Mais de 70 indígenas da etnia Munduruku se formam como professores no Pará

Cerimônia de formação de professores marca momento histórico para a educação. Estado agora abrirá especialização

Camila Guimarães

A região norte concentra cerca de 40% de toda a população indígena do País, sendo o Pará o terceiro estado com o maior número de brasileiros assim listados, aponta o levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Para esses povos, a educação tem sido um caminho importante de valorização da sua cultura, identidade e preservação de saberes. Desde 2009, por exemplo, mais de 100 indígenas se formaram na Universidade Federal do Pará (UFPA). E nos últimos dez anos, 11 turmas concluíram o ensino superior na Universidade do Estado do Pará (Uepa) - conquistas que se contrapõem às condições sociais nacionais que impõem dificuldades de protagonismo e autodeterminação aos povos tradicionais no Brasil.

Na última quarta-feira (8), 74 indígenas da etnia Munduruku integraram a 11ª turma a concluir o curso de Licenciatura Intercultural Indígena, ofertado por meio do Núcleo de Formação Indígena da Uepa. A solenidade foi realizada na sede da cidade paraense de Jacareacanga, na divisa com os estados do Amazonas e Mato Grosso. “Hoje é um dia especial para mim e para as pessoas que estão prestigiando, porque foi uma batalha de longo tempo. Hoje eu sou um exemplo para as pessoas da minha comunidade, para o cacique e para todos aqueles que gostam de ver a gente sendo vencedor”, anima-se o graduando Marcelo Saw Munduruku. Para ele, a formação representa uma conquista histórica.

"Hoje eu sou um exemplo para as pessoas da minha comunidade, para o cacique e para todos aqueles que gostam de ver a gente sendo vencedor” -  Marcelo Saw Munduruku, graduando"

Marcelo comenta que a educação formal do indígena ainda é um grande tabu, algo que muitas pessoas olham com estranheza, como se o ambiente acadêmico não fosse um espaço ao qual eles podem pertencer: “Essas pessoas têm que pensar duas vezes, porque a educação superior indígena nos faz vencedores. E sempre está na minha cabeça que, se hoje eu estou aqui, eu não vou ficar para sempre. Por isso pretendo ser exemplo para aqueles que vão ser meus alunos, para que eles nunca desistam, porque eles são o futuro”.

A responsabilidade com as próximas gerações tem um sentido muito especial para a turma de graduandos Munduruku. Eles entendem a formação universitária como um modo de reforçar a perpetuação dos seus saberes e culturas para as gerações seguintes. “Como somos professores de educação intercultural, precisamos valorizar nossa cultura e a educação escolar indígena. Para nós é uma responsabilidade muito grande, porque, através dos conhecimentos adquiridos nos últimos seis anos, nós iremos repassar para os nossos parentes, netos, sobrinhos e várias gerações da nossa cultura Munduruku”, resume Roseane Kabá Munduruku, oradora da turma.

Roseane Kaba Munduruku é uma das novas professoras do Pará (Rodrigo Pinheiro / Agência Pará)

De mãos dadas com cuidado em relação ao futuro caminham também o respeito e a valorização da ancestralidade. É o passado que não fica para trás, e é revivido nas práticas cotidianas dentro das aldeias. Durante a solenidade de formação, não foi diferente: grande parte dos alunos complementou a vestimenta com ornamentos significativos para sua cultura. “Eu estou vestido, hoje, em homenagem aos nossos antepassados. É uma vitória muito importante, uma conquista muito grande para nós e um avanço na educação na área específica. Também é um incentivo para que outros povos tenham acesso à educação, porque nós temos a capacidade de conquistar”, ressalta o formando Ivair Datie Karikafu. Ele presenteou o reitor da Uepa, Clay Chaves, com um cocar simbólico.

Pandemia: um desafio a mais à formação dos indígenas

Para a formanda Elisa Akai Wui Munduruku, a oportunidade de celebrar a formação foi também um momento para relembrar todos os que morreram durante a pandemia de covid-19. “É uma alegria poder chegar ao final e ver minha família, todos bem, depois daquele período que a gente passou, com perda das nossas lideranças, infelizmente. Mas graças a Deus, minha família toda está aqui, além do povo, cada um deles ansioso, querendo ver a gente receber nosso diploma para que a gente possa dizer que venceu a batalha, mais uma luta nossa”, comemora.

74 indígenas munduruku se formaram como professores (Rodrigo Pinheiro / Agência Pará)

Durante o discurso da turma, a recém-formada professora Roseane Kabá Munduruku, aproveitou a oportunidade para propor um minuto de silêncio pelo colega de classe e ex-vereador de Jacareacanga, Elinaldo Kirixi Munduruku, que morreu aos 50 anos de idade, no dia 9 de julho de 2020, vítima de covid-19. A turma de formandos recebeu o nome de Elinaldo em homenagem à sua memória.

image Crianças indígenas de diferentes etnias recebem a vacina contra covid-19 em Belém
Ação faz parte da campanha nacional “Vacina Parentinho”, promovida na capital paraense pelo Instituto Nossa Voz

Roseane lembra como a pandemia foi um período muito difícil para os estudantes, aumentando os desafios durante o processo de aprendizagem: “Tivemos aulas online, que não foram fáceis. Os problemas com internet eram gigantes para nós. Muitos não sabiam entrar em salas virtuais. Depois de alguns meses, fomos aprendendo”.

Roseane detalha que até mesmo o uso de aplicativos de mensagens, como o Whatsapp, era um grande desafio, pela dificuldade de se adaptar aos dispositivos. Foi preciso muita resiliência para chegar até o final, já que a turma deveria ter se formado em 2020. A pandemia adiou a formação por dois anos. “Não foi fácil, mas nós, Munduruku, estamos acostumados às batalhas. Lutamos, ainda hoje, por nosso território. Somos gratos aos caciques, que com muita garra lutaram para que a universidade viesse até nós. Também somos gratos aos nossos pais. Afinal, a casa foi a primeira escola e a mãe foi a primeira professora”.

Indígenas em sala de aula na aldeia Karapanatuba (Rodrigo Pinheiro / Agência Pará)

Para além da pandemia, a formação exigia força para superar obstáculos, até a conclusão do ensino superior. A concorrência, na abertura do curso, contou com 400 inscritos para 80 vagas. Depois veio a necessidade de sair de casa e da aldeia, para ir até a aldeia-sede do curso. “Deixar nossos familiares e nos adaptarmos à rotina da universidade foi muito difícil”.

O domínio do português também foi um desafio. “Na hora de explicar os trabalhos, pois muitos de nós não sabíamos nos expressar bem na língua portuguesa”, detalha Roseane. Entretanto, ela garante: o curso permitiu “conjugar os conhecimentos indígenas aos conhecimentos dos não-indígenas”, emociona-se Roseane. “Tinha vezes que as visagens visitavam os colegas. Outras vezes precisamos carregar água, fazer trabalhos com a luz da lanterna do celular, para entregar no dia seguinte. Amadurecemos mais na profissão, na certeza de que nossas lutas não são em vão”.

Formandos e docentes apostam no protagonismo indígena na educação

Desconstruir a ideia de que saber e produção de conhecimento são restritos a alguns ambientes e locais de fala específicos, sobretudo de teor eurocêntrico, é um dos principais ganhos da formação indígena, defende uma das docentes do curso de Licenciatura Intercultural Indígena, a professora Antônia Zelina Negrão Oliveira.

“Tem sido extremamente gratificante saber que a universidade também tem se oportunizado aprender com os povos indígenas, trazendo para dentro da academia os saberes dos povos, conjugando esses saberes aos saberes científicos. Enquanto universidade, só tivemos a ganhar com essa troca de conhecimentos. Isso nos deu mais tranquilidade para enfrentar esse processo de decolonização que vivenciamos”, avalia a Antônia Zelina.

Solenidade de formatura dos indígenas munduruku (Rodrigo Pinheiro / Agência Pará)

A professora se emociona ao relembrar as dificuldades que enfrentou para dar aulas. Entre elas, os três dias de viagem de Belém até a aldeia, no Alto Tapajós. “Nossos alunos também tiveram desafios. Alguns vinham de aldeias de quatro dias de viagem para chegar à aldeia-sede, onde funcionava o curso. É muito gratificante estar formando 74 professores indígenas. Eles têm a oportunidade de escrever a educação escolar que desejam proporcionar para as suas crianças, seus jovens e adultos. Não apenas do povo Munduruku, mas de todas as aldeias do Pará”.

Para a coordenadora do curso, professora Aline da Silva Lima, a licenciatura não é sobre conquistar para si um diploma de ensino superior: é sobre o protagonismo para existir e produzir conhecimento. “O professor indígena conhece seu contexto e pode relacionar os ensinos da língua materna com a História, o conhecimento do seu território, com o ensino da Geografia, com os conhecimentos da caça e da pesca, com a Biologia. É uma interseção entre saberes. É a construção de um protagonismo”.

"Agora posso dizer que, além dos nossos ensinamentos da tradição, vamos ensinar também sobre os assuntos do mundo todo. Isso é fundamental" - Elisa Wuiu, professora.

A recém formada Roseane Kabá Munduruku resume a importância da formação indígena na licenciatura: “O professor indígena Munduruku deve promover uma educação voltada para o seu povo, bilíngue, que não se distancie da língua Munduruku. O curso nos ensinou que os grandes autores das nossas histórias somos nós, os protagonistas para transformar a nossa educação. A universidade nos fez iguais e mostrou que precisamos promover uma educação escolar intercultural, diferenciada, específica, interdisciplinar e própria para os Munduruku”.

Professores Munduruku já planejam aulas nas aldeias

A professora Munduruku Elisa Wuiu já se prepara para viajar até a aldeia Escondido, no município de Jacareacanga, sudoeste do Pará. Nesta quinta-feira (9), foi o dia dela separar o que será utilizado durante a viagem. O diploma recebido na formatura, nesta quarta-feira (8), ficará na cidade, mas o conhecimento aprendido ao longo do curso de Licenciatura Intercultural Indígena vai acompanhar a professora para sempre.

“Iremos compartilhar a educação que recebemos com os nossos parentes. Eu já dava aula antes. Agora posso dizer que, além dos nossos ensinamentos da tradição, vamos ensinar também sobre os assuntos do mundo todo. Isso é fundamental. Educação de qualidade é um direito nosso”, pondera Elisa Wuiu.

Numa colação de grau inédita, nesta quarta, os 73 professores Munduruku outorgados receberam seus diplomas do próprio governador Helder Barbalho, que estava ao lado do reitor da UEPA, Clay Chagas.

Governador do Pará, Helder Barbalho, participou da solenidade dos professores munduruku (Rodrigo Pinheiro / Agência Pará)

“A mensagem aos povos indígenas é para que contem com o governo do Pará. Esse é o momento em que temos visto, lamentavelmente, muitos conflitos com os povos indígenas no Brasil. No que depender do governo do Pará, os povos indígenas sempre serão vistos e protegidos, garantindo os seus direitos, a preservação dos povos tradicionais em solo paraense”, enfatizou o governador.

Novos investimentos em educação virão com especialização

Helder Barbalho também anunciou mais investimentos para educação indígena no Pará. “Em parceria com a UEPA, traremos a graduação e especialização intercultural para povos indígenas, já no próximo ano. Portanto, não é apenas a graduação em Licenciatura. Já levaremos a especialização para que vocês possam aprender e se qualificar cada vez mais. Aproveitem essa oportunidade”, anunciou Helder.

O curso de Licenciatura Intercultural Indígena integra a política indigenista da Uepa, e é coordenado pelo Núcleo de Formação Indígena. O Núcleo constitui-se num espaço interinstitucional que garante aos povos indígenas formação superior, realização de pesquisas, atividades de extensão e formação continuada, de acordo com as necessidades e realidades desses povos. O curso abrange as áreas de Linguagem e Arte, Ciências da Natureza e Matemática e Ciências Humanas e Sociais.

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