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Lena Cristina Barros Mouzinho

Trabalho como psicóloga, com pessoas, famílias, casais e grupos. Sou apaixonada por Educação Relacional e fiz disto meu sentido de vida. Todo meu exercício profissional é na busca de conexão humana, por meio do diálogo.

'Tênue' limiar entre relação de dominação e de ajuda

Ocupar o lugar do “progressivo” pode nos trazer a ilusão de controle sobre o outro e acalentar a infantil sensação de superioridade

Lena Mouzinho

Lembram-se da voz de Paula Toller cantando  nos anos 80  a canção do Kid Abelha “Como eu quero”?

“...eu quero você como eu quero...

...O  que você precisa é de um retoque total

vou trans formar o teu rascunho em arte final...

...Longe do meu domínio

cê vai de mal a pior

Vem que eu te ensino como ser bem melhor.”

Pensamentos e crenças que alicerçam falas como essas?

Que existem seres superiores, medianos e inferiores.

Que há convenções  – padrões físicos, intelectuais, religiosos, ideológicos, comportamentais, emocionais, econômicos, etc e etc - construídas culturalmente para modelar, classificar humanos e incluí-los em extratos.

Que enquanto não se atende as exigências para instalar-se na categoria dos “superiores”, precisa-se no mínimo aparentar ter as tais qualificações, na busca de respeito e valorização - tão escassos! - dos outros, mesmo que o custo desse empenho resulte em sofrimento, falta de verdade e insatisfação.

Que quanto maior o sacrifício na escalada maior o mérito.

Que quem se sente no extrato superior ou se esforçando para ocupá-lo,  tem a obrigação de demonstrar ser “gente do bem”, “ajudando” os “inferiores” a subirem os mesmos degraus, da mesma forma que experimentou.

Esta visão, ainda predominante, é perigosa. Está na base das injustiças, preconceitos e violências que grassam em nosso ambiente social,  pois engendra uma competição desmedida entre os pares e justifica atos de tirania com a “melhor das intenções”: “estou certo e o outro errado”...”quero ajudá-lo a ser ‘alguém na vida’, ele se recusa e eu o puno”.

Além de contribuir para construir distorções: a “superioridade” dá o direito a uns de esculpirem outros como objetos, violando integridades; alguém, sentindo-se generoso, entra na vida de outro como “colonizador”,  desqualificando quem não se adéqua aos seus referenciais.

RELAÇÃO DE DOMINAÇÃO

Podemos, então, traduzir a mensagem da gostosa canção, com outras palavras que são ditas cotidianamente em nossa sociedade, por diversas pessoas a outras, de diversas formas:

“Sou mais experiente, mais inteligente e informado que tu. Mas vejo em ti algum potencial a ser desenvolvido. Pra falar a verdade eu nem te quero como companhia. Mas para responder as expectativas culturais preciso de um par. Queria para me acompanhar, uma pessoa “bem sucedida”. Alguém que atendesse às minhas necessidades e que assumisse os caminhos que eu considero os melhores. Com essa pessoa eu estaria satisfeito. És uma pessoa cheia de defeitos, com crenças, ideologias, comportamentos e hábitos que até me envergonham. Mas vou te ajudar! Vou  investir na tua mudança para ver se melhoras. Aproveita e agradece a sorte de teres me encontrado pois não é todo mundo que recebe uma oportunidade assim.  Eu sei o que é melhor pra ti e vou dar tudo de mim pra te re-educar. Mas olha... só se ajuda quem quer ser ajudado. Precisas, então, seguir meus conselhos.”

Ocupar este lugar do “progressivo” pode nos trazer a ilusão de controle sobre o outro e acalentar a infantil sensação de superioridade mas, que poder é esse? O que pode acontecer com a outra pessoa nesta relação?  

Numa sociedade regida por estas crenças é comum que uma pessoa que se fixe no lugar do “progressivo”, torne-se dependente da dependência dos outros e tenda a atrair-se pela companhia de pessoas habituadas a ocupar o lugar do “regressivo”, que desenvolveram a tendência a depender, a não ter atitudes, a precisar que lhe ditem os caminhos, a caminhar sob pressão de outros e a desenvolver formas adaptativas para lidar com o confortável-desconforto deste lugar.

Uma das formas adaptativas mais danosas é tecer relações utilitárias com o “progressivo” e vingar-se do seu controle , enganando-o. Afinal, quem controla quem?

Quando alguém aprende que é inferior, irresponsável  e incapaz, valoriza a  pessoa que “manda” e chega até a sentir-se validado por ter sido escolhido como alvo da atenção de quem considera superior a si. E submete-se.

Para manter-se vinculado, aparenta “mudanças” superficiais, enverniza-se, camufla-se.  E o “re-educador” passa a acreditar ainda mais em seu poder de manipular o outro.

Em momentos - e por um tempo - a superproteção é confortável. Bom ficar sob à sombra de uma frondosa árvore que providencia a satisfação de todas as minhas necessidades, sem que eu precise me movimentar a não ser para o usufruto. Não preciso refletir, avaliar e nem tomar decisões. Se assumo alguma iniciativa, ela é sempre inadequada para os padrões de exigência da outra pessoa e vem a crítica e censura de sempre. Então minha “atitude-zero” evita conflitos que colocariam em risco a estabilidade da relação que me é conveniente.

Mas, no fundo, o que todo mundo deseja mesmo é sentir-se validado.

Chega o momento em que o sentimento de desvalor torna-se  insuportável. Sentir-se inadequado sempre impede de continuar a acomodação ao lugar com prazer. Nem as transgressões ocultas, nem as explosões eventuais, nem a pseudo-indiferença, compensam a dor de sentir-se um “nada”.

É  comumente esta a hora do  abandono: de encontrar outro “poderoso” que proporcione outra relação utilitária, com um pouco mais de liberdade e valorização.

Mas, é possível também que venha à tona uma sensação de vazio pela falta de sentido na vida, pelo desconhecimento de seus talentos por desuso de potenciais. De dentro da pessoa pode brotar o desejo para aprender algo: “quero escolher o que me apraz. E não sei agir, muito menos pro-agir. Na luta pelo controle nas relações, por tanto tempo, só aprendi a reagir.”

Este momento pode vir a funcionar como um “ponto de mutação” da pessoa “regressiva”  e possivelmente, como uma outra forma de colocar o ponto final numa relação adoecida.

RELAÇÃO DE APOIO

A relação de apoio se dá entre diferentes que reconhecem suas semelhanças e nasce de um outro olhar:

Cada humano que compõe o “organismo vivo” que chamamos sociedade, é singular. E na relação de interdependência entre os seres – arte de dar e receber - é que nos desenvolvemos como humanos e contribuímos para que o Todo se desenvolva.

Cada pessoa tem dons e talentos potenciais que desabrocham de forma e em ritmos únicos. E neste processo de despertar é que se descobrem suas funções importantes a serem desempenhadas, em cooperação.

Pelo simples fato de existir, cada pessoa já é digna de valor.

Cada humano é, em seu eterno processo de amadurecimento, uma obra de arte única sendo criada. E é também seu próprio artista/criador, todos os dias, na relação com o Todo. O colorido, texturas, contornos e características exclusivas da obra são estados que são modificados no processo de aprendizagem do mundo/no mundo.  Pois é inerente a nós um poder natural para aprender aquilo que nos atrai, de nosso jeito e tempo. 

Quando estes estados são validados no ambiente relacional, aprendemos a nos acolher neste estado de incompletude e nos organizamos para despertar nossos dons e talentos, que se complementam e somam com os dos outros. E assim amadurecemos juntos.

Mudança, portanto, é resultado de aprendizagem. Nasce de um processo visceral: de dentro para fora, numa busca de satisfação de nossas necessidades. Resulta da nossa relação com o mundo e de um trabalho de mobilização por nós mesmos, de recursos internos e externos. Tal como o impulso que emerge do interior de uma árvore e a faz buscar circunstâncias luminosas suficientes para florescer, desabrochar, frutificar e seguir seu ciclo vital, realizando-se.

Durante o processo de aprendizagem é muito comum se observar em um aprendiz, embaraço, além de outros sinais de insegurança, típicos de quem está se arriscando a aprender. É justo no lidar com os desafios que despertamos nossos poderes pessoais. Sentir e expressar pena por quem está vivendo seu exercício de desbravamento, subestima a capacidade da pessoa em mobilizar ela própria os recursos necessários. E pode contribuir para drenar a auto-confiança necessária para seguir.

Antecipar-se para socorrer sem que a pessoa peça, também pode vir a dificultar: ela pode envergonhar-se do fracasso de suas tentativas, julgar-se pouco inteligente e a angústia e ansiedade proveniente, podem tornar-se mais um desafio a transpor.

Então...sentes prazer em apoiar a jornada de teus pares? 

Apoiar tem relação direta com colocar-se a disposição do outro. Estarás visível a ele se estiveres atento, sem julgar, nem censurar e sem dar palpites não solicitados. Serás facilmente acessado como apoio se não alimentares nele a vergonha que nossa cultura nutriu em nós do “não saber” e que reproduzimos todos os dias, no automático.

À serviço deste apoio, vale perguntar ao seres acessado: o que, como, o que, quando e o quanto?

Vale enfatizar que, acolher a pessoa em seu estado atual – ponto de partida para apoiar - não significa,  de forma alguma,  aceitar condições de sofrimento e violência. É respeito. Tem relação direta com Amar.

Tornar-se-á mais fácil para uma pessoa humana encontrar seu caminho e aprumar-se, se nutrida pelo contato humano que diz de várias formas: “vai”, “experimenta” e “se precisar estou aqui”.

 

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