Reciclagem: paraenses aderem a práticas sustentáveis de manejo do lixo doméstico

Cidadãos em Belém adotam o gesto de reciclar artigos do dia a dia, a fim de contribuir com a qualidade de vida coletiva

Eduardo Rocha

O desafio da coleta e destinação final de resíduos sólidos em um cidade envolve não apenas gestores e técnicos do poder público e de empresas da área, mas também os cidadãos em geral, e isso implica em postura e iniciativas que contribuam com o bem-estar da população e preservação do meio ambiente a partir da própria casa e outros locais. Para se ter uma ideia da gravidade do assunto, a empresa Guamá Tratamento de Resíduos (gestora do Aterro Sanitário de Marituba) recebe diariamente até 1.500 toneladas de resíduos domiciliares das cidades de Belém, Ananindeua e Marituba, uma média de 45 mil toneladas ao mês, e cerca de 550 mil toneladas ao ano. Em nove anos de operação, foram tratadas mais de 4 milhões de toneladas de resíduos. Por isso, todo gesto voltado para o reaproveitamento de material diverso é bem-vindo. E ainda bem que eles ocorrem em Belém (PA), cidade inserida nesse contexto desafiador.

Dessa maneira procede o  músico percussionista e arte-educador Heraldo Santos, de 51 anos, possui formação em artes visuais e pós-graduação em educação musical. Ele mora no bairro da Sacramenta. Heraldo recicla produtos comuns que são transformados em instrumentos musicais usados por ele e outras pessoas. Essa prática já é conhecida, inclusive, pelo cantor e compositor Carlinhos Brown, que em 2019, veio se apresentar em Belém e conheceu o trabalho de Heraldo.

image Heraldo Santos cria instrumentos musicais com material reciclado (Foto: Ivan Duarte / O Liberal)

Em setembro de 2023, Heraldo foi o representante da Orquestra Sustentável Percussão da Terra, grupo organizado por ele, em um coletivo de ativistas da Amazônia na delegação do Brasil, integrada por Carlinhos Brown e o grupo baiano de percussão Olodum, entre outros artistas, em viagem a Nova York (EUA). Os músicos se apresentaram no Time Square e no Central Park.

Mas essa projeção nacional e internacional dos instrumentos musicais fabricados por Heraldo começou um pouco antes. Desde 1990, Heraldo Santos atua como músico profissional. Ele integra o Ponto de Cultura Tambores Sustentáveis da Amazônia, no bairro da Sacramenta, onde ministra oficinas de percussão para alunos, ou seja, pessoas de baixa renda e com enorme interesse musical. Anteriormente, esse trabalho era feito na Fundação Cultural do Pará (FCP).

Ao ministrar aulas de música, Heraldo observou que os alunos não dispunham de recursos financeiros para adquirir instrumentos musicais. Foi neste momento que ele teve a ideia de criar os instrumentos com objetos reciclados.

Transformação

Assim, um garrafão de água vira uma caixa de marabaixo; garrafas pet passam a funcionar como maracas, cujo cabo é feito de pedaços de vassoura; tubos grandes de PVC são transformados em curimbós (tambores utilizados para tocar o gênero carimbó, uma referência do Pará). Frascos de desodorante, embalagens de medicamentos efervescentes e de talco viram ganzás; tampinhas em geral são reaproveitadas como instrumentos de efeito e varas de alumínio são transformadas no instrumento musical triângulo. Há cerca de 20 anos, esse processo faz parte da vida do músico e arte-educador.

image A criatividade transforma itens descartados em instrumentos de percussão (Foto: Ivan Duarte / O Liberal)

A disposição para reciclar material, e também para ensinar sobre como fazê-lo tanto em Belém como em outros locais do Brasil, inclusive, em favelas de São Paulo, realimenta o olhar que Heraldo tem com a preservação do meio ambiente. "Para muita gente, esse tipo de material que utilizamos é lixo, mas, para nós, é matéria prima. O acúmulo de resíduos sólidos gera doenças que atingem as pessoas a provoca a deterioração do meio ambiente. Então, temos que cuidar da água, das árvores, dos animais, dos seres humanos, temos de ter uma passagem boa pelo Planeta", enfatiza. "A água, por exemplo, é um tesouro e nós não cuidamos dela como deveríamos", acrescenta. A cada dia, os sons produzidos pelos tambores reciclados de Heraldo e alunos ecoam em defesa da preservação da vida na Amazônia, a partir do cuidado com os resíduos sólidos.

Em casa

Essa atenção com o meio ambiente também faz parte rotineiramente da vida da servidora pública Célia Cordeiro, de 60 anos, mãe de um casal de filhos, moradora do bairro de Fátima, em Belém. Célia pratica canoagem (canoa havaiana) nos rios da capital paraense, o que a incentiva ainda mais a essa prática do reaproveitamento de material. Ela integra a Fundação Alachaster, que atua na área ambiental. "Eu reciclo resíduos sólidos em casa há uns oito anos. Separo diversos tipos de plásticos desde os sacos, destes de supermercados, até os mais rígidos; papel, papelão; óleo que sai das frituras; latas de alumínio. E tento dar uma utilização para o vidro, que é mais difícil de reciclar devido não termos, na região, nenhum lugar onde se faça este beneficiamento, que eu saiba apenas a Alachaster recebe vidro", relata Célia.

image Célia Cordeiro: reaproveitamento de material em casa (Foto: Ivan Duarte / O Liberal)

Sobre o reaproveitamento de resíduos orgânicos, Célia conta que junta as cascas de ovos e borra de café para misturar à terra preta e virar adubo para as plantas. E do resultado da compostagem, virá adubo e fertilizante. "Eu faço o aproveitamento do material de vidro para armazenar mantimentos e utilizo o produto da compostagem nas plantas. As embalagens  dos ovos, que já são feitas de papel reciclado,  os devolvo ao meu fornecedor", revela. Célia revela que essa atitude surgiu a partir do  "impacto negativo que o lixo, especialmente o plástico, causa no meio ambiente, nos animais silvestres,  nos peixes, aves e em nós mesmos, e a preocupação com as próximas gerações".

O que ela recicla é coletado na própria casa. "Todo material da reciclagem é proveniente do que consumimos na  minha própria casa", explica. Célia diz que, com essa prática, sente que está fazendo a parte dela em favor do planeta, da Amazônia, dos animais, das florestas e dos rios, "que tanto amo". 

Célia conta que o material orgânico utilizado na cozinha, como restos de frutas, verduras, cascas, é colocado em uma composteira, que está temporariamente desativada. "E, algum tempo depois, será retirado o adubo para a terra e fertilizante para as plantas, que misturado à água, na proporção de 1/10, é excelente para as plantas". Os demais produtos sólidos, orgânicos, são enterrados em canteiros próprios para passarem por transformações químicas e tornarem-se adubos de qualidade.

Educação

"A maioria das pessoas sabe o quanto é necessário a atitude do reaproveitamento, por meio da reciclagem, mas cedem ao comodismo, à preguiça, ao descaso, à falta de educação ambiental e acham que ao jogar uma embalagem de bombom na rua não fará diferença... será que um peixe engasgado com essa embalagem , não será impactado? Quando se juntam centenas de embalagens que entupirão esgotos, causando prejuízos a dezenas de famílias, durante as inundações em nossa cidade, elas não serão impactadas? Já passou da hora de rever certas atitudes. Mudar hábitos nocivos à natureza é muito fácil. Basta querer. Se tiver dúvidas, vá às redes sociais. O que não faltam são sites que direcionam por onde começar", enfatiza Célia Cordeiro.

Célia acredita que somente "a educação ambiental, levada realmente a sério, pelos governos federal,  estadual e municipais, nas escolas de nível fundamental e médio, pode mudar nossa realidade Amazônica".  Como praticante de canoagem há dois anos no Rio Guamá, Célia Cordeiro acrescenta: "Já vi de tudo boiando nas águas do rio Guamá e em outros rios da Amazônia. De cascos de geladeira, sofás, colchões, carcaças de televisores a computadores. Sacos cheios de lixo então... Se não acreditam, os convido a fazerem um passeio comigo, especialmente, na vazante da maré, e verão a quantidade absurdamente enorme de lixo flutuando.  Isso sem falar nas embarcações que despejam óleo nos rios, sem se importarem com os impactos que causam", denuncia. 

image Célia Cordeiro: contato com a natureza é incentivo para reciclar material em casa (Foto: Arquivo Pessoal)

"Outra coisa preocupante é a ocupação desordenada das margens por comerciantes, que visam, em sua maioria, unicamente a exploração econômica do local, sem sabermos se houve algum ordenamento no que se refere aos esgotos, ao lixo, e aos impactos à flora e fauna. Mas basta dar uma olhadinha em volta destes locais, para vermos o lixo e dejetos boiando nas margens", complementa Célia. Ela acredita que se cada habitante de Belém reciclasse seu material em casa, o primeiro efeito positivo seria o visual. "A cidade ficaria linda de se ver, e, é claro, e isso contribuiria para a saúde das pessoas e animais. E também tem o econômico, visto que o material reciclado é uma fonte de renda que simplesmente não é valorizada. O material da compostagem se traduz em adubo e fertilizante para as plantas. E quando vemos uma distribuição de renda mais justa e mais humana e com menos egoísmo,  como não ser mais feliz?", pergunta Célia Cordeiro.

Consumo exagerado: mais resíduos

A Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei 12.305/2010) em seu art. 3° define resíduo sólido como: “material, substância, objeto ou bem descartado resultante de atividades humanas em sociedade, a cuja destinação final se procede, se propõe proceder ou se está obrigado a proceder, nos estados sólido ou semissólido, bem como gases contidos em recipientes e líquidos cujas particularidades tornem inviável o seu lançamento na rede pública de esgotos ou em corpos d’água, ou exijam para isso soluções técnica ou economicamente inviáveis em face da melhor tecnologia disponível”. O geólogo e consultor ambiental Renato Oliveira Fanha ressalta que "é importante não confundir resíduos com os rejeitos ou “lixo” que são aqueles materiais que não podem mais ser reutilizados ou reciclados e têm de ser encaminhados para destinação final adequada, como aterros, por exemplo".

Sobre o fato de as pessoas em geral produzirem muitos resíduos sólidos em casa e em outros locais, a partir, muitas vezes, de um consumo exagerado de bens, Renato Fanha destaca: "A conta é simples, o aumento no consumo gera mais embalagens e materiais descartados, e quanto mais material, mais resíduos sobrecarregando o sistema de coleta urbana e descarte adequado, e isso tem total relação com a sociedade de consumo que vivemos". 

"Somos bombardeados diariamente a consumir cada vez mais para nos sentirmos felizes e realizados. Sabendo disso, empresas e industriais produzem seguindo a cartilha da obsolescência programada, ou seja, produção de bens com vida útil curta e irreparável, levando ao descarte prematuro de produtos ainda funcionais, o que por sua vez, possibilita uma produção de bens como menos custos e a oferta de produtos mais “acessíveis”, retroalimentado a necessidade de consumo de novos produtos pela população. Aliado a isso, temos uma sociedade com reduzida consciência ambiental, e normalmente mais interessada em seus direitos e pouco responsável por seus deveres enquanto cidadão", assinala Fanha. 

Resíduos sólidos recicláveis são caracterizados de acordo com sua capacidade de serem processados e transformados em novos produtos. São normalmente divididos em papéis e papelão, plásticos, vidros e metais. Esses quatro tipos de resíduos são responsáveis pela maior parte dos descartes e possuem alto potencial de reciclagem. Além desses, outros resíduos também merecem destaque: eletrônicos, pneus, tecidos e materiais orgânicos, os quais podem ser compostados e virarem adubos de alta qualidade.

Reciclar é preciso

Como informa Renato Fanha, em Belém existem alguns exemplos de empresas que trabalham ou reutilizando os resíduos sólidos, ou com “upcycling”, ou seja, a reinserção de resíduos descartados na cadeia produtiva. Alguns de destaque são: Jalunalé, que produz mochilas, pochetes e bolsas com sacolas plásticas, tecido de sombrinha e pneus; e Composta Belém, que produz adubo orgânico a partir da reciclagem de resíduos orgânicos. "Para o consumidor, há muitas formas de reutilizar produtos. Podemos reutilizar garrafas PET para vasos de planta, podemos reutilizar garrafas de vidro para fazer vitrais e mosaicos ou usar como recipientes, podemos reutilizar latas de alumínios para fazer artesanatos. Quando se trata de reutilizar, o ideal é deixar a criatividade aflorar, pois até quando usamos potes de azeitona ou requeijão como copos estamos ajudando o meio ambiente", diz Fanha.

"Cerca de 85% do que descartamos poderia ser reutilizado, reciclado ou compostado, estamos literalmente jogando dinheiro fora, ou melhor aterrando-o. Se pensarmos em todos os problemas que Belém e região metropolitana enfrentam há anos com a questão do “lixo”, poderíamos resolver a maior parte deles com esta simples atitude. Para além disso, o descarte inadequado de materiais, a demora na coleta e a não separação dos resíduos, acaba por proliferar doenças e entupir canais e bueiros, provocando enchentes. A falta de políticas públicas para valorização das cooperativas de catadores, associado à falta de consciência da sociedade, gera não apenas impacto ambiental, mas também sanitário, social e econômico", observa Renato Fanha. 

A reciclagem também é capaz de gerar economias na outra ponta da cadeia industrial, diminuindo a quantidade de recurso mineral ou ambiental necessário para a produção de bens. Por exemplo, a reciclagem de uma tonelada de vidro é capaz de substituir a extração de 700 kg de areia, enquanto que a reciclagem de uma tonelada de papel pode evitar o corte de 17 árvores para produção de papel. "Em resumo, a reciclagem desempenha um papel fundamental na redução do consumo de recursos naturais, na minimização da poluição e na mitigação das mudanças climáticas", diz Fanha. 

Segundo a Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais, em 2022 o Brasil reciclou apenas 4% dos materiais descartados, enquanto na Alemanha, que possui as melhores taxas de reciclagem e/ou compostagem, foram aproximadamente 65%, repassa o geólogo. Para aumentar a taxa de reciclagem no Brasil, é necessário um esforço conjunto do poder público, empresas e cidadãos para melhoria da infraestrutura de coleta seletiva, investimento em educação ambiental formal e não-formal, fortalecimento da indústria de reciclagem com investimentos em pesquisa, desenvolvimento de novas tecnologias de reciclagem e criação de incentivos fiscais para as empresas que reciclam, e "a mais importante que é a criação de uma cultura de reciclagem". Às vésperas da realização da Conferência Mundial sobre Condições Climáticas, da ONU, a COP 30, em Belém (PA), em 2025, reciclar é preciso.
 

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