora da cidade para atender 10 casas. Comunidades distantes, para as quais, só de viagem, se gastava cinco horas”.
Para a médica Handressa Maira Rodrigues Ribas, que também atua em Melgaço, preocupa o aumento de demanda de cuidados com pacientes mais jovens também no município, para além de Breves. “E está ficando bem difícil da gente começar a tratar e controlar também. Temos um pouco de dificuldade com a área médica de psiquiatria no nosso município. Mas, em contrapartida, temos psicólogas que vêm fazendo um trabalho muito bom”, avalia.
“Nos pacientes jovens, é a questão psicológica o problema maior e mais difícil de acompanhamento que estamos tendo. São muitos os pacientes com sequelas psicológicas: síndrome do pânico, ansiedade, alguns desenvolveram quadro de depressão”, pondera a médica.
“Isso é sequela da covid-19. A maioria deles já vêm com esses sintomas: uma dor, um aperto no peito que não cessa. A gente começou a tratar pensando que fosse só psicológico mesmo, só o quadro de ansiedade. Mas, nos últimos tempos, a gente vem percebendo que não é só isso. Tem que investigar o físico para ver se não está tendo alteração”, alerta Handressa Maira. “E essas alterações estão vindo. Faz muito tempo que a gente não tem um eletro dentro da normalidade. A maioria dos eletros estão vindo com alterações – ou seja, arritmias cardíacas, uma sequela direta da covid. E o quadro de ansiedade aumenta esses sintomas”.
Para a coordenadora do CAPS 1 de Melgaço, Socorro Pantoja, em 2020 foi muito pior. “A procura aumentou. E as sequelas da covid-19 começaram mesmo no segundo ano da pandemia. Pessoas com depressão e ansiedade, principalmente entre jovens de 14 a até 30 anos, lista Socorro.
“Pela ausência do psiquiatra por um ano, as coisas pioraram. Mas esse ano ele retornou. É o segundo mês em que ele está voltando, e hoje temos uma equipe multiprofissional, com assistente social, enfermeiro, psicólogo, o que ajuda a tirar quem precisa dessa situação. É o que podemos oferecer no momento”.
A série
Marajó: desafios e superação na Amazônia após auge da pandemia
Dois anos depois de relatar, nos municípios de Breves, Melgaço e Portel, o cotidiano e desafios no auge da pandemia da covid-19, em maio de 2020, O Liberal volta ao Arquipélago do Marajó e publica série especial, em sete partes, mostrando como a população enfrentou a pandemia e detalhando a rotina de superação e enfrentamento de velhos desafios - numa região ainda marcada com os piores índices socioeconômicos do Brasil. Personagens e suas histórias expõem contrastes do antes e depois no cenário imposto pelo coronavírus à saúde, economia e educação.