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Ubiratan Cazetta: 'Temos dificuldade em identificar situações de corrupção'

Em entrevista exclusiva, procurador da República opina sobre decisões do Supremo e o papel do Ministério Público

Rita Soares
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A Lava, Jato, o impacto da polarização política do País sobre a atuação do Ministério Público e a onipresente pauta do combate à corrupção foram os temas desta entrevista exclusiva, concedida na última sexta-feira, pelo procurador da República Ubiratan Cazetta, ao Grupo Liberal.

Cazetta atou por mais de 20 anos no Pará, encabeçando investigações de casos que envolviam corrupção, lavagem de dinheiro e crimes contra o meio ambiente. Ele acaba de ser eleito presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), entidade que reúne 1,2 mil membros do Ministério Público Federal. Assumirá o cargo em um dos momentos mais delicados da história do órgão, criado pela Constituição de 1988 para proteger os interesses da sociedade e fiscalizar o cumprimento das leis no Brasil.

Na conversa com a jornalista Rita Soares, Cazetta falou dos fatos recentes envolvendo a Lava Jato, comentou a decisão do Supremo Tribunal Federal que declarou a suspeição do ex-juiz Sérgio Mouro e das prioridades do MPF em meio à pandemia.           

O que o senhor considera como pautas prioritárias do Ministério Público Federal no Brasil atual?

Nesse momento, em específico, não há dúvidas de que as questões envolvendo a pandemia são prioridade. E, quando eu falo em questões envolvendo a pandemia, obviamente tem a questão específica do combate à pandemia em si, tais como políticas públicas, a aplicação dessas políticas públicas, que, certamente, acabam sendo possibilidade de desvios. E os desvios acontecem nas mais diversas ordens, desde as contratações emergenciais, até situações como, por exemplo, os fura-filas (da vacina). Esse momento acaba sendo prioritário para todos nós por envolver questões criminais e cíveis. Também nesse momento, olhando especialmente no viés do Ministério Público Federal na Amazônia, a questão ambiental continua a ser um grande problema. Se nós pensarmos, por exemplo, na questão da mineração ilegal, especialmente na área indígena, ela continua ocorrendo, a despeito da pandemia, e a despeito dos riscos que isso provoca. O desmatamento continua sendo uma realidade mesmo diante da pandemia.

No caso da corrupção, o senhor considera que ela ainda é um grande problema no Brasil hoje? Alguns indicadores mostram que o Brasil piorou nesse setor, o senhor concorda com isso?

Esse índice de corrupção é sempre um problema, porque se utiliza, em certa medida, como melhor ou pior aquilo que vem à tona. Quando se começa a investigar e se demonstra a existência de determinados esquemas de corrupção, isso acaba impactando. A corrupção é um fato, não me parece possível dizer que ela aumentou ou diminuiu. O que eu posso dizer é que ainda temos muita dificuldade na identificação de situações de corrupção, na investigação e na punição. Isso certamente acaba se transformando em um dos elementos que incentivam indiretamente a corrupção

Esse ainda é um problema dramático no Brasil?

Sim, ele distorce a realidade. E, no Brasil, ao contrário dos Estados Unidos, nem falamos em um algo que também existe, que é a corrupção privada, que é aquela que se dá dentro de empresas, sem envolver dinheiro público. E ela ocorre. Se você pensar em quantas empresas têm problemas nos seus setores de contas, por exemplo, e que acabam direcionando contas para lá e para cá. Meu primeiro caso de corrupção foi quando eu ainda era advogado de uma instituição privada, trabalhava em uma empresa que adquiriu outra, e o setor de contas era todo fraudado. Só que, no Brasil, não chamamos isso de corrupção. Mas é um problema que precisa ser objeto não só de repressão, de controle, mas também de uma atuação maior em relação aos nossos controles éticos.

Que avaliação o senhor faz do atual momento da Lava Jato?

Olha, eu não costumo gostar de vilões, nem de heróis, porque acho que uma categoria ou outra simplifica demais um debate. Acho que a Lava Jato cumpriu vários bons atos. Não podemos negar, por exemplo, a descoberta de um sistema de corrupção, como aquele que foi descrito; a recuperação de R$ 5 bilhões de recursos do exterior, e vários outros exemplos que são significativos de uma boa atuação. Agora, não podemos negar que toda essa polarização, todo esse contexto que envolveu a Lava Jato, em vários momentos, flertou com a queda da sociedade. O que eu quero dizer com isso? Você não pode transformar nem o Ministério Público em herói nem o Ministério Público como vilão; não se pode transformar um juiz em herói ou vilão. As pessoas têm que ser observadas pelo resultado de seus atos. Quando simplificamos uma realidade política como a brasileira, e pensamos que um processo é capaz de mudar uma estrutura ancestral de dificuldades políticas, dificuldades nas relações pessoais, isso envolve um certo “quê” de sonho inacessível. Não se muda um sistema, seja ele judiciário, político, ou qualquer que seja, a partir de apenas um caso. Esse caso precisa ser analisado com maturidade. Todas as vezes em que temos a criação de heróis ou de bandidos, estamos perdendo a chance de olhar com maturidade.  Quando escolhemos um candidato como sendo vestal da corrupção ou a vestal dos bons atos, de novo se está simplificando relações, e ao simplificar relações, uma sociedade não amadurece.

O que o senhor, como cidadão e membro do Ministério Público, sentiu quando o Supremo julgou a suspeição do ex-juiz Sérgio Moro?

Como cidadão, certamente, é frustrante ver cinco anos de discussões sobre determinado processo retornarem praticamente ao zero. Então, qualquer pessoa, com formação jurídica ou não, vai pensar: “Poxa, espera aí. Faz cinco anos que essa história está se desenrolando e vai recomeçar agora do zero?” É frustrante!  Agora, como membro do Ministério Público, tenho que fazer o olhar técnico. E a decisão é absurda? Não. O que me parece ruim em toda essa decisão é que uma parte dela, e aí assim é muito preocupante, se baseia em mensagens que foram obtidas de formas ilícitas. E aí é um dado que precisa ter muito cuidado, porque não é negada a existência ou o que possa ter revelado aquelas mensagens, o que é dito é o seguinte: se Estado brasileiro começa a dizer que vai usar como provas obtidas a partir de atos ilícitos, então eu vou começar a aceitar, daqui a pouco a tortura, vou começar a aceitar uma série de coisas que quebram a segurança do cidadão. Do ponto de vista técnico é aceitável, eu posso discordar do entendimento dos ministros, mas há uma justificativa.

A Lava Jato também utilizou expedientes pouco ortodoxos ...

Toda vez que saímos do padrão, Rita, e aí não há padrão do bem nem padrão do mal, nos arriscamos no retorno disso. Então, para mim, a grande dificuldade que vejo é na atuação do Estado. Eu vou usar uma expressão, e não me preocupa a questão religiosa dessa minha inspiração, é só para esclarecer: “quando eu olho um pecador, eu não cobro dele santidade, mas quando eu olho um padre, um pastor, eu cobro dele santidade. Por quê? Porque ele traz essa visão”. Trazendo essa analogia para nós, quando eu olho o Estado brasileiro reprimindo crime, eu pressuponho que o Estado brasileiro não pode cometer crimes para reprimir crimes. Então, é um pouco essa questão, eu tenho, sim, obrigação, como agente do Estado, de estar ao máximo atento a cumprir todas as regras legais. Se eu aceito flexibilizar, estou correndo o risco de ter elas flexibilizadas contra mim também. É um jogo em que todos perdem.

Para o senhor a decisão do Supremo foi justa?

Olha, eu diria que tecnicamente ela é sustentável. Para ser justo, eu teria que ter analisado o processo e ter realmente visto se o juiz foi ou não foi suspeito nesse sentido, se direcionou ou não o processo para determinado resultado. Não é ficar em cima do muro, é ficar preso à minha função: a decisão é tecnicamente sustentável.

A presença dos membros do Ministério Público na esfera pública, se manifestando sobre temas diversos, nas redes sociais, por exemplo, revelou que, assim como a sociedade de um modo geral, o Ministério Público também está polarizado. Como a instituição está lidando com as diferenças internas?

Na mesma linha que lhe disse sobre as simplificações não serem bons instrumentos de amadurecimento, também isso ocorre no Ministério Público. Se você reunir três pessoas, as chances de você ter três opiniões diferentes sobre o mesmo fato é quase certa. Então, temos que reconhecer que há um princípio, que da unidade do Ministério Público, da indivisibilidade do Ministério Público, que funciona no campo do direito. Agora, são 1,2 mil associados, são quase 1,1 mil na atividade e, certamente, são pessoas que são influenciadas pelo clima externo, são pessoas que têm opiniões e que divergem. O que precisamos é entender que o Ministério Público também é diverso, que também haverá situações em que posições serão contrapostas. Já tivemos isso no passado. Tivemos, por exemplo, no mesmo período, uma ação do Ministério Público pedindo para que os avisos do Ministério da Saúde nos cigarros fossem mais fortes ainda, enquanto outro membro do Ministério Público queria que fossem retirados. A diversidade existe, o dado novo e preocupante é que essa polarização, que está em toda a sociedade, também acabe afetando os membros do Ministério Público. E aí são necessários instrumentos internos de coordenação. É necessário que em algum momento a instituição diga: “não, o entendimento da instituição sobre este tema é esse”. Por quê? Porque eu preciso de segurança jurídica. Eu não posso estar em uma roleta em que “deu sorte de fica com um promotor que é mais punitivista” ou “deu sorte de ficar com o promotor mais garantista”, ou de um procurador, enfim. Então, essa realidade da diversidade de pensamentos do Ministério Público não é ruim em si mesma. A sociedade se constrói pelo diverso. O que é ruim é quando essas opiniões divergentes tendem a fazer um discurso de eliminação do diferente.

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