Há 40 anos, o Movimento pela Libertação dos Presos do Araguaia mobilizou o Pará

Entidades religiosas e grupos pela democracia fizeram movimento contra a prisão de dois padres estrangeiros e 13 de posseiros

Abílio Dantas / O Liberal
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O comércio de velas para orações e rituais viveu um momento atípico nos dias 21 e 22 de junho de 1982, em Belém e na região do município de São Geraldo do Araguaia, no sudeste paraense, com o esgotamento do produto nas lojas. A alta procura se deveu ao grande apoio da população das cidades ao Movimento pela Libertação dos Presos do Araguaia (MLPA), iniciado em 1981, que completa 40 anos neste ano. As prisões de padres franceses e agricultores paraenses pela Ditadura Militar, ocorridas em 31 de agosto de 1981, motivou a mobilização de diversas entidades e movimentos sociais, que durou até a libertação dos presos, em 17 de dezembro de 1983.

Nos dias 21 e 22 de junho de 1982, quando ocorreu o julgamento e condenação das 15 pessoas, a coordenação do MLPA orientou a quem não poderia acompanhar o momento que acendesse uma vela e colocasse no parapeito das janelas como manifestação de solidariedade.

Foram presos os padres Aristides Camio e François Gouriou, e os agricultores João Matias da Costa, Antônio Resplande, Raimundo Resplande Coelho, Raimundo Resplande da Silva, Simplício Vieira, Venâncio Pereira da Anunciação, Raimundo Pereira da Anunciação, Arnaldo Lopes Queiros, José Ribamar, José Parreira de Araújo, Leônidas Alves Furtado, Milton de Souza Almeida e José de Araújo e Silva.

Maior da Amazônia

O historiador Marcos Alexandre Araújo Ribeiro, professor da Universidade Estadual do Pará (Uepa) e doutorando em História Social pela Universidade Federal do Pará (UFPA), que desenvolve a primeira tese sobre o tema, afirma que o MLPA foi o maior movimento social da Amazônia na segunda metade do século XX. “De um lado, você tem a ditadura militar brasileira, com todas as suas estratégias que passam por arbitrariedades, tortura, ilegalidades, e, junto, você tem a sociedade civil conservadora, como latifundiários, parte de famílias tradicionais da região do Araguaia que percebiam na ação da Teologia da Libertação (corrente teológica cristã nascida na América Latina, depois do Concílio Vaticano II e da Conferência de Medellín, que parte da premissa de que o Evangelho exige a opção preferencial pelos pobres) no campo um risco a seus ganhos e propriedades”, diz o pesquisador.

Do lado oposto ao do governo federal e de seus apoiadores, segundo o historiador, ocorre a articulação de grupos cristãos, com destaque inicial para a Igreja Católica, mas também com a participação de outras igrejas cristãs, como a Luterana, e também de ativistas adeptos de outras fés, como de religiões de matriz africana. “E temos também a participação de ateus, que entendiam que o MLPA não se tratava apenas da libertação de dois padres e 13 lavradores, mas representava a libertação de uma grita da sociedade brasileira e, principalmente, da Amazônia, tão violentada pela políticas que só ampliaram o abismo socioeconômico e humano entre os grupos que coexistiam em litígio na região Araguaia paraense e na Amazônia como um todo. Foi criada uma rede de solidariedade que ultrapassa Belém e o sul e sudeste do Pará, porque a prisão ocorrida no município de São Geraldo do Araguaia causou uma grande comoção. Pude ver em minhas pesquisas, tanto no Pará quanto no Rio de Janeiro e em Minas Gerais, cartas e ajudas financeiras de paróquias de todo o país e de outros países da América Latina, e de todo o mundo, para o movimento”, explica Marcos Alexandre.

Cobertura de O Liberal

Para o historiador, a cobertura do jornal O Liberal foi importante para informar à sociedade o que ocorria em relação ao caso. “Sem dúvida, o trabalho da imprensa cumpriu um papel histórico. Não apenas de O Liberal, mas também do jornal A Província do Pará, foram fundamentais para que as pessoas pudessem entender o que estava ocorrendo. Foram muitas as matérias, não apenas em jornais locais, mas também nacionais e de outros países”, diz o pesquisador.

Os padres e os agricultores, atuantes no município de São Geraldo do Araguaia e em outras áreas das regiões sul e sudeste do Pará, foram acusados pelo Tribunal da Justiça Militar de cometerem os crimes de desordem pública, invasão de propriedade privada (especificamente das fazendas de José de Almeida, da cidade de Governador Valadares; de Evandro Azevedo, do estado do Espírito Santo; e de Juraci Teixeira, que era então deputado estadual) e pelo assassinato de Luís Antônio dos Santos Trindade, funcionário de uma das fazendas de Juraci Teixeira. Sob as acusações, os religiosos e os trabalhadores foram enquadrados na Lei de Segurança Nacional (LSN). Após as prisões, vigílias e reuniões diárias foram iniciadas como forma de resistência e reivindicação pela liberdade dos acusados.

Juventude

O ex-vereador de Belém e professor de história Caíto Aragão, que participou do MLPA quando tinha 23 anos de idade, conta que era membro da Pastoral da Juventude da Igreja de São Sebastião, no bairro da Sacramenta, em Belém, quando entrou para a organização. “A Igreja abria os espaços, porque era uma das poucas instituições que não estavam totalmente proibidas, com a qual podíamos contar. Temos que lembrar que nesse momento sindicalistas eram perseguidos, por exemplo.

Desde as prisões, durante todas as noites fazíamos as vigílias. Iniciavam sempre com um discurso, uma palavra, de um padre ou outra pessoa da Igreja, com cânticos ou palavras de reflexão sobre o que estava acontecendo. Em seguida, fazíamos as reuniões, em que cada um dos movimentos que participavam, como centros comunitários, movimento negro, coletivos de toda ordem, relatavam o que estavam fazendo pelo movimento”, relata o professor.

Para Caíto Aragão, a presença do movimento dentro da procissão do Círio de Nazaré, em 81 e 82, são alguns dos momentos mais significativos que recorda. “Nós entramos com a faixa escondida, para que não acabassem impedindo que a gente participasse. E aí, bem no meio da procissão, abríamos, para todos verem. Uma das vezes, inclusive, abrimos a faixa bem em frente ao bispo Dom Alberto Ramos, que não pôde ignorar a nossa manifestação e teve que fazer um comentário. Foi um movimento de massa muito grande”, destaca.

O advogado Sérgio Galiza, mestre em Ciências da Religião, era um jovem de 21 anos e atuava como agente de pastoral da Congregação dos Cônegos Regulares da Santa Cruz, além de ser estudante de Teologia. “Para mim, um dos momentos mais fortes foi quando, no dia do julgamento, a polícia acabou encurralando parte dos manifestantes dentro da Igreja da Trindade. Ali, ninguém entrava e ninguém saía, porque a igreja ficou cercada. Eu estava do lado de fora, a gente se comunicava com quem estava lá dentro por mímica. Foi um momento dramático. Era um receio exagerado da polícia, ao meu ver, porque era um movimento totalmente pacífico”, avalia.

Visita breve

Em 1981, após as prisões, a pesquisadora Zélia Amador de Deus, professora da Universidade Federal do Pará (UFPA), estava em Brasília representando os docentes da instituição na primeira greve nacional dos professores das universidades durante o período autoritário, quando soube que os padres Aristides Camio e François Gouriou estavam presos no Complexo Penitenciário da Papuda, no Distrito Federal.

“Eu pedi para fazer a visita. Tinha que fazer o pedido. Foi aprovado, eu peguei um táxi e fui lá. Foi uma visita breve, mas eu considerei importante ir até lá, dar uma força para aqueles padres que tinham sido, do meu ponto de vista, presos injustamente. Eu estava lá como representante do comitê de greve da Associação dos Docentes da Universidade Federal do Pará, a Adufpa. As prisões no Araguaia despertaram uma empatia muito grande em todos os movimentos sociais, pelo fato de terem sido arbitrárias”, reitera.

Inocêncio Gasparim, atual titular da Secretaria de Estado de Assistência Social, Trabalho, Emprego e Renda (Seaster), membro ativo dos movimentos da Igreja Católica no período, já que quase chegou a ser padre, foi chamado por sua participação pregressa a substituir os padres franceses, junto Ivana Nobre Azevedo, fundadora do Movimento de Mulheres do Nordeste Paraense (MMNEPA).

“Nós éramos casados e levamos muito tempo até decidir a ir para São Geraldo do Araguaia substituir os padres nas atividades que exerciam lá. Era uma região com um clima muito tenso, de fronteira mesmo, na questão fundiária, e os conflitos continuaram. Fiquei lá até 1984. Em 11 de novembro de 1983, por coincidência no mesmo dia em que foi inaugurada a Paróquia Cristo Libertador, construída em homenagem aos padres, eles foram soltos”, relata.

Durante os dois anos, três meses e dezoito dias em que estiveram presos, os padres franceses e os posseiros do Araguaia, ficaram detidos em diferentes cárceres: do Grupo de Trabalho Araguaia Tocantins (GTAT), em São Geraldo do Araguaia; 2º Batalhão de Infantaria de Selva; no Comando Militar Aeronáutico (Comar), na sede da Polícia Federal, no Presídio São José (somente os agricultores), e no Complexo Penitenciário da Papuda, em Brasília.

No julgamento, em 82, os padres Aristides e Francisco foram condenados, respectivamente, a 13 e 10 anos de prisão. O agricultor João Matias também foi condenado a 10 anos e os demais, a nove anos. Em 1983, após a continuidade das atividades do MLPA, da qual fez parte articulações internacionais, o governo federal decidiu mudar a Lei de Segurança Nacional, fazendo com que os presos pudessem ser soltos.

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