Nazaré, o clarão da lua

Nascida no Acre, no Xapuri, Nazaré é conterrânea de Chico Mendes

Camila Passos
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A voz é um convite ao salão. Talvez porque o sotaque e o arrastar da sandália no contratempo do xote chiem em uníssono - “cheirando a flor, cheirando a açucena” -, ou porque o timbre inconfundível nos coloque de pronto uma saia rodada para ondular sob o comando do curimbó.

Nazaré Pereira tem um pouco disso. Tem som de casa, de aconchego e memória afetiva. Com mais de 40 anos de carreira, é até difícil separar a história da cantora e compositora do nosso próprio registro cultural, marcado por canções que ficaram eternizadas no seu cantar limpo e direto, como quem fala com a gente. Curiosamente, esse laço foi atado de longe: ela mora na França desde a década de 70, mas o coração nunca saiu daqui.

Nascida no Acre, no Xapuri, Nazaré é conterrânea de Chico Mendes. Filha de pai seringueiro e mãe lavadeira, ganhou o mundo com a identidade amazônida em riste - numa época em que ninguém ouvia ou celebrava nossas vozes. Foi atriz, participou de novelas, trabalhou com Leila Diniz, compôs com Luiz Gonzaga, ensinou Paris a dançar e a simular um idioma híbrido - assim como ela, entre o francês e o português - para cantar junto as suas canções.

Sua militância cultural em prol da Amazônia lhe rendeu, em 1979, a medalha “Chevalier des Arts e des Lettres”, recebida das mãos do então ministro da cultura francês Jack Lang - no mesmo evento que condecorou Chico Buarque e Jorge Amado. A descoberta de um universo muito maior que o seringal de onde saiu acabou por fixar ainda mais o amor por suas raízes. Nas suas músicas, o cotidiano da vida simples e as referências que nos são tão caras seguem pautando o lirismo e o ritmo dançante que lhe fizeram famosa. É quase como um Gonçalves Dias: apesar de feliz e realizada no Velho Continente, a cantora e compositora sabe que as aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá.

De qualquer forma, Nazaré não vive de memória: segue trabalhando intensamente e com entusiasmo. Imersa no processo de gravação do seu 19º disco, ela veio a Belém para visitar a mãe, matar as saudades da família, ser premiada pela sua relevância ao estado do Pará e, de quebra, pisar o palco que tanto lhe completa. No meio da correria, atendeu nossa reportagem por telefone. Com simplicidade e simpatia, ela conversou com a gente sobre a carreira e o equilíbrio entre os dois universos que nela habitam.

image Nazaré já foi atriz de novelas e trabalhou ao lado de Leila Diniz e Luiz Gonzaga (Estúdio Tereza & Aryanne)

Troppo + Mulher: Qual o significado de estar em Belém na semana do aniversário da cidade? Você veio especialmente para fazer o show comemorativo?

Nazaré Pereira: Na verdade, eu vim por dois motivos. Primeiro, pra visitar minha mãezinha que tá com a saúde debilitada. Ela já tá com 99 anos, viveu muita coisa, e eu vim pra dar amor a ela. Foi mãe muito nova, com 17. Me teve com 20. Então eu precisava fazer essa visita. E o outro motivo é que vim gravar as bases do meu próximo disco, que vai sair pela Natura Musical. Só devo vir gravar valendo em junho, julho, pra poder lançar mais perto do Círio.

Além disso, também vou receber [A cerimônia de entrega da medalha ocorreu no sábado, 12, à noite. Nazaré conversou conosco três dias antes], com muito orgulho, a medalha [do mérito Francisco Caldeira] Castelo Branco. É uma coisa muito importante pra nós, que trabalhamos com a cultura da nossa terra, né? Aí aconteceu de ter essa data especial e haver um espaço pra gente realizar o show no Sesc Boulevard [o show realizou-se na noite passada, dia 12, também]. Foi um arranjo feliz em que deu certo pra que isso acontecesse. Vou estar com minha banda aqui, que eu chamo de Banda Veloz: Mário Mouzinho, Davi Amorim, Rafael Barros, Heraldo Santos e Príamo Brandão. Como é um show de teatro, vou cantar coisas menos dançantes, mas que permitam que as pessoas sintam a poesia.

T+M: Você já vem trazendo coisas do disco novo nessas apresentações?

NP: Só uma música, por enquanto. Uma música nova, que conta sobre como eu era quando era mais nova. Sempre gostei muito de dançar, era muito espevitada, namoradeira. Dançava com os rapazes mais bonitos das festas (risos). Por isso, surgiu a música “Nazinha Pé-de-Valsa”. É um xote, e acho que o público vai gostar. Mas fora isso, ainda não trouxe o repertório do disco. Nem o nome dele eu tenho como te adiantar, porque ainda não fechamos. Mas quero que seja algo sobre sentimentos, sobre ser sentimental.

T+M: Esse apelo emocional tem a ver com a saudade daqui?

NP: É exatamente sobre isso. Eu sinto sim, muita saudade. Saudade da minha terra, da minha casa, de família. Saudade da minha irmã, da minha mãe, “Dona Maria, minha mãe morena”. Desse contato mais pertinho da nossa cultura. O disco tá bem variado e faz um apanhado disso. Tem carimbó, tem axé, tem xote, tem vários ritmos. Nunca gostei dos rótulos. Dessa coisa de “ah, você é uma cantora de MPB”. Claro que eu sou! Qualquer música popular é uma MPB. Não tenho nenhum preconceito com música, principalmente quando se trata da música daqui. Eu só não me sinto tão próxima do brega, mas não porque eu não gosto. É que eu não vivi essa época. Mas gosto de tudo que é bem feito; e tudo que é feito com o coração é bem feito.

T+M: Você mora na França há quanto tempo?

NP: Vai fazer 40 anos já. Ih, mana, não me envelhece (risos)!

T+M: E como as pessoas recebem a nossa música lá? Como é seu intercâmbio com esse universo diferente que também passou a ser seu?

NP: Eu fiz questão de manter a minha carreira essencialmente em português. Não abri mão da minha língua, das minhas raízes, em nenhum momento. E eu sou atriz, né? Costumo dizer que eu sou uma atriz que canta. E eu também danço, fui professora de dança por 11 anos lá na França. Então eu acabo fazendo das minhas apresentações uma coisa encenada, pra que eu possa ser compreendida por quem não fala português, seja pela dança ou pelos movimentos corporais. Sou sempre recebida com muito carinho. Quando eu cheguei na Europa, as pessoas não ouviam muita coisa daqui. Ouviam bossa nova, coisas assim. Eu fui pra lá levando outro Brasil. Levei Luiz Gonzaga, o Gonzagão, pra cantar em Paris. Compusemos juntos a música “Acre Doce” pouco antes disso. Então fiquei conhecida e fiz carreira por lá, mas com muito orgulho de ter nascido no Xapuri, de ter sido criada aqui. De ser a paraense mais acreana que existe (risos).

T+M: Se é a atriz que alimenta a cantora, onde entra a compositora Nazaré Pereira nessa equação? O que te motiva a compor?

NP: Sim, ainda tem a compositora! Eu faço música pra falar da minha realidade. Não escrevo sobre o que eu não vivo. Me baseio na minha própria história, na minha origem, nas coisas que gosto, nos meus sentimentos. Além disso, eu também tenho ótimos parceiros que compõem comigo, ótimos compositores que eu gravo também. No disco novo, por exemplo, vai ter uma música da pajé Zeneida Lima, lá do Marajó.

T+M: Depois de tanto tempo morando longe, mudou seu olhar sobre Belém? Você sente que volta pra cá com um olhar estrangeiro?

NP: De jeito nenhum. Sempre tive muita clareza disso: na França, as coisas são como são na França; em Belém, as coisas são como são aqui. Eu odiaria ser a pessoa que fica “ah, porque lá não é assim”, “ah, mas lá a gente faz de outro jeito”. Não dá pra comparar, são duas culturas totalmente diferentes, são únicas, e eu sou parte das duas. Não gosto quando usam alguma coisa de lá pra criticar aqui. Por exemplo, isso de “porque o brasileiro, o paraense está sempre atrasado”. Eu sou muito pontual, mas não foi a França que me deu isso. Eu sou assim porque sempre fui.

T+M: O que tem nos planos para o futuro agora, depois do disco engatilhado?

NP: Esse é meu disco de número 19, fora os que eu gravei pra criança, com temática infantil. Queria que o vigésimo fosse um disco só de canções de ninar. Já tenho boa parte do repertório prontinha. Tem muita coisa pra fazer ainda, mana (risos).

T+M: Em 2017, você teve um trecho de uma música sua sampleada no rap americano “Who’s Stopping Me”, de Big Sean e Metro Boomin. Como foi a sensação de se ouvir dessa maneira?

NP: Menina, mas tu sabes que esses americanos são danados pra encontrar e fazer essas coisas, né (risos)? Eles colocaram um pedaço de Clarão de Lua, que é do Almirzinho Gabriel, e foi a música que me abriu as portas nos Estados Unidos. É bem diferente, né? Nunca esperava que isso fosse acontecer… Mas minha música já tinha tocado nos Estados Unidos. Um tempo atrás, a [gravadora] Putumayo colocou várias músicas minhas em coletâneas que foram pra lá.

T+M: Quando você pensa na sua infância no Acre, você se imaginava chegando tão longe?

NP: Não tinha nem como. Meu pai era seringueiro e morreu quando eu tinha quatro anos. Meu padrasto também era seringueiro, depois foi carvoeiro. Minha mãe foi lavadeira, foi costureira. Vim de uma infância muito pobrezinha, lá no Xapuri. Depois vim pra cá, depois pra Europa. Lá também não foi fácil. Eu cantei muito no metrô pra ganhar moeda e comer, pagar minha estadia. Sair do seringal e chegar a cantar no Olympia de Paris não é pouca coisa. Já viajei com minha música por diversos países - na Europa, no Oriente Médio… no Canadá, eu cheguei a cantar pra 25 mil pessoas num estádio. Isso não tem quem pague. Tenho muito orgulho da minha estrada.

T+M: E o que te faz falta?

NP: Sinto muita saudade dos amigos que já foram. Tenho pensado muito nisso. Senti muito a partida do Emílio Santiago, que era um grande amigo. Mais recentemente, senti a perda da [cantora] Miúcha… Me doeu muito também perder o Kzam Gama [célebre músico paraense que faleceu ano passado]. Kzam trabalhou comigo por mais de dez anos. Sinto falta da voz dele me orientando, dando palpite. Me sinto meio perdida sem ele pra me guiar no estúdio. Mas falo com ele, pergunto pra ele se tá tudo certo e vamo embora. Certeza que ele está comigo nessa.

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