Artigo: Dona Onete e Max Martins: a Belém dançante e intelectual 'no meio do pitiú'

Luzia Almeida

“A garça namoradeira / Namora o malandro urubu / Eles passam a tarde inteira / Causando o maior rebu...”. É assim começa a música “No meio do pitiú” da cantora paraense Dona Onete. Observe os elementos regionais: garça, urubu e tarde inteira; e a palavra “rebu” que caiu em desuso e, de acordo com o dicionário, é “perturbação da ordem; excesso de tumulto ou muita confusão”. Perturbação, excesso ou confusão não dialogam com o namoro da nossa garça. Esse “rebu” diz respeito a uma brincadeira amorosa e a letra desta música ilustra a identidade de um povo: um açaí que tomamos com os ouvidos. “A garça namoradeira” é um boto branco que nos encanta com a ideia de dançar o carimbó no Ver-o-Peso e de namoro sem responsabilidade: uma prosopopeia ímpar de Dona Onete. A melodia é o Pará puro. E namorar é verbo ressignificado porque além de uma ação, traz à memória um “rebu” de época.

A Belém das memórias que se renovam no Ver-o-Peso com “Urubu sobrevoando / parece que vai chover / Depois que a chuva passar / vou cantar carimbó pra você”. “Cantar carimbó” é diferente de dançar carimbó. A voz paraense tem uma onda de rio que contorna os açaizeiros e proclama uma liberdade a partir de uma chuva da tarde. Uma dolência. Uma preguiça. Um quebranto de amor. E “Parece que vai chover”, mas quem se importa? Nascidos e criados com chuva, somos todos feitos de gotas, de poças d’água e de goteiras: “Parece que vai chover” é a língua materna paraense em quatro palavras. Um idioma completo que falamos e pertencemos. Um imaginário de que somos feitos: flores e frutos da Amazônia. Filhos da mesma canção de telhado e criados na mesma cuia de tacacá. Fora isso, estamos longe de casa e com sono de chuva.

No que se refere a Belém intelectual, temos em Max Martins a genialidade da caneta: são muitos os gênios que poderiam fazer esta representação, mas em Max eu (des)encontro uma casa às avessas no poema “A cabana” porque é construída na perspectiva de porto: solidão de quem vai. E esse ineditismo confessional é um telhado para o leitor que pretende desacreditar na casca da palavra, da palavra que não é vida, que não é canção: “É preciso dizer-lhe que tua casa é segura / Que há força interior nas vigas do telhado / E que atravessarás o pântano penetrante e etéreo / E que tens uma esteira / E que tua casa não é lugar de ficar / mas de ter de onde se ir”. Em Max Martins há uma lógica não acostumada ao comum. São indicações de vida além do físico: o “etéreo” que nos ronda e nos desperta a sensibilidade a partir de uma esteira voadora, embora “vigas do telhado”. 

Belém é uma casa-porto, vai da chegada ao Ver-o-Peso de Dona Onete à partida de “A cabana” de Max Martins nas construções que apontam símbolos e domínio linguístico. Ora, o que é uma cidade? Uma cidade é uma casa, é uma rede de afetos e histórias que nunca mais ouvi. É quintal com mangueira. As chuvas e os peixes que inundam os nossos rios são do tamanho do meu amor que não retrocede embora tantas marcas d’água. Correm tantas águas neste rio que minha rua fica com ciúmes. Nada a declarar porque de amores cada um reconhece o seu. O meu amor tem o mormaço da tarde e um cheiro característico que me faz sentir parte de um povo, de uma gente que inaugurou a alegria na pedra do peixe... Se eu não fosse gente seria água para não esquecer jamais que Belém é meu abraço de rio. 

Luzia Almeida é professora, escritora e mestra em comunicação.

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