Médica vetada no governo defende ciência e critica tratamento precoce
Infectologista Luana Araújo presta depoimento aos senadores da CPI
Em depoimento de cerca de sete horas à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid ontem, a médica infectologista e epidemiologista Luana Araújo chamou de "delirante, esdrúxula, anacrônica e contraproducente" a discussão sobre o uso de cloroquina e hidroxicloroquina como tratamento precoce contra a covid-19, defendido pelo presidente Jair Bolsonaro e por ministros do governo.
Luana chegou a ser anunciada em 12 de maio pelo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, para assumir o cargo da recém-criada Secretaria Extraordinária de Enfrentamento à Covid-19 do Ministério da Saúde. Dez dias depois, ela foi informada pelo próprio Queiroga, de que não seria nomeada. Segundo ele, faltou "validação política" para a nomeação. Após deixar a secretaria, ela disse ter sofrido ameaças.
Graduada na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e epidemiologista mestra em saúde pública pela Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos, a consultora em saúde pública para organizações internacionais garantiu que não lhe foi explicado o motivo da não aprovação de seu nome para a pasta. A médica explicou que essa secretaria faz parte de uma estrutura e foi criada para coordenar os esforços do governo federal relativos à pandemia, auxiliar na interlocução com estados e municípios, além de concatenar as sociedades científicas nacionais e internacionais no suporte aos esforços brasileiros no combate à covid-19.
"A secretaria tem por objetivo maior dar agilidade e precisão às informações sobre a pandemia para que os gestores tenham condição de lidar melhor com o que está acontecendo. Então, a minha função e o meu desejo naquela secretaria era que ela funcionasse como um antecipador de problemas", explicou.
Ao destacar em sua apresentação que de "ontem para hoje" 12 grandes aviões lotados caíram no país, em referência às mortes pela covid-19, Luana enfatizou que saúde pública é muito mais que médicos e hospitais, e que a discussão sobre o que chamou de “pseudo tratamento precoce” é “esdrúxula”. Ela afirmou ainda que não se pode imputar sofrimento e morte a uma população para se alcançar a imunidade de rebanho.
Luana negou ter conversado com Queiroga ou qualquer outra pessoa no ministério sobre cloroquina e outros medicamentos. "Quando eu disse que um ano atrás nós estávamos na vanguarda da estupidez mundial, eu infelizmente ainda mantenho isso em vários aspectos, porque nós ainda estamos aqui discutindo uma coisa que não tem cabimento. É como se a gente estivesse escolhendo de que borda da Terra plana a gente vai pular, não tem lógica", declarou.
Questionada pelo relator da CPI, senador Renan Calheiros (MDB-AL), se haveria relação entre a sua não nomeação no ministério e o seu posicionamento contrário ao uso desses medicamentos, Luana disse que, "se isso aconteceu, é extremamente lamentável, trágico" e que há no país uma "politização criminosa". "Eu abri mão de muitas coisas pela chance de ajudar o meu País. Não precisava ter feito isso. Os senhores acham que as pessoas, de fato, que têm interesse em ajudar o país e têm competência para fazer isso, neste momento, se sentem muito compelidas a aceitar esse desafio? Não se sentem. Então, infelizmente, a gente está perdendo", disse.
A médica afirmou haver estudos randomizados e controlados que mostram aumento de mortalidade com o uso de cloroquina e hidroxicloroquina no tratamento da covid-19, e que é preciso haver responsabilização por quem o propaga. "Quando a gente transforma isso em uma decisão pessoal é uma coisa, quando você transforma isso numa política pública é outra. A autonomia médica faz parte da nossa prática, mas não é licença para experimentação", destacou
Infectologista ataca a desinformação
Após exibição de vídeos com declarações e atos do presidente Jair Bolsonaro, a infectologista foi questionada pelos senadores sobre o incentivo ao uso da cloroquina, o não uso da máscara, as aglomerações e as desconfianças quanto às vacinas. Luana Araújo afirmou que, "a partir do momento em que se vulnerabiliza a população com informações incorretas, não se pode esperar resultado positivo". "Eu entendo que existam consequências de determinadas políticas públicas. Não é possível ouvir uma declaração, de quem quer que seja, sem sofrer um impacto quase que emocional, além do racional. Como médica e infectologista, isso me suscita a ideia de que preciso trabalhar mais", afirmou.
O senador Tasso Jereissati (PSDB-CE) disse que a Presidência da República é a liderança máxima e referência para aquilo que deve ser guiado pela ciência. "Se há o contraditório entre a ciência e o Presidente da República, que, publicamente e ostensivamente, faz essa contradição com a ciência, nós estamos diante de uma encruzilhada, porque não dão certo as duas coisas", disse.
O senador Eduardo Girão (Podemos-CE) declarou que não há comprovação a favor ou contra o uso de cloroquina ou hidroxicloroquina, apresentando estudos que contrariam a afirmação de maior número de mortes pelo uso desses medicamentos. Ele disse estar muito claro que a ciência está dividida e questionou sobre a restrição na atuação dos médicos na prescrição.
Cloroquina provoca divergências na CPI
O presidente da CPI, Omar Aziz (PSD-AM) definiu que a não nomeação de Luana foi uma questão política, por ela não compactuar com o uso da cloroquina no tratamento da covid-19. "É inacreditável que alguém formada por uma das melhores universidades do mundo seja vetada. O ministro Queiroga disse aqui para nós que teria autonomia para nomear quem ele quisesse. Já está provado que não é verdade; ele mentiu aqui para a gente", avaliou.
Já o senador da base do governo Marcos Rogério (DEM-RO) questionou a "histeria no âmbito do Parlamento" sobre nomeações. "É inquestionável a qualificação técnica da doutora Luana. Apesar da estranheza, todos sabem que em nenhum poder Executivo existem nomeações automáticas. Nos municípios elas são feitas pelos prefeitos e nos estados e no governo federal pela Casa Civil. Não é razoável querer criminalizar isso. Há uma liberdade plena para nomear", alegou.
Divergências sobre o uso da cloroquina em pacientes com covid-19, amplamente defendido pelo presidente Jair Bolsonaro, também pesaram na decisão de saída do Ministério da Saúde dos ex-titulares da pasta Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich, conforme depoimentos que eles prestaram à CPI nos dias 4 e 5 de maio, respectivamente. Teich explicou que a cloroquina é uma droga com efeitos colaterais de risco, sem dados concretos sobre seus reais benefícios no tratamento da covid-19, e que havia ainda preocupação com o uso indiscriminado e indevido por parte da população.
Em depoimento à CPI no dia 6 de maio, Marcelo Queiroga, que foi reconvocado pela CPI da Pandemia e deve ser ouvido na próxima terça-feira (8), não respondeu se concorda ou não com o uso de cloroquina como "tratamento precoce” contra a covid-19, mas reconheceu que o uso indiscriminado do medicamento pode causar arritmia cardíaca.
A utilização de cloroquina como tratamento inicial foi amplamente defendida na terça-feira (1º) na CPI pela oncologista e imunologista Nise Hitomi Yamaguchi. Para ela, o tratamento "rápido e prematuro" dos pacientes pode impedir que a doença evolua e não compete com as vacinas. Durante o depoimento, o senador Humberto Costa (PT-PE) lembrou que, de março de 2020 a março de 2021, foram vendidos 52 milhões de comprimidos de quatro medicamentos integrantes do chamado kit anticovid, sendo 32 milhões de comprimidos de hidroxicloroquina. Diante desses números, segundo ele, seria esperado que houvesse menos mortes no Brasil, que tem 2,7% da população mundial e 13% dos óbitos, caso o medicamento fosse efetivo.
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