MENU

BUSCA

Marajó: voluntariado leva música e espiritualidade para reconstrução de pessoas após auge da covid

Em Melgaço e Breves, ações mobilizam jovens e adultos dispersos na pandemia. Com casos de covid-19 estabilizados, eles voltam às ruas

Dilson Pimentel e Tarso Sarraf

A pandemia afetou a saúde mental dos moradores do Arquipélago do Marajó, e em especial entre os mais jovens. Muitos ficaram com sintomas de ansiedade. E, por causa das restrições impostas pela pandemia, sobretudo na fase mais crítica de contágio, eles se afastaram das atividades cotidianas. E isso impactou muito a rotina dos adolescentes. Foi levando em consideração essa realidade que surgiu o projeto “Esforça-te: um dia inteirinho de bençãos”, realizado pela Assembleia de Deus de Melgaço. O projeto tem cunho religioso, espiritual e, também, social. O município de 28 mil habitantes, localizado a 13 horas de barco de Belém (250 quilômetros), ainda enfrenta graves problemas sociais - apesar de avanços pontuais do poder público em algumas frentes e do recente cenário de estabilização da pandemia.


Segundo balanço da Secretaria de Estado da Saúde Pública do Pará (Sespa) do último dia 6 de junho, Melgaço já somava 595 casos confirmados de covid-19 desde o início da pandemia. A doença já vitimou 17 pessoas no município, apontam os registros oficiais. A taxa de letalidade associada ao novo coronavírus na localidade é de 2,86% - muito menor que a dos piores meses da emergência em saúde no Marajó, há dois anos, quando alguns municípios do arquipélago chegaram a registrar índices de letalidade superiores a 11%.

“Os jovens estavam dispersos”, justifica o diácono Rildon Tavares, que coordena o Departamento de Adolescentes da Assembleia de Deus. O projeto começou em abril deste ano. Em suas edições, há evangelização, estudo da Bíblia e ações sociais. Cortes de cabelo e atendimentos em saúde, como aferição de pressão arterial e testes rápidos de glicemia e de hepatite, também vêm sendo levados a várias comunidades, numa parceria fechada com a Secretaria de Saúde da Prefeitura de Melgaço. E os voluntários, jovens que fazem parte da banda de música da igreja, voltaram a fazer algo que ficou prejudicado durante o auge da pandemia: tocar seus instrumentos musicais pelas ruas da cidade.

Jovens se integraram à ação da Assembleia de Deus em Melgaço (Tarso Sarraf / O Liberal)

De porta em porta em comunidades carentes

Mobilizando hoje 100 adolescentes entre 12 e 17 anos, entre famílias que fazem parte de congregações – há dez na cidade e dez na zona rural de Melgaço - as ações do projeto “Esforça-te” hoje se concentram na área urbana do município. Mas a ideia é expandir o projeto para as comunidades do interior.

A reportagem de O Liberal acompanhou a ação realizada no último dia 14 de maio, um sábado. Era a segunda vez que a mobilização era levada à área conhecida como “Vala”, uma região carente de Melgaço.

"Era difícil. A gente estava acostumado a tocar, mas não podia. Quando tocava, tinha que ter o distanciamento" - Laerte Azafe, estudante de 15 anos.

Primeiro, os jovens se reuniram na congregação Ebenézer, na rua Wilson Monteiro. Lá, os trabalhos foram abertos por um momento de evangelização, seguido por um reforçado café da manhã. Só depois disso os participantes passaram a sair. Batendo de porta em porta, também pregam a palavra de Deus. O percurso é animado. As caminhadas acontecem enquanto músicos participantes soam seus clarinetes, anunciando as visitas.

As atividades são complementadas também por palestras. Um dos temas tratados é o risco de exposição na internet. E há outros na manga: uma das palestras aborda justamente o desafio da saúde mental na pandemia. Outra ação do projeto foi levada, já no início de junho, à rua 31 de Março, próximo à congregação Gerezim, da Assembleia de Deus de Melgaço.

Veja o mapa da cidade


Antes de cada ação, durante todo o mês, os jovens participantes também arrecadam alimentos. A meta é montar o maior número possível de cestas básicas – chamadas de ‘cestas famílias’ - e entregar às pessoas de residências que não têm recursos.

O professor Rildon Tavares chama a atenção para um fato importante: a maioria dos jovens que participam das ações também é de baixa renda. As ações da igreja são uma estratégia para chamar a atenção dos adolescentes dessas vizinhanças mais vulneráveis de Melgaço. A área onde ocorreu a ação acompanhada por O Liberal é emblemática, justamente porque há “bocas de fumo” (pontos de vendas de drogas) em pleno funcionamento nas redondezas.

Em movimento, mais uma vez

Tocando clarinete pelas ruas, Elder Iarley e Laerte Azafe dos Santos Batista, ambos com 15 anos, distribuem sorrisos enquanto percorrem as ruas da comunidade da Vala. Há dois anos, no auge da pandemia, o repórter fotográfico Tarso Sarraf os fotografou na orla de Melgaço. Naquela ocasião, eles lamentavam o fato de estarem impedidos de tocar na ruas, o que gostam muito de fazer.

Alunos de música mostram a arte após o auge da pandemia. (Tarso Sarraf / O Liberal)

“Ficamos parados. De vez em quando marcava os ensaios. Com uma distância assim [gesticula o garoto, referindo-se ao distanciamento social], seguindo o regulamento. Agora tudo mudou. Estamos ensaiando normalmente. Fico mais feliz”, conta Elder.

O adolescente diz que não adoeceu de covid-19. Mas a mãe e o padrasto, sim. “Em minha mãe foi grave. Ela ficou 15 dias internada no hospital de Melgaço. Hoje em dia ela está bem”.

Com o colega de clarinete foi diferente. Laerte Azafe pegou covid-19 duas vezes. Adoeceu logo no primeiro ano da pandemia. Fez o tratamento em casa. “Mas precisei ficar longe da minha família, em casa mesmo. Ficaram na casa da minha avó. Fiquei um mês e meio isolado”, recorda. “Era difícil. A gente estava acostumado a tocar, mas não podia. Quando tocava, tinha que ter o distanciamento. Atrapalhava um pouco. Graças a Deus, a gente está tocando agora”.

Laerte Azafe é integrante da ação da igreja em Melgaço (Tarso Sarraf / O Liberal)

As notas de clarinete que soam nas ruas de Melgaço resumem um cenário de relativo alívio nas comunidades carentes do município. A vida ainda é dura nas comunidades mais pobres, é claro, mas nunca a sobrevivência esteve tão colocada à prova como naqueles meses de 2020. E o recuo dos casos mais graves de covid-19, justamente por causa do esforço massivo de vacinação, abriu a porta para a vinda de novos dias. Um momento para se voltar, na medida do possível, ao que restou à normalidade. “Agora é ótimo. Ter essa honra de poder tocar de novo e não poder mais usar a máscara sempre, é bom. Está tudo melhor, graças a Deus. Está parando e eu creio que vai acabar tudo isso”, anima-se Laerte, de clarinete à mão, ao lado do parceiro Elder.

Pedágios solidários

Distante uma hora de lancha de Melgaço, o vizinho município Breves, situado a 222 quilômetros da capital paraense, Belém (12 horas de barco), abriga um outro projeto social que ganhou força com o recuo da pandemia. É uma manhã de sol forte na avenida Rio Branco, em frente ao Hospital Regional de Breves, quando a reportagem encontra um grupo realizando um ‘pedágio solidário’.

 

Em parceria com a Secretaria Municipal de Saúde de Breves, profissionais aplicavam a vacina contra a covid-19 e a gripe (influenza) para crianças, adultos e idosos. De quebra, também era possível cortar cabelo com a ajuda de voluntários. “A gente faz esse trabalho social. Atende pessoas doentes”, conta o coordenador do grupo, Dorival Oliveira.

É o grupo “Amor ao próximo”, que funciona há 15 anos em Breves, formado por pessoas da sociedade civil. “O pedágio não tem data, a gente vai conforme as solicitações dessas pessoas. A ação já é o extremo, quando a pessoa quase não tem recurso para fazer tratamento. Tem que ter laudo médico”, pondera Dorival.

Novos dias para lutar pela vida

Enquanto a ação se desenrola, a cidade segue um ritmo frenético – o recuperou, semana a semana, no último ano, com o avanço da imunização contra a covid-19. Os moradores usam muitas motocicletas em seus deslocamentos. O comércio, com sua algazarra de portas de comércio ruidosas, funciona normalmente.

A intervenção não menos animada do grupo de voluntários contrasta com o que as equipe de O Liberal registrou na mesma avenida Rio Branco em maio de 2020. Há dois anos, naquele mesmo local, em frente ao Hospital Regional do Marajó, a Polícia Militar fazia fiscalização para cumprir o decreto de lockdown em Breves.

"Há dois anos, tudo ficou parado, suspenso, teve lockdown, uma série de situações (...) Daqui a pouco sai a vacina da dengue, que não tem hoje. E, aí, todo mundo vai querer a vacina da dengue" - Dorival Oliveira, morador criticando o relaxamento das pessoas em relação à covid.

Maior cidade marajoara, com 103 mil habitantes, o município registrava, naquele momento de 2020, uma grave taxa de contato com o coronavírus, que já havia infectado 25% da população – era a mais alta taxa do País, segundo aferiu um estudo nacional da Universidade Federal de Pelotas, feito com 133 cidades brasileiras. O índice de letalidade ligado à covid-19 na cidade chegava a 11,55%.   

Com 5.146 casos confirmados de covid-19 até o último dia 6 de junho, e um total de 127 mortes atribuídas a complicações causadas pelo coronavírus nos registros oficiais, Breves viu essa mesma taxa de letalidade recuar a 2,47% em 2022, segundo aponta o balanço do final de maio. É um momento onde a força da vida novamente se impõe.

“Há dois anos, tudo ficou parado, suspenso, teve lockdown, uma série de situações”, lembra Dorival, criticando o fato de, no Brasil todo, as pessoas terem infelizmente relaxado de vez em relação aos cuidados com a covid-19. “Daqui a pouco sai a vacina da dengue, que não tem hoje. E, aí, todo mundo vai querer a vacina da dengue”, brinca o voluntário, criticando a procura baixa pela imunização contra o coronavírus.

O sorriso dos voluntários que se movem entre carros na principal via de Breves - a mais uma vez movimentada avenida Rio Branco, que leva à orla da cidade -, resume o espírito dos marajoaras que superaram, ao seu modo, os graves momentos do pior desafio já imposto à saúde pública neste século. Por isso mesmo, nada mais faz tanto sentido como ir às ruas, com entusiasmo, para arrecadar recursos para atender três pacientes com câncer que precisam fazer tratamento em Belém. A luta pela vida segue, e nutre grandes esperanças no futuro.

A série

Marajó: desafios e superação na Amazônia após auge da pandemia

Dois anos depois de relatar, nos municípios de Breves, Melgaço e Portel, o cotidiano e desafios no auge da pandemia da covid-19, em maio de 2020, O Liberal volta ao Arquipélago do Marajó e publica série especial, em sete partes, mostrando como a população enfrentou a pandemia e detalhando a rotina de superação e enfrentamento de velhos desafios - numa região ainda marcada com os piores índices socioeconômicos do Brasil. Personagens e suas histórias expõem contrastes do antes e depois no cenário imposto pelo coronavírus à saúde, economia e educação.

Outros episódios:

Marajó: a volta da 'normalidade' com velhos desafios da região após o pico da pandemia da covid-19
Dois anos após o auge dos impactos da covid-19, moradores do arquipélago lutam para voltar à normalidade – de dificuldades e desafios - nos municípios de Breves, Melgaço e Portel

Marajó: os novos desafios da covid à saúde de Breves; cidade chegou a ter 25% da população infectada
No auge da pandemia, ainda sem vacinas, município registrou o pior índice de infectados entre cidades do País. Após terceira onda, novo normal exige atenção

Vacinação de porta em porta e combate às fake news são lições do Marajó no combate à covid-19
O Arquipélago marajoara abriga uma das populações mais vulneráveis do País diante de uma pandemia. Em maio de 2020, Breves chegou a ter 11,55% de taxa de letalidade da covid-19, que foi maior que a taxa registrada em Belém (11,29%)

Saúde mental: novo alerta no Arquipélago do Marajó
Pandemia fragiliza moradores e quem atua na saúde. Ansiedade é um dos sinais. Breves viu alta de 50% nos suicídios em 2021: média de um por mês

Saúde materno-infantil no Marajó atinge média de um parto ao dia após o pico da pandemia da covid-19
Dois anos após pior momento da covid-19, hospital de Melgaço tem média de um parto ao dia. Pandemia agravou os riscos às vidas de mães e bebês

Série do Marajó