Silêncio! A rainha vai falar!
A jovem Juliane Moraes conquistou, na madrugada do último dia 15 para 16 de fevereiro, o título máximo de Rainha das Rainhas do Carnaval paraense 2020 – uma honraria há muito sonhada por essa menina de Marituba, que ainda está “digerindo”, como ela mesma diz, o sabor da vitória. Humilde, negra, da periferia de Belém, Juliane, do alto de seus 1,55m de altura, não perde a doçura, mesmo quando o que está em pauta é o amargor do racismo, que ela também tem vivido. De família adventista, ouviu da avó, que “Deus abomina o pecado, mas abraça todos os pecadores”. Com o suporte de uma equipe unida, nossa entrevistada especial deste domingo, afirma que pretende usar o título de Rainha das Rainhas como estandarte na luta contra a ignorância e o preconceito.
Troppo + Mulher: Juliane, você é uma menina!
Juliane Moraes: [ri timidamente] Eu sou, né?
T+M: Você ganhou uma bolsa integral em uma faculdade de Belém. Já escolheu o curso?
JM: Vou optar por Odontologia.
T+M: Antes de a gente falar de agora, me permite voltar ao começo. Declaraste, em entrevista concedida logo depois do anúncio de ganhadora, que estavas vivendo um sonho antigo. Como foi que pintou esse convite de representar a ASALP? Quando ele ocorreu?
JM: Então, não pintou o convite. Eu vim do São João [ela faz referência a dançar nos concursos de quadrilhas juninas], eu já tinha uma equipe que sempre me acompanhou e optei por ir com essa equipe. Os clubes são fechados com os estilistas, logo são eles que levam as rainhas [as candidatas]. A minha equipe já havia trabalhado com outras rainhas, em anos anteriores, mas não havia assinado com ninguém, então nosso desafio foi correr atrás do clube. A gente foi atrás!
T+M: E como foi essa recepção, de chegar com equipe pronta e uma ideia na cabeça?
JM: Foi ótima! Fomos muito bem recebidos. Apresentamos o projeto e eles abraçaram a causa.
T+M: Qual a sua data de nascimento?
JM: 21 de maio de 2000.
T+M: Quando vocês apresentaram o projeto para a ASALP, você devia ter acabado de atingir a maioridade, certo? Isso foi planejado?
JM: Sabe que não? O Rainha é um sonho antigo, de infância mesmo. Nasci dançando, danço desde os 4 anos de idade.
T+M: Quem te apresentou ao universo do São João?
JM: Meu tio [ela aponta para ele, que está acompanhando a entrevista]. Ele tinha um grupo junino... [o tio interrompe momentaneamente e conta que criou o grupo junino para que Jamile pudesse dançar]
T+M: Aos 19 anos, tendo conquistado esse título, a tua ficha já caiu?
JM: [ela ri] Estou digerindo ainda. Sonhei muito com esse momento e agora que o realizei, é difícil de acreditar...
T+M: E o que já mudou na tua vida?
JM: A rotina. Está uma loucura! Bem puxada!
T+M: Lá no desfile, após o anúncio de que eras a ganhadora, a Izabelle [Rainha da edição de 2019] te disse algo que não foi captado pelos microfones. O que ela te falou?
JM: Que estava muito feliz por mim. Que estava torcendo por mim. Já havíamos conversando antes... Eu e Izabelle nos identificamos muito uma com a outra, por nossas histórias de vida, por termos vindo do mesmo lugar, que é o São João. Pedi dicas para ela e naquele momento, ela me parabenizou.
T+M: Qual foi a dica mais preciosa que ela te deu?
JM: Chegar no palco, encarar os jurados e ser o meu personagem.
T+M: Tinhas noção do júri de peso que estava ali na tua frente, Juliane? Porque foram reunidos alguns dos nomes mais importantes do Brasil em cada categoria...
JM: Não tinha.
T+M: Algum deles foi conversar contigo depois?
JM: Naquela loucura, não. Mas um deles [o maquiador Ricardo dos Anjos] procurou meu pai e o parabenizou pela escolha do tema e que havia sido tudo muito correto dentro do tema proposto. [o pai de Juliane, Sr. Narciso diz que Ricardo o parabenizou pela escolha do tema e por quão forte e aguerrida a filha se portou na passarela]
T+M: Ele realmente estava empolgadíssimo com o seu desfile!
JM: Não sei se você viu o vídeo completo do meu desfile, mas aparece, na hora em que piso na passarela, ele virando de lado e me reverenciando três vezes.
T+M: Falamos do tema da sua fantasia e é inevitável perguntar: tua religião é o Candomblé?
JM: Não. Sou de uma família misturada, mas a maior parte, é adventista.
T+M: Sendo adventista, o tema não causou estranheza na família? Te pergunto isso, Juliane, porque vivemos um momento de inúmeras intolerâncias, inclusive de desrespeito e criminalização às religiões de matrizes africanas. Em algum momento sentiste algum receio de que o tema, em vez de te favorecer, fosse te prejudicar?
JM: Não. Em nenhum momento. A história foi escolhida pelo meu tio, que é historiador e teve que estudar mais a respeito. Ele apresentou à equipe, que abraçou a causa, porque agradou a todos. Porque Iansã é negra, guerreira, então me identifiquei muito. [o tio revela que sentia muito receio por causa dos jurados. Ele conta ainda que rezou muito para que os jurados “fossem do samba”] Como você falou, há muito preconceito, então os jurados, sendo do Samba, entenderiam mais a proposta.
T+M: Ficaste muito nervosa? Como foi tua preparação?
JM: Teve um friozinho na barriga, que era normal. Quando cheguei no camarim, coloquei uma cadeira de frente pra minha fantasia. Fiquei concentrada. Toquei nela, orei muito. Pedi a Deus que me desse somente uma boa apresentação e o resultado seria consequência do meu esforço. Daquele momento em diante, eu coloquei meu fone de ouvido e ouvi bastante a minha música e ensaiei mentalmente cada movimento. Orei mais ainda e conversei muito com Deus. Não vi o desfile de nenhuma outra candidata. Só daí de lá para me apresentar.
T+M: Mulher, negra, de origem humilde e com um tema extremamente desafiador. Houve algum momento em que achaste que não conseguirias? Como tens lidado com as adversidades, os haters e gente que tentou te desabonar?
JM: [ela ri] Tá acontecendo muito comigo. Por conta da minha cor, do preconceito. Sofri antes do Rainha, por conta da minha estatura, já que não tenho porte, nem altura de rainha e depois...
T+M: Mas a Izabelle, que ganhou ano passado, também é super mignon!
JM: Pois é! Ela tem um pouco mais de corpo... Mas voltando à pergunta, eu ouvi coisas horríveis. As pessoas me chamaram de “preta macumbeira” “ela não merecia”. Ouvi que havia fantasias muito mais bonitas.
T+M: Isso te magoou?
JM: Na hora, me entristeceu. Não cheguei a ler ou ouvir diretamente – vieram me contar. Mas tudo isso me deu mais força pra lutar por minha raça.
T+M: O racismo estrutural é muito forte no Brasil, Juliane. Como esperas lidar com isso?
JM: É a primeira vez que encaro isso e pretendo lutar. Não só por mim, mas por todos. Estou vivendo isso pela primeira vez, mas tem gente que encara isso todos os dias. Não é só comigo. Espero que as pessoas tenham um pouco mais de respeito e de amor com o próximo. Espero que a mulher negra ocupe mais os espaços, públicos, entre parlamentares. As pessoas desmerecem os negros, achando que eles não podem. Vou usar essa visibilidade para defender o meu povo negro e periférico.
T+M: Como teus pais receberam essa enxurrada de comentários negativos? [viro para o pai da rainha, Narciso, e pergunto]
Narciso: A gente se entristeceu, logo no início, mas Juliane fez jus ao tema e à conquista. Ela é uma menina guerreira! Tivemos muitos receios, mas ela soube usar as palavras em prol dela e ela foi defendida também por gente que não a conhece, que tomaram para si a defesa da minha filha.
T+M: O Sr se magoou com isso?
Narciso: Um pouco. Sim.... chega um ponto, em que tu ganhas um pouco de visibilidade e as pessoas acham que, por causa da cor da tua pele, tu estás no lugar errado?!? A Juliane tem dito isso: o negro pode ser o que ele quiser! Tanto que um negro foi presidente dos Estados Unidos, a maior potência mundial...
T+M: Quais são teus planos para esse reinado, além da faculdade?
JM: Quero viver intensamente essa oportunidade porque sempre foi o meu sonho! Graças a Deus, consegui realiza-lo e aproveitar as oportunidades que essa conquista me proporcionará.
T+M: Ganhaste um carro também, né?
JM: Vou vender o carro e dividir o dinheiro com todos da equipe – ninguém foi remunerado, todos entraram com amor e vontade.
T+M: Quantas pessoas compõem tua equipe? Antes, me tira uma dúvida, quantos quilos pesa tua fantasia?
JM: Cinquenta quilos!
T+M: Vai ser muito indiscreto perguntar teu peso?
JM: De jeito nenhum. Peso cinquenta quilos.
T+M: Nossa, carregaste uma segunda Juliane! Mas me fala da tua equipe...
JM: Quero agradecer o André Chagas, que é um dos estilistas, junto com o Gabriel Carvalho. Meu maquiador é o Victor Dürvallier. Coreógrafo é o Marcos Maciel. Aí tenho que agradecer à minha família, que se envolveu também, mãe, pai, irmão, avó. A costureira foi a Aurora Costa. A Wena Dürvallier fez minhas unhas. Tive amigos que me ajudaram: dona Rita, Raomi, Marlete, Paulo Júnior...
T+M: Que mensagem gostarias de deixar para tantas meninas negras humildes que estão te lendo agora?
JM: Quero dizer para que elas sempre acreditem nos sonhos delas. Que não permitam que palavras ofensivas a deixem pra baixo. Erguer a cabeça e olhar em frente. Plantem mais amor e respeito e colherão o bem.
Para conhecer mais:
@juliane_santosoficial
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