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Ruy Barata presente

Victor Furtado
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2020 marca o centenário de nascimento do advogado, cartorário, jornalista, poeta, professor, músico e político paraense Ruy Paranatinga Barata, o Ruy Barata. De intelectual a boêmio, de amável a explosivamente sincero, é impossível rotulá-lo. O único esforço aceitável para estes 100 anos de história é descobrir ou reviver o legado cultural deixado por ele ao estado: uma trajetória presente na família, nos amigos e em outros artistas e fãs, que não tiveram a oportunidade de conhecê-lo em vida.

Muito do que se conta sobre Ruy, hoje em dia, é quase "folclore". A consideração é do jornalista Tito Barata, um dos filhos e coordenador geral das comemorações do Centenário de Ruy Barata. Sempre há alguém com alguma história curiosa sobre ele, mas quase sempre improvável. E a associação é tanta à essa figura folclórica, divertida, inteligente, desbocada e carismática, que a atuação na política paraense acaba sendo quase ofuscada. O início dessa história dá-se quando Ruy não quis seguir a proposta de carreira ideal dos anos 1940: a advocacia e enveredar na carreira diplomática.

image Ruy Barata (Paulo Jares)

Após se formar em Direito, em 1943, Ruy se mudou para o Rio de Janeiro. Lá, passou nove meses estudando para fazer o concurso para se tornar diplomata. Desistiu e retornou para Santarém, no final de 1944. Começou a trabalhar com o pai dele, Alarico Barata, que era pretor (cargo equivalente a juiz substituto hoje em dia). Alarico era um civilista e tinha atuação política intensa no município. Ele fez os ajustes necessários para a primeira candidatura de Ruy. Foi na campanha que o artista começou a conhecer a realidade do Baixo Amazonas... além de ter sido o marco inicial para a formação do olhar artístico que desenvolveria.

Ruy Barata foi deputado estadual em duas legislaturas (1947-1954). Ruy só se aproximou do PCB quando o partido rompeu com o Marxismo e as correntes mais clássicas e extremistas. Com essa cisão, nasceu o PC do B, que manteve o ideário mais clássico do comunismo. Como jornalista, até 1964, dirigiu o suplemento literário do jornal "A Província do Pará". Foi titular da disciplina Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Artes, posteriormente incorporada à Universidade Federal do Pará (UFPA).

Muito antes de se autodeclarar comunista, Ruy tinha ideias políticas muito avançadas para a
época (anos 1950). Militares o chamavam de subversivo pelas ideias que defendia, como o divórcio, analisa Tito. Foram duas tentativas de impugnação das candidaturas. Ambas falharam. Com o golpe militar, foi preso logo no segundo dia. Foi demitido do cartório e aposentado compulsoriamente como professor. Só voltou às salas de aula em 1979, com a anistia. Ainda atuou como advogado por um tempo, até começar a se dedicar, exclusivamente, à carreira artística.

Nos anos 1960, Ruy formou a Associação Paraense de Compositores, Letristas e Intérpretes. Como era próximo de jovens, teve de enfrentar um processo de "doutrinação de jovens" em todas as instâncias, até o Superior Tribunal Militar. Foi inocentado em todas as situações. Nos anos 1980, formou a Associação Paraense de Escritores. Duas entidades que reuniram jovens e novos artistas daquela geração. Ruy acreditava que nada se fazia sozinho. Era um símbolo da música desse período. Junto com o filho Paulo André Barata, foi responsável por muitos sucessos da música paraense, como "Esse rio é minha rua", "Pauapixuna", "Foi Assim" e "Indauê Tupã".

"Sempre tivemos a política como um tema recorrente dentro de casa. Nosso pai sempre defendia valores como a solidariedade universal, o humanismo e a democracia. Ele sempre falou muito sobre a importância da família e, por isso, todos os irmãos são muito unidos. Ele teve uma formação rígida e religiosa, mas não fomos criados totalmente assim. Ele era rígido por um tempo e afrouxou depois. Tínhamos total respeito por todas as crenças dentro de casa", relembra Tito.

Mesmo visto como um intelectual e quase inacessível como pessoa, Ruy mantinha uma rotina simples e tipicamente noturna pelo Pará. Principalmente em Belém, que ele muito amava, à qual, provavelmente, dedicou a música "Tronco Submerso", escrita aproximadamente um ano antes de morrer (em 23 de abril de 1990). “De bar em bar, se alimentava das conversas e ideias de conhecidos e desconhecidos. Sobretudo de pessoas mais jovens”, como lembra Edgar Augusto Proença. Ele foi um dos muitos jovens cativados por Ruy. “Ruy não era o tipo de pessoa que ficava socialmente deslocada”.

Antes da noitada, Ruy tomava uma colher de sopa de azeite de oliva puro. Um ritual para preparar o fígado para todos os uísques e cubas libres que seguiriam enquanto todos os papos desenrolariam em cada estabelecimento visitado. Vestia as melhores roupas brancas do armário (marca visual dele) e saía. As noites, quase sempre, começavam e terminavam — ou ao menos terminavam — no Bar do Parque. “Era o preferido dele”, conta Edgar Augusto, pois era onde vários jovens artistas se reuniam.

Havia sempre uma passagem também pelo bar Nosso Clube, que era um reduto de jornalistas, intelectuais e políticos da época. Outro desses redutos era o Central Café (que hoje abriga, já descaracterizado, uma grande loja de roupas fast-fashion, na avenida Presidente Vargas), que formou, nos anos 1950, a chamada ‘Geração Central Café’: a turma que, além de Ruy, tinha Benedito Nunes, Max Martins, Nunes Pereira, Waldemar Henrique e outros grandes artistas e intelectuais paraenses.

Apesar do romantismo sobre a vida boêmia e a inspiração de artistas na noite e na bebida, Ruy tentava dar uma espécie de exemplo. Tito afirma que o pai escrevia como um marceneiro constrói um móvel. Precisava de concentração, dedicação, disciplina, estudo, planejamento. Todas as composições eram calculadas em tamanho, sons, duração, métricas e intenções. Foi assim que o poema "Nativo de Câncer", que Tito considera o mais importante, foi publicado, pela primeira vez, no jornal A Folha do Norte, em 1960. Eram 527 versos decassílabos. Ruy considerava a profissão de escritor como muito nobre, devendo ser bem remunerada sempre.

Mas foi no bar e teatro Maracaibo, que ficava na avenida Alcindo Cacela, onde o jornalista, músico, escritor e agitador cultural Edgar Augusto conheceu o ídolo mais de perto. Algumas das reuniões do Partido Comunista Brasileiro eram lá. Era um castelinho, onde antes ficava guardada a Berlinda de Nossa Senhora de Nazaré. Um ambiente diferente de onde se viram pela primeira vez: a própria casa de Edgar. Ruy e o radialista e músico Edyr Augusto Proença, pai de Edgar, eram amigos próximos. Compuseram e tocaram muitas músicas juntos. Ruy frequentava a rádio PRC-5, no Palácio do Rádio, na avenida Presidente Vargas. De lá, saía, caminhando até o Bar do Parque.

Foi em 1979 que a amizade entre os dois começou. No festival "Delírio Amazônico", Ruy escreveu (com o pseudônimo "Valério Ventura", que costumava ser usado para publicação de artigos políticos nos jornais) uma letra para uma melodia de Edyr. Edgar iria interpretar por uma escola de samba. E assim se aproximaram mais. Os laços se estreitaram quando Paulo André Barata, um dos filhos do primeiro casamento de Ruy, começou a fazer sucesso com Fafá de Belém. A gravadora Continental (hoje propriedade da Sony) o contratou para gravar um LP. Ruy convidou o jovem Edgar para escrever a capa. Ficou nervoso e feliz. Gastou uma resma de papel, em uma semana, para escrever algo que considerasse digno de dois amigos que tanto admirava.

Edgar descreve Ruy com uma quantidade de detalhes que parecem uma narração ao vivo de quem o está olhando a uma certa distância. Por isso é capaz de imitá-lo com proficiência, incluindo a voz anasalada. Ruy gesticulava muito e sorria bastante. Tinha alguma resposta irônica ou sarcástica para quase qualquer linha de diálogo. E sabia encerrar qualquer tópico abordado: aplicava uma reflexão filosófica/culta/política, fazia uma piada e então fechava com alguma frase de efeito. Toda conversa parecia um espetáculo com começo, meio, fim e saudação para esperar os aplausos da plateia. Ruy era artista até quando só estava vivendo o dia a dia.

A bebida soltava ainda mais a língua de Ruy. Em uma das memórias de Edgar, eles tinham ido a um show. Mas acabaram chegando tarde. Ele já estava um pouco bêbado e foi abordado por um jovem casal. O rapaz se apresentou como filho de um juiz que era amigo de Ruy. Excêntrico e explosivamente sincero, disse que o jovem "era um merda porque se apresentava como filho de alguém". O moço saiu amedrontado com a companhia e Ruy só percebeu depois. Noutra ocasião, em circunstâncias etílicas semelhantes, se propôs a ouvir a música de um rapaz que havia se apresentando como um humilde artista, filho de um agricultor de batatas. Ao final, Ruy disse que o jovem deveria se dedicar ao negócio da família e não à música. Quase sempre, as frases mais debochadas vinham precedidas do vocativo "irmãozinho". Dali em diante, seria melhor se preparar.

"Ele provocava. Gostava de ver os limites das pessoas com ele. Principalmente com quem ele gostava. Ele me tirou do sério uma vez. Eu e meu irmão tínhamos um pequeno estúdio e ele gravou um samba para a Acadêmicos da Pedreira. E lá também a Quem São Eles gravou o samba. Naquele ano, a Quem São Eles ganhou. E o Ruy dizia que o samba não havia ganhado porque não havia sido bem gravado. Provocou até que mandei ele se *****. Tempo depois, ele veio conversar e perguntou se eu ainda estava com raiva, porque ele não retirava nada do que havia dito. Mandei se ***** de novo. Ele respondeu que não adiantava ficar raiva. 'Onde estiveres, eu sempre estarei por perto', me disse", recorda Edgar.

Um dos filhos de Ruy, Antônio, é médico e mora em São Paulo. Foi quem conseguiu convencer aquele teimoso intelectual a fazer exames. Ruy estava doente, mas dizia que não queria saber o que tinha, pois "quem procura acha". Ele fez uma operação bem-sucedida para remover um tumor na próstata. Mas acabou morrendo por uma embolia pulmonar. "Eu o achava indestrutível. Era meu ídolo em carne e osso. E quando ele me mostrou a letra de ‘Tronco Submerso’, não percebi que ali ele estava se despedindo e, pela primeira vez, estava demonstrando medo e insegurança", analisa Edgar.

A obra de Ruy Barata: muito ainda a ser descoberto

Tito diz que a ideia da programação do Centenário é fazer algo ao estilo de Ruy. Nada de comendas, medalhas, diplomas... será uma programação artística, ampla, acessível e com foco na divulgação e agitação da arte da terra. É o que ele gostava: de confraria. Tudo começa com um musical, no dia 25 de junho de 2020 e, então, o lançamento de uma biografia (escrita por Denilson Monteiro) e um songbook com gravações inéditas, nas vozes de Leila Pinheiro, Fafá de Belém, Ney Matogrosso, Jane Duboc e Dona Onete.

"Se tornarmos a obra dele mais visível com o centenário e mais pessoas puderem conhecer o trabalho de outros artistas, já será uma grande alegria. Não há muita coisa, mas há material inédito de Ruy, em parceria com Edyr Proença e Galdino Pena, por exemplo. Mas acho curioso em ver como as coisas se renovam. Conheço jovens que conhecem as músicas, a história, os poemas", comenta Tito. Particularmente, ele diz que as músicas são mais fáceis de ouvir sem gatilhos de saudade. Já os poemas, nem tanto. Um dos que o toca e "paralisa" (palavra dele), é "Canção dos 40 anos".

Dois livros foram escritos em vida. O primeiro foi em 1943, chamado "O anjo do abismo", que teve muita ajuda de Dalcídio Jurandir para publicação. Era um compilado de poemas de Ruy de quando ele tinha 19 anos e estava profundamente influenciado por Augusto Frederico Schmidit e "As flores do mal", de Baudelaire. Eventualmente, foi mais influenciado por Murilo Mendes, Carlos Drummond de Andrade e Jorge de Lima. O segundo livro, "A linha imaginária", saiu em 1951. Um terceiro livro foi uma publicação post-mortem, chamado "Antilogia", publicado em 2000, 10 anos após a morte dele.

Edgar Augusto considera que Drummond, Vinícius de Moraes, Paes Loureiro e Ruy Barata são o principal quarteto de grandes poetas brasileiros. Ruy se destaca, do ponto de vista dele, pela forma como construía poemas e músicas. Traduzia linguagens e anseios da vida do interior, do caboclo amazônida e tudo com um viés político e romântico. Tudo com nuances tão sutis que exigem atenção para apreciar tudo.

Para o escritor, poeta, teatrólogo e professor universitário João Paes Loureiro, a obra de Ruy Barata marca o início da implantação do Modernismo no Pará. Tanto em estilo quanto em forma de expressão. Isso é suficiente para tornar a obra dele marcante e relevante para a história da literatura do estado. E o fato da aproximação do centenário é um protocolo histórico a ser cumprido. 

Nesse aspecto, Paes Loureiro considera o livro "A linha imaginária" como mais significativo. A obra incorpora temas típicos da modernidade e ainda apresenta traços de Baudelaire, um poeta pelo qual Ruy confessou admiração. Estilos e influências se refletem em toda a estrutura do livro. No cenário musical, o professor aponta que Ruy Barata criou um ciclo que pôs o Pará no cenário nacional. Algo que tem influência até hoje. A parceria direta com o filho — uma das primeiras influências diretas, já que a ideia de que Paulo André Barata fosse compositor foi do próprio Ruy, que o dissuadiu do plano de ser instrumentista e estudar em Portugal — foi a mais representativa da obra.

"Ruy transferiu para a música a toda a sua originalidade e técnica da poesia de livro. É música como arte de força e seriedade, que marca uma dimensão de artistas até hoje. Destacaria as músicas 'Pauapixuna', no sentido penúrico; 'Porto Caribe', no sentido programático; e no sentido urbano e romântico, o bolero 'Foi assim'", conclui Paes Loureiro.

Frases de Ruy Barata, compiladas na página dedicada ao seu Centenário, no Facebook:

"Acho que o êxito de algumas letras minhas deve-se ao fato de não haver ignorado, entre outras coisas, a dramaturgia e o falar paraense, produtos aviltados pelas elites, sempre atentas às últimas sintaxes existenciais importadas. O povo, a gentinha, a ralé, esses sim, esses souberam compreender certas proposições de minhas letras, cantadas nas várzeas e roçados do Pará".

"A letra me põe numa grade. A poesia me dá liberdade completa. A letra tem que estabelecer comunicação com o público. A poesia não tem obrigações. A poesia transcende a palavra. A letra se mantém no plano temporal. Às vezes, uma letra é poética, mas não obrigatoriamente. A verdadeira obrigação da letra é casar com a melodia e seguir com ela indissoluvelmente junta".

"Estou escrevendo para o próximo século, quando todos os olhos do mundo estarão voltados para a Amazônia".

"Quando eu morrer, só não deixe que eu vire nome de escola e nem de edifício"

POESIAS

Autorretrato

Entre a espuma e a navalha sou legenda.
O espelho neutraliza o ângulo da morte,
a barba estrangulou a metafísica
e o problema do mal é bem remoto.
Aqui sim.
Aqui resistirei à mímica,
ao dicionário e ao laboratório.
(A herança do punhal brilha de novo
o fantasma de Abel não me intimida.)
Vejo a testa crescer
entre espirais de fumo,
o olhar que não vacila
da ruga à pré-história
e o peito rasgado
pela fúria do poema.

Aqui sim,
aqui iniciarei a espécie nova,
aqui derrotarei o homem-harpa
e pronto estou para a descoberta do sexo.
O pincel dá-me o poder do patriarca,
a navalha reduz a timidez e o medo,
o palavrão rola na boca e salva o mundo.

TRONCO SUBMERSO

Tudo o que eu amei estava aqui
Do chão batido à cuia de açaí
Por isso não cantei Copacabana
Ainda que ela fosse tão bacana
No brilho dos postais que eu recebi

Tudo que eu amei estava aqui
Da mão de milho ao pé de miriti
E assim não falei da Torre Eiffel
Dos perfumes de Chanel
Nem do céu azul do Tennessee

Desculpe meu irmão meu canto agreste
Nutrido do jambu que não quisestes
Manchado de tijuco e de capim
Perdoa por favor meu pobre verso
Um tosco tronco submerso
No rio sem nome que se vai de mim.

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Troppo
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