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Para ver e viver o peso de Belém em seus 392 anos

Rodrigo Cabral
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Um dos mais famosos e emblemáticos cartões postais da capital paraense, o complexo do Ver-o-Peso aniversaria esta semana e aos seus 392 anos, carrega expressiva representatividade da cultura local. 

História, cultura, natureza, diversidade, fascínio, orgulho, memórias e até alguns quilos de esquecimento do poder público estão na balança da feira do Ver-o-Peso. Um espaço que está sempre cheio, de gente daqui e de fora, de força e fragilidade, de coragem e medo, também. Pulsante de vida, é um símbolo que está prestes a completar 392 anos, com uma vitalidade que aguça os sentidos de quem passa por lá. Na próxima quarta-feira, 27, Belém celebra o aniversário oficial da maior feira livre da América Latina. Segundo o historiador Aldrin Figueiredo, professor e pesquisador da Universidade Federal do Pará (UFPA), apesar de o ano de 1627 ser tido como o marco de fundação do Ver-o-Peso, a movimentação comercial naquela área teve início bem antes disso.
 
“Quando, em 1616, os portugueses iniciaram a ocupação da região que, hoje, corresponde ao bairro da Cidade Velha, ali já havia uma população indígena e começaram a chegar famílias de Lisboa, dos Açores e da Ilha da Madeira (ilhas atlânticas lusitanas). Essas duas últimas comunidades já possuíam mais de 100 anos de fundação, cresceram muito e acumularam problemas demográficos e fome. O Brasil passou a receber esse excedente populacional e muitas famílias vieram para Belém. Com isso, formou-se uma nova comunidade, que precisava de um mercado, de um entreposto comercial. E, assim, nasce o embrião do Ver-o-Peso”, explica o historiador.

A paisagem era completamente diferente. A avenida Boulevard Castilhos França ainda não existia e a margem litorânea de Belém era onde, nos dias de hoje, localiza-se a Rua 15 de Novembro. “A partir de lá, já era a praia. O espaço em que se encontram o mercado de ferro e as barracas atuais foi aterrado somente no século XIX. O Ver-o-Peso era um complexo comercial que congregava vários estabelecimentos, assim com as feiras, as vendas de peixe etc. Por lá, chegavam as mercadorias vindas da Europa (bolacha, soda, vinho, sabão, enlatados) e também partiam os produtos regionais (ervas, frutas e sementes, que eram consideradas as ‘drogas do sertão’, como o cumaru, por exemplo). O mercado também tinha a importante missão de escoar toda a produção das ilhas (açaí, peixe, farinha, beiju)”, conta Figueiredo. 

Um nome de peso

Foi da organização desse comércio que derivou o nome que batiza o complexo. Como os mercadores não dispunham de balanças próprias, existia a “Casa de Haver o Peso”, um espaço público, no qual se conferia a pesagem de todas as mercadorias que entravam e saíam da cidade. “Foi daí que, com o passar dos anos, toda aquela área passou a ser chamada de Ver-o-Peso. Os dois mercados de ferro - o de peixe e o da carne - só foram construídos no final do século XIX e início do século XX, já na intendência de Antônio Lemos. O de peixe foi produzido na Inglaterra e veio desmontado para Belém”, afirma o pesquisador.  

Quase quatro séculos se passaram do que se considera o marco de fundação de um dos principais cartões postais da capital paraense e o Ver-o-Peso transcendeu a sua função inicial. Além de incorporar o comércio de outros produtos, como roupas, panelas, eletrônicos chineses, CDs – acompanhando a movimentação do mercado e dos consumidores -, também conquistou uma posição especial na memória afetiva dos belenenses e o status de ponto turístico, que atrai viajantes do mundo inteiro. “O Ver-o-Peso representa o ‘ethos’ paraense, destaca nossa maneira de ser, a nossa cara. Lá, a gente pode ver como o caboclo fala, os costumes, a forma que tomamos açaí, a brincadeira do futebol no dia seguinte ao RexPa. Vários elementos da cultura paraense estão reunidos ali”, arremata Figueiredo.

Comer e beber, comprar e amar 

Lucilene Gonçaves Torres tem 55 anos. Há 25, trabalha vendendo comida no Ver-o-Peso. A ‘boieira’, que começou vendendo churrasquinho, agora é uma chef premiada. Em 2018, ganhou o primeiro lugar do Prêmio Nacional Dólmã – Edição Fortaleza, na categoria estadual. Para conquistar os jurados, ela usou o mesmo segredo que fidelizou os seus clientes em Belém: a combinação entre a qualidade do pescado regional com a diversidade das frutas amazônicas. “Tenho dois boxes no Ver-o-Peso e montei um cardápio especial com 15 pratos diferentes, todos produzidos com frutos do mar. O turista não vem aqui pra comer carne, né?”, constata.

Dona Lúcia, como é mais conhecida na feira, conta que entre as delícias mais procuradas pelos fregueses estão o “Sabor do Pará”, prato de dourada frita com molho de castanha-do-Pará, a mariscada paraense e a farofa de jambu com camarão regional. “Sempre crio coisas novas, reduções, cremes e molhos com os nossos ingredientes. Eu me realizo fazendo isso e fico ainda mais feliz com a resposta dos clientes”, revela. Quando perguntada se gosta de trabalhar ali, a cozinheira dispara: “Eu amo! Costumo dizer que moro no Ver-o-Peso e durmo na minha casa. Chego às 7h30 da manhã, compro os ingredientes aqui, tudo fresquinho, e começo a preparar, com apoio da minha equipe”. A movimentação diária é tão grande que ela precisa de seis ajudantes.

O analista de sistemas Luzio Filho, 35 anos, também bate ponto no Ver-o-Peso, pelo menos, duas vezes por mês, sempre aos sábados. Ele mora no bairro do Parque Verde e prefere ir até lá para comprar peixes frescos e com preços mais acessíveis. Além disso, reserva um dia para almoçar e beber com a esposa e amigos na área de alimentação da feira. “Para mim, o Ver-o-Peso é a cara de Belém. É o nosso mais valioso - e icônico - cartão postal, apesar do relativo abandono pelo poder público. Ali consigo respirar a cidade onde nasci e ver as mais variadas representações sociais e culturais que se agregam para formar nosso povo. Dos trabalhadores diversos aos frequentadores peculiares. Do carimbó ao brega que tocam nas ‘bikes-sons’. O ambiente é contagiantemente feliz”, conta Luzio.

image Luzio Filho (acervo pessoal)

 

Quem também se contagia pela diversidade de sabores que o Ver-o-Peso oferece é a advogada e gastrônoma Adriana Nobre, 36 anos. Nascida e criada na capital paraense, ela costuma ir à feira aos finais de semana. Além comprar iguarias para a suas receitas, gosta de andar entre as bancas, conversar e escutar as histórias dos feirantes. “Frequento o Ver-o-Peso há mais de 10 anos. Desde que a minha paixão por gastronomia surgiu, passei a me interessar mais por feiras e mercados, sendo que o nosso tem um contexto todo especial, por ser um dos mais antigos do Brasil. É muito mais do que um mercado público, é um verdadeiro complexo de culturas, de arquiteturas, de sabores, de cheiros, de realidades que se contrastam. Sempre tem algo a desvendar e experimentar por lá e isso me encanta”, diz.

image Adriana Nobre (acervo pessoal)

 

Bem na foto, nas entrevistas e nas reportagens

Apesar de uma certa sensação de insegurança para quem visita, as cores do Ver-o-Peso convidam a sacar o celular e fotografar tudo. Para se ter uma ideia, no fechamento desta matéria, a mais popular rede social de compartilhamento de fotos registrava cerca de 44 mil imagens publicadas usando a hashtag #veropeso. São selfies com as poções das erveiras, registros de peixes, de “garças namoradeiras” em ângulos e filtros que enaltecem o belo que há “no meio do pitiú”, como bem pontuou a cantora Dona Onete, uma das artistas que tiveram o complexo como cenário de seus clipes. Se as imagens de smartphone já encantam, quando os fotógrafos profissionais enquadram detalhes do Ver-o-Peso, aí a poesia entra em preamar. Prova disso são as obras assinadas por Luiz Braga e tantos outros nomes importantes da fotografia paraense.

“Por mais que algumas pessoas sintam algum desconforto, pela insegurança ou pelo odor dos peixes, aquele espaço é muito atraente. Lá, a gente encontra uma infinidade de produtos amazônicos e muita humanidade também. Isso acaba nos fazendo esquecer esses problemas. As cidades com potência e cultura pulsante não são excessivamente limpas, como é o caso do Cairo, no Egito, e de alguns lugares da Índia. Talvez seja tudo isso que atraia tanto a atenção de turistas e da imprensa nacional e internacional. Uma feira com quase 400 anos tem muita ancestralidade. É preciso ter bastante cuidado ao mexer na lógica do Ver-o-Peso. Não se pode criar barreiras arquitetônicas, ali é um lugar de inclusão”, conclui o historiador Aldrin Figueiredo.

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