Pará tem 707 eleitores registrados com nome social

Processo é difícil e conta com muitas exigências, mas é fundamental para garantir dignidade para membros da comunidade transexual

Eduardo Laviano
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Quando Arthur Monteiro levou o filho George, de 22 anos, para se vacinar contra a covid-19, sentiu-se voltando para o passado. Ele notou o constrangimento que o filho passou ao ser chamado por um nome feminino com o qual não se identificava e precisou intervir, para a situação não se agravar no posto de imunização. "Por isso que tudo que é lugar que meu filho vai, eu vou junto. Ás vezes nem deixo ele falar, falo na frente. Já passei por isso e por todos os outros tipos de violência. Ele me agradeceu muito pois ele travou na hora, ficou com vergonha, constrangido", conta Arthur, que, assim como o filho, também é um homem trans. De acordo com o Tribunal Regional Eleitoral do Pará, George é um dos 707 paraenses que possuem um título de eleitor com o "nome social", termo usado para se referir aos verdadeiros nomes de pessoas transexuais uma vez que elas entendem em qual identidade de gênero se encaixam. "Falando assim parece que o nosso nome é um nome artístico", argumenta Arthur, que diferentemente do filho tem o nome retificado em todos os documentos, inclusive no título de eleitor.

A jornada não foi fácil. Arthur sempre quis votar e não pensou duas vezes em tirar o título quando completou 16 anos. Ao 44, ele atualmente trabalha como motoboy e afirma que apesar das dificuldades e conflitos, a adolescência repleta de descobertas foi a melhor fase da vida dele. "Com 16 anos eu tinha uma aparência bastante feminina, mas dentro de mim eu não era aquilo. Eu buscava o meio termo, com uma aparência feminina mais masculinizada. Pensa que eu era filho de militar em uma família evangélica e conservadora. Eu roubava camisa e boné do meu pai e do meu irmão, saía de casa com eles escondidos e mais lá frente vestia. Foi uma fase muito boa", recorda.

Tudo mudou quando, durante um ciclo de palestras em Belém, Arthur conheceu o ativista paraense Raicarlos Durans, homem trans célebre do movimento LGBTQIA+ no estado. Ao ver Arthur, ainda antes da transição, Durans perguntou se ele era um homem trans. Primeiro ele disse que não e que nem mesmo sabia o que a nomenclatura significava. Depois, em uma conversa olho no olho, o pai de George caiu no choro. "Foi como encontrar Deus. Uma emoção que lembro até hoje. Desde aí ele começou a me dar informações. Foi quando comecei a ir em seminários, conhecer outras pessoas iguais a mim. Eu brinco que eu era uma cerveja sem rótulo", diz. 

O tempo passou e o processo de aceitação interna precisava se converter em respeito externo. Foi quando Arthur começou a lutar pela mudança do nome em todos os documentos. Há dois anos, ele anda aliviado na rua sabendo que tem no bolso os os documentos básicos que garantem a cidadania dele - com o nome correto em todos. "Quando comecei, os cartórios estavam recusando. Não aceitavam mudar o nome se não tivesse papel assinado por juiz ou alguém da Defensoria. Quando entrei em contato com o cartório onde fui registrado em Curralinho, a mulher disse que nem sabia o que era trans", lembra. Quando finalmente conseguiu contornar a situação e enviar todos os documentos, Arthur se deparou com um tabelião bastante rígido que exigiu analisá-lo pessoalmente. Quando o fez, não teve dúvidas: Arthur era um homem e merecia uma certidão de nascimento que o reconhecesse como tal.

O processo também foi difícil para tirar o título de eleitor. Em uma ação do TRE-PA na Estação das Docas, o funcionário do órgão acabou negando a retificação do nome no documento. "Ele não quis me atender mesmo eu explicando que era trans. Fui na Defensoria e preparam o documento. Fui buscar atendimento do Tribunal em Icoaraci e na minha vez me chamaram pelo nome da falecida. Eu de barba e tudo. Senti uma vergonha tão grande que não consegui nem levantar. Foi uma coisa bem chata, mas sempre passei por isso. Ficaram no maior burburinho. Eu saí tão agoniado e quando entrei no site do TRE vi que o nome da falecida ainda estava lá. Voltei  e exigi que fosse trocado no site também. E eu disse que não iria votar porque se não iria aparecer meu nome antigo. Toda vez que eu ia votar com aparência masculina era muito problema. Já me acusaram de não ser eu. Um transtorno", lamenta.

Passadas as dificuldades, a vida guardou uma surpresa para Arthur: o filho dele, George, odiava todas as roupas cor-de-rosa e bonecas que ganhava de presente do pai. Também detestava sapato alto e vestido. Ele admite que no início não conseguiu lidar bem com a questão e acabava brigando com o filho. Aos 13 anos de idade, George criou coragem e, do jeito dele, explicou para o pai que só gostava de usar calças. "Mas nunca passou pela minha cabeça que meu filho seria um homem trans. Achei que era só uma lésbica masculina, como eu fui. Com 16 anos eu comecei a apertar ele para ele dizer, mas ele pediu paciência e que na hora certa iria falar. Agradeci a Deus pela honestidade dele e comecei a me preparar para dizer as coisas certas. Aos 17 anos ele chegou comigo e falou. Por motivos familiares ele ainda não pode trocar o nome definitivamente, mas no futuro, se Deus quiser, vou embarcar com ele nessa luta", afirma. 

Em nota, o TRE-PA afirma que tem empreendido diversos esforços para conscientizar as eleitoras e os eleitores pertencentes à comunidade LGBTQIa+ sobre o direito assegurado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), por meio da campanha "Respeite meu nome", que ocorreu em Belém e em Salinópolis, assim como a palestra virtual ‘TRANSformando a Democracia: meu nome, minhas lutas e conquistas’, ambas realizadas em 2021. "Outro esforço implementado pelo Tribunal foi a disponibilização dos serviços da Justiça Eleitoral nos atendimentos itinerantes realizados em 93 municípios do estado, com a possibilidade de tirar dúvidas sobre esse tema", afirma.

image Bruna não conseguiu retificar título de eleitora para 2022, mas está quase lá (Cristino Martins/O Liberal)

Já com quase todos os documentos retificados, a advogada Bruna Lorrane considera o nome social um "paliativo", mas muito importante para garantir dignidade para a comunidade transexual. Com tantos contratempos e revezes na busca pela retificação dos documentos, que ela classifica como uma odisseia, ela acabou não conseguindo atualizar os dados dentro do prazo ara ir às urnas com o nome verdadeiro dela nas eleições de outubro de 2022. "O bom é que nunca mudei de zona e seção, então já tenho certa amizade com os mesários. Eles não fazem nada para me constranger. Mas é irônico e lamentável porque o direito ao voto é fundamental e marcante para a democracia. E para eu exercer este direito tão valioso para a nossa cidadania, é frustrante que eu não possa exercê-lo da maneira correta", conta.

Bruna se tornou uma ativista e comunicadora símbolo do movimento em Belém, mas precisou superar uma infância difícil para chegar até aqui. De família católica, aos oito anos deidade ela se ajoelhava ao pé da cama e rezava para que Deus não deixasse ela se tornar um menino gay. "Me ensinaram que aquilo não era correto, não agradava a Deus e não iria gerar minha salvação. Eu tinha essa ideia de que seria uma vida vergonhosa, afastada de Deus. Pensamentos infantis misturados com dogmas religiosos. Aquilo me assustava", destaca.

A questão dos nomes nos documentos sempre perseguiu Bruna. Na faculdade de direito, ela acabou reprovando em uma matéria. O motivo: o professor negava-se a chamá-la pelo nome verdadeiro dela. Ela, então, decidiu resistir e se recusar a responder que estava presente. "E há quem só espere essa atitude de pessoas com menor grau de instrução. Todos os professores me respeitavam, menos ele. A partir das reportagens na época, iniciei nos movimentos sociais. É quando começa meu processo na mudança de nome, que durou cinco anos", aponta.

Até hoje Bruna acumula situações constrangedoras. Recentemente um advogado perguntou para ela qual seria o nome de batismo dela. "Respondi: você sabe se eu fui batizada? Fingi que não estava entendendo, mas é claro que estava. Quis forçar ele a compreender que aquele ato era heteronormativo, machista, sem contar o fundamentalismo religioso. No Big Brother Brasil vimos uma participante [a cantora e atriz Linn da Quebrada] que tatuou a palavra 'Ela' na testa. Isso pode ser visto como um ato de rebeldia mas também de desespero. Porque para um heterossexual um pronome não tem tanta relevância assim, e isso é chancelado pelas autoridades", lamenta ela, ao reiterar que isso contribui para a evasão escolar de pessoas transexuais, bem como a falta de acesso aos serviços públicos, e que, até hoje, muitos cartórios se negam a realizar o processo de mudança de nome.

Ela relata que precisou matar um leão por dia para mudar o nome no Cadastro de Pessoa Física e também na Carteira Nacional de Habilitação (CNH). Para ela, o pior constrangimento era nos aeroportos. "Tive que refazer todos os exames da CNH sendo tratada pelo nome antigo. Quando recebi a carteira, veio com o nome antigo. Doeu na alma. Tive que fazer tudo de novo. Mas apesar das dificuldades, o mais emblemático foi quando minha mãe foi perguntada no cartório desde quando eu era mulher. E ela disse que eu sou mulher desde sempre".

Lana Larrá vota desde 2012 e afirma que teve uma experiência positiva com o Tribunal Regional Eleitoral do Pará (TRE-PA), pois participou do projeto Respeite meu nome com outras pessoas da comunidade. "Depois que a galera viu o projeto do Tribunal, as pessoas começaram a se interessar e procurar mais. Os profissionais de lá receberam formações para nos atender e hoje as pessoas se sentem um pouco melhor atendidas por funcionários, porque não era assim. Mas o conhecimento abre horizontes, é a porta de entrada para tudo nessa vida", conta. 

Para a turismóloga Mellannie Marques, o processo de retificação dos documentos é caro, mas vale a pena. "Diferente da certidão que você precisa pagar R$536, o título pode ser tirado pela internet, com o nome social. Ela se diz muito feliz de poder ir às urnas em outubro já com os documentos corrigidos. "Nem todas as pessoas trans tem condições. Por conta da minha correria eu acabo que não tenho tempo de tirar tudo só de uma vez, até porque sou de Mosqueiro e algumas coisas faço por Belém. Mas com o título correto tudo já melhora. É o primeiro de muitos passos que vamos dar". 

 

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