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“Não é não!” é sobre consentimento!

Lorena Filgueiras
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A entrevista com a advogada Natasha Vasconcelos, ativista e feminista, foi planejada e muito desejada por um ano, com recusas sempre muito gentis. Enfim, aconteceu. 
Articulada, ela conversou com a Troppo + Mulher ao longo de uma hora, em uma livraria no centro de Belém. Falou sobre tudo, mas só uma coisa a incomodou: ser fotografada. “Tenho problemas com câmeras”, afirmou com franqueza e, só no decorrer do papo, entendi o porquê. Jovem, mãe, esposa, filha e com tantos outros papeis, Natasha dá conta de todas as responsabilidades, mas não abre mão do debate aprofundado e com objetivo de contribuir para reescrever o repertório opressivo contra a mulher. Atualmente, a advogada feminista é presidente da Comissão da Mulher Advogada da OAB-Pará, além de ser advogada, especialista em Direito Público, Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFPA, integrar a Rede de Pesquisa em Feminismo e Política e a Rede de Juristas Feministas da FEMDE. Parece muita coisa? Acrescente aí ser mãe de dois bebês, curadora e criadora de conteúdo para perfis de políticas feministas. 

Nossa conversa abordou, dentre vários assuntos, o movimento “Não é Não!”, de combate ao assédio e importunação sexual às mulheres. “Carnaval é o período perfeito para se debater consentimento”, afirmou. Falamos ainda sobre o Feminismo, políticas públicas voltadas às mulheres e o momento atual político e social brasileiro – uma entrevista esclarecedora e muito necessária aos tempos atuais.  

Troppo + Mulher: A Simone de Beauvoir dizia que “não se nasce mulher: torna-se mulher”. A mulher torna-se feminista?
Natasha Vasconcelos: O feminismo não apareceu como uma possibilidade na minha criação e apesar de achar que a sociedade ainda tem muito medo do feminismo, eu consigo notar que já existem meninas se dizendo feminista cada vez mais cedo – seja porque não aceitam mais as caixinhas limitantes de gênero, seja porque cada vez mais as mães solo são referências de poder familiar. Tornar-se mulher é um processo que ocorre primeiro de fora pra dentro porque essa autodescoberta nos é negada. Esse processo é contornado por padrões patriarcais que controlam e domesticam os corpos femininos (e aqui entra também homens que performam feminilidade), é por conta dessa tutela que dizemos que ser feminista é uma resistência, porque surge desse descobrimento de si que passa a dizer rejeitar esses padrões opressores. 

T+M: Cada vez que a Damares [Alves, ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos] faz uma declaração, como a de que os índices crescentes de violência sexual contra as meninas dão-se em função da ausência de calcinhas para vestir. Quando ouves declarações desta natureza, o que passa na tua cabeça?
NV: Eu encaro com seriedade o que a Damares fala, por ter um estudo na área consigo enxergar os estigmas e as nuances presentes nessa narrativa, é uma narrativa inteligente, porque é rasa e reproduzida sem maiores questionamentos pela sociedade em geral. É muito importante que sejamos capazes de perceber que essa narrativa integra um projeto político. Ela estar onde está, a história dela, o fato de ter visto “Jesus na goiabeira” e apelar para toda essa subjetividade da espiritualidade das pessoas... é uma estratégia muito inteligente e quase incontestável e habita o subconsciente das pessoas. Quando a Ministra diz que “homens vestem azul e mulheres, rosa” é a simbologia que traduz os papeis tradicionais dos gêneros na sociedade. Quando ela fala, por exemplo, da distribuição de calcinhas para combater crimes sexuais contra crianças no Marajó... ainda que a mídia tenha notificado isso de forma bem sensacionalista, houve, sim, essa sugestão enquanto política pública alternativa. Isso não deveria aparecer, em nenhuma hipótese, quando se fala sobre crimes sexuais na região do Marajó, cuja maior parte de seus municípios integra a lista de menores IDH [índice de desenvolvimento humano] do Brasil e concentra um foco alarmante de exploração sexual e de crianças que são levadas à prostituição em troca de comida, de sobrevivência. Em parte da entrevista, a ministra chega a culpabilizar as vítimas por não usarem calcinha, o que nos remete a um poderoso estigma que envolve crimes de estupro: como a vítima estava vestida. Recentemente, com os casos dos crimes de estupro em Marituba, voltou a circular nas redes sociais, um guia de “defesa e alerta” para mulheres na ocupação do espaço público, que reforça todo esse projeto político de subjugação de mulheres, ignorando o fato de que 81% dos casos de violência sexual acontecem dentro de casa, envolvem parentes e conhecidos, vitimando, em sua maioria, crianças menores de 13 anos. É um projeto político colocar a culpa na vítima – e não na discussão dessa sexualidade, da masculinidade, dessa hierarquização da mulher na sociedade, que é a perspectiva que o feminismo traz para pensarmos sobre essa condição. 

image Natasha Vasconcelos (Dudu Maroja)

T+M: Há alguns dias, o deputado Jessé Lopes [PSL] declarou que as feministas e o próprio movimento do “Não é Não” queriam tirar o “direito de a mulher poder ser assediada” no Carnaval e a folia tá aí, na porta... Então eu quero muito saber como estão, se existem, as políticas públicas voltadas às mulheres? 
NV: O avanço do conservadorismo, aliado ao fundamentalismo das últimas eleições, acende o debate feminista nos movimentos, nas ruas e na mídia. Sempre que tem uma ameaça muito grande de retirada de direitos, existe também um fortalecimento desse movimento de resistência. Lembro de na época das eleições ter visto uma análise de mapeamento de propostas referentes a mulheres nos planos e diretrizes de governo [DivulgaCandContas – TSE] e dos 13 candidatos à presidência, 4 mal citaram o termo “mulher” em seus planos de governo e apenas 5 apresentam propostas concretas. O ranking é o seguinte: no de Guilherme Boulos (PSOL), aparece 125 vezes; Ciro Gomes (PDT), 41; Fernando Haddad, (PT) 29; João Goulart Filho (PPL), 20; Marina Silva (Rede), 9; Vera Lúcia (PSTU), 4; Geraldo Alckmin (PSDB), 2; Henrique Meirelles (MDB), 2; Jair Bolsonaro (PSL), 1. Nos planos de Álvaro Dias (Podemos), Cabo Paciolo (Patriota), José Maria Eymael (DC) e João Amoêdo (Novo) não aparece o termo mulher. Se a definição clássica de política pública é o que o governo escolhe ou não fazer, é perceptível, desde a campanha, que políticas públicas para mulheres, que são 52% da população, não estão nos planos de governo. E tem uma outra questão: a sub-representação de mulheres na política! Então a gente tem, por exemplo, no Parlamento, entre 12 e 15 por cento de mulheres. Está mais que comprovado, nos estudos legislativos sobre a participação de mulheres na política, que a sub-representação dificulta a produção de políticas públicas e legislação que versam sobre os direitos das mulheres. Em 2019, a Organização de mídia Gênero e Número fez um levantamento sobre a produção legislativa das deputadas no Congresso Nacional. Contabilizaram 511 projetos e apenas 39, ou seja, 7% versavam sobre os direitos das mulheres. E a maior parte deles não discutia aspectos de prevenção e conscientização e sim questões de segurança pública, tais como repressão, punição... Essa também é uma problemática! Dados do IBGE apontam que apenas 18,7% das cidades do estado do Pará possuem organismo executivo de políticas para mulheres. Em 144 municípios, apenas 27 tem serviços específicos voltados para as mulheres.

T+M: Quase vinte por cento...
NV: Esses números recentes do IBGE indicam a desmobilização dos órgãos nos últimos seis anos. São só 18,7% dos municípios do estado que possuem organismo executivo de políticas para mulheres, em 2013 eram 25%.  A mesma pesquisa aponta que apenas 16 municípios paraenses contam com serviços de atendimento à violência sexual e 17 possuem delegacias especializadas.

T+M: Percebo que muitas mulheres ainda rechaçam o feminismo. Por que isso ocorre ainda? Mais ainda: na tua visão, por que o movimento é tão necessário às mulheres?
NV: Primeiro ponto: Rechaçar o feminismo é uma estratégia muito bem-sucedida do patriarcado. Porque ele mina qualquer tipo de unificação de mulheres e é nessa lógica que a estratégia de competição feminina funciona muito bem, sempre para atender um padrão masculino. Estamos acompanhando esse movimento acontecer com as mulheres do BBB20 que, ao identificarem uma estratégia patriarcal tomando forma de um plano de deslegitimação de mulheres, resolveram se unir, ainda que elas não concordem sobre tudo, para derrubar aquela lógica de jogo: o jogo masculino. O jogo do patriarcado, muito bem colocado por alguns brothers: queimar para destruir. Porque sabem que o julgamento do público sobre a mulher é muito maior e destruidor do que aquele que recai sobre o homem. A lógica no plano político e social é a mesma. Lembra da fala da Michelle Willians, no Globo de Ouro, sobre a participação dos homens na política? Ela disse que os homens votam de acordo com seus próprios interesses e que eles têm feito isso há anos! E, por isso, o mundo se parece tanto com eles. E faz uma convocação para as mulheres do seu país, que também são maioria do eleitorado, assim como em quase todos os países do mundo. O feminismo desnuda todo tipo de socialização que tivemos desde crianças. Não só a gente, mas nas gerações passadas. Então, se qualquer questão desconhecida já é difícil de lidar, imagina uma que reestrutura esses paradigmas?!? 

T+M: Já sofreste algum tipo de ameaça ou violência por tudo pelo qual lutas?
NV: Todos os dias e de diversas formas.

T+M: O Direito está pronto para abraçar o Feminismo?
NV: Não, não está. Eu acho curioso que as pessoas achem que os profissionais do Direito deveriam ter uma mente mais aberta. A verdade é que o nosso Direito é muito conservador. Desde as vestimentas até a oratória, numa lógica hierarquizada de poder. Por isso demarco que a perspectiva teórica na defesa dos direitos das mulheres é feminista – você goste ou não. Aqui [na OAB-PA], nós temos uma vice-presidente mulher, que é a doutora Cristina Lourenço. Tanto o presidente, quanto ela, reconhecem que o trabalho desenvolvido pela Comissão é um trabalho com fundamento teórico sério e que tem apresentado resultados na comunidade jurídica local: “Na Comissão fazemos um trabalho de Advocacia Feminista!”. Entendemos que não há outra maneira de romper as violências de gênero se não for desta maneira. Pra você ter uma ideia, o de Plano de Valorização da Mulher Advogada, que traça diretrizes para o fortalecimento dos direitos humanos da mulher e valorização da mulher advogada, é de 2015! 

T+M: Conversávamos um pouco antes e mencionaste que muitas das vezes tens de encarar e apurar essas denúncias de crimes sexuais, em que meninas são violentadas por familiares, em suma, gente da confiança delas. Te emocionas ao confrontar essas ocorrências?
NV: Olha, Lorena, eu preciso ser muito sincera contigo. Não vou te dizer que eu não emociono – mas eu me revolto muito mais que me emociono! Antes de assumir a Comissão, eu lia nos jornais e acompanhava desta forma. No momento em que passo a me colocar como uma ativista, que me coloco para debater junto ao parlamento, aos movimentos, nas redes digitais e nos conselhos, essas denúncias passam a chegar diretamente para mim. Se eu te mostrar meu celular...

T+M: Dizes isso porque precisaste ter sangue frio ao longo desses dois anos, imagino...
NV: Isso! Começo a pensar de forma muito pragmática: “isso aconteceu, é o crime tal e o que eu preciso fazer para encaminhar essas demandas?”. Cheguei a fazer um cálculo. Geralmente eu respondo todas as mensagens no WhatsApp aos domingos, porque não tinha condições de responder ao longo da semana e comecei a fazer uma métrica: entre violências e crimes sexuais, recebo 15 denúncias por semana, só no meu celular. São pessoas que não chegam nem a procurar outras esferas e vêm diretamente a mim.

T+M: Nossa, é muito alto. São 60 denúncias por mês, ou seja, dois por dia.... oficialmente!
NV: Então, de um tempo para cá, eu já olho esses casos com a necessidade de encaminhá-los. Eu sei que mais da metade dos casos de violência sexual é contra menores de 13 anos. Já sei que a maior parte dos casos ocorre dentro de casa. É um absurdo imaginar, como tentam idealizar, que o estupro ocorreu em uma rua vazia e escura! Não é essa a realidade. E talvez essa seja a maior ofensiva contra os estudos de sexualidade, de gênero, tanto dentro das escolas, quanto das Universidades. Recentemente, o MEC pediu um levantamento das pesquisas de gênero. Para que você acha que foi feito pedido esse levantamento? É ofensiva mesmo! A gente tende a encarar, equivocadamente, sexualidade como sexo e a sexualidade tem um conceito muuuuuito mais amplo. Quando eu estive no Senado, fazendo uma pesquisa para meus estudos, lembro de que apareceu uma Comissão externa de fiscalização de gênero. Eu estava numa sessão sobre gêneros alimentícios e a comissão queria que retirassem a palavra “gênero” daquele projeto de lei. Olha que loucura! Essa ofensiva é muito, muito maior e dificulta que as pessoas possam compreender que o machismo é uma ideologia de gênero, não o feminismo. 

T+M: Por tudo isso, sentes medo do momento atual brasileiro?
NV: Eu sinto medo, mas não podemos deixar o medo paralisar a gente. Eu aconselho aos colegas acadêmicos que não fiquem enclausurados. Que peguem seus estudos e levem para além dos muros da Academia. A sociedade precisa desse diálogo. Teoria e prática precisam sim caminhar juntas e podem ser construídas de diversas formas, ainda que a universidade não as reconheça, não desistam.  

T+M: E como lidar com essa ofensiva?
NV: Sabe, eu já sou muito exposta, por integrar a Comissão e por ter o perfil @politicaparamulheres na internet. Especialistas em redes digitais recomendam sempre dar uma cara ao projeto e aparecer. E é verdade: quando eu mostro a minha cara, muito mais mulheres aparecem, o alcance aumenta. Mas surgem muitas ofensivas, ameaças, ataques. Eu já não atendo mais telefonemas não identificados. E vou tentando identificar meus limites, entre uma batalha e outra. Eu sou muito a favor de que as pessoas sérias e que têm informações consolidadas, usem as redes sociais para combater essa desinformação como projeto político e o esse desmonte do projeto educacional democrático, plural, inclusivo e gratuito que certamente prejudicará uma geração inteira. 

T+M: Já consideraste a possibilidade de abraçar a carreira política?
NV: Não é o que eu quero, não dentro de uma política partidária. Eu tenho uma qualidade: sou uma pessoa agregadora e prefiro utilizar dessa habilidade para alcançar mais pessoas a me inserir ali [na política] e polarizar talvez. Política eu já faço em qualquer lugar, prefiro fazer isso na advocacia e poder lutar pelos direitos das mulheres nessa esfera.  

T+M: És mães de dois meninos, não é?
NV: Dois meninos lindos [ela ri].

T+M: Como fazer com que eles não tenham uma masculinidade tóxica?
NV: Venho de uma família muito matriarcal, minha mãe, minhas tias, minha avó. Minha mãe me criou para ser independente, mas não feminista. Ela reproduz tudo e embora ela tenha sido um ponto fora da curva, ela quer que eu siga um padrão. Com as crianças, acho que falta a gente criar repertórios, diálogos. Dia desses, meu filho mais velho, que tem 3 anos de idade, me perguntou: “mamãe, o que é um beijo gay?”. Eu sabia que essa hora ia chegar, mas não imaginava que seria com 3 anos de idade! Não tinha me preparado... Gosto de categorizar as coisas. Tanto que filmei e coloquei na minha rede social. Peguei o boneco do Batman, o do Homem aranha e a Mulher maravilha. Botei os três na frente dele e perguntei: “quem namora a Mulher maravilha?”. Ele respondeu: “o Batman”. E eu perguntei: “e se o Batman namorasse o Homem Aranha?” Ao que ele disse: “não pode”. “Por que não pode?” “Porque ele é menino, mãe”. Ou seja, mesmo não tendo essas categorias dentro de casa, o repertório ao qual ele é exposto é heteronormativo e violento. Expliquei para ele que se eles se gostassem, eles podiam se beijar. Não gosto e não uso o termo “beijo gay” porque a expressão, em si, é preconceituosa. Beijo é entre pessoas. Se não tem “beijo hétero”, não tem porque ter “beijo gay”. Anormal pra mim, sendo bem franca, é a ideia de super herói, até porque eles não existem! [ela cai na gargalhada]

T+M: Falando do carnaval, que está na porta, quais são as violências mais comuns contra as mulheres? Indo um pouco mais além: as mulheres têm noção dessas violências?
NV: Existe um livro chamado “Mãe de todas as perguntas”, que é um livro que compartilha vários relatos, de vários países, sobre violência contra mulher. Nele, a Rebecca Solnit, diz que o silêncio sempre acompanhou as histórias da mulher. Nós, mulheres, fomos educadas a dizer não. “Diga não, mesmo querendo dizer sim”; “não beije no primeiro encontro”, “não dê para ele no primeiro encontro”. É a domesticação da sexualidade e dos corpos. Se a gente imaginar que o não sempre foi a nossa forma mais adequada de socializar, é muito simbólico que o coletivo “Não é Não” distribua essa tatuagem. Porque se a mulher quiser, ela pode beijar. Mas a tatuagem não é sobre a minha vontade, que será certamente conhecida numa troca de olhares, na conversa, nos gestos, na reciprocidade! É sobre a vontade do outro de passar por cima do meu consentimento. Os índices de estupro, no Carnaval, são altíssimos. A ideia não é sobre a mulher querer beijar ou transar. O mote do “Não é Não” é sobre consentimento! A gente precisa voltar a discutir consentimento. Beijar não é autorizar a passar a mão no meu corpo. Recentemente o deputado do PSL colocou o assédio como um direito da mulher. É preciso demarcar que ele confunde claramente o assédio com paquera. Não tem espaço seguro para a mulher. Acho que nem todo mundo consegue entender isso. Se eu pudesse deixar uma mensagem importante sobre isso, que seja “Carnaval é um momento muito propício para se discutir consentimento!”.

T+M: Se a mulher for vítima de algum tipo de violência durante o Carnaval, como ela deve proceder?
NV: A ideia da tatuagem “Não é Não” apenas para mulheres e mulheres trans é justamente criar essa rede de apoio. As mulheres se veem no bloco e isso cria uma rede de acolhimento e apoio. O crime de importunação sexual é recente. Antes era considerado uma conduta de menor potencial ofensivo inerente à folia. Se muitas delegacias ainda deixam a desejar no atendimento, com perspectiva de gênero em crimes de violência doméstica, feminicídio e estupro, avalie as denúncias de importunação sexual – tema que ainda não teve um amplo debate social sobre. A lei não se operacionaliza sozinha – ela precisa desses operadores, que têm uma perspectiva histórico-social pautada em desigualdades de gênero. De toda forma, política pública é feita com base em dados e demandas. Sendo assim, não deixem de acionar a Polícia por meio do 190, porque com a lei, o flagrante é uma possibilidade. E também procurem a Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher do município onde ocorreu o fato ou o Plantão Especializado da Mulher que funciona 24 horas, para registro do Boletim de Ocorrência.

T+M: Se a mulher não se sentir segura, como ela pode buscar ajuda?
NV: Se estiver em locais públicos é importante acionar pessoas responsáveis pela segurança do bloco, da festa, pedir para chamar organizadores do evento, acione a Polícia através do 190, compartilhe sua localização com pessoas de sua confiança, registre tudo que puder. 

Troppo + Mulher: Voltando ao assunto, Natasha, por que o feminismo ainda é tão rechaçado?

Natasha Vasconcelos: Eu entendo que as pessoas tenham receio, mas é preciso que se diga que não existe apenas um feminismo: existem vários, até porque não existe uma única categoria de mulher! E eles têm diversas frentes, enfrentam as mais diversas problemáticas sociais: desde a luta pela sobrevivência, como é o caso das mulheres negras que estão situadas na base da pirâmide social, e que, a depender do engajamento político, se veem mais representadas num homem negro, do que numa mulher branca, e que demarcam a necessidade de pautas interseccionais, porque têm também os atravessamentos de raça e classe (dentre outros) na sua realidade. A luta das mulheres lésbicas, que enfrentam rotineiramente o estupro corretivo, como forma de apagamento de sua sexualidade; tem as feministas radicais, no enfrentamento dos crimes sexuais contra crianças, adolescentes e numa posição extrema e inegociável contra pornografia e prostituição; as mulheres indígenas, que são completamente invisibilizadas pelos estudos e pelas pautas de mulheres e que resistem desde ao estupro, como estratégia de guerra para colonização, até a tomada das suas terras e morte de seu povo e também de sua ancestralidade; as mulheres deficientes, encarceradas, idosas, trans e tantas pluralidades que são invisibilizadas dentro desse processo de hierarquização e subalternização de corpos – e que precisam de uma chave de compreensão da realidade que não as oprima. Para todas elas, o feminismo aparece como essa possibilidade. Esse ‘desconhecido’, que chega para reestruturar tudo que gente acreditou até hoje, assusta. Demarcar a minha atuação, seja na política ou na Advocacia como feminista, é uma forma de não esvaziar essa luta política coletiva. Ele pode ser momentaneamente desvirtuado, com viés comercial ou midiático, mas ele é um movimento político que busca romper com a subjugação e hierarquização impostas às mulheres da nossa sociedade.

T+M: As conquistas relacionadas às políticas para mulheres são bem recentes, não?  
NV: Exato! A Fast food da Política é uma ONG que trabalha com informações políticas e que tem um “jogo” chamado “Direitos e Silêncios”, que busca, por meio de cartas, mostrar quão recentes são algumas dessas práticas para as mulheres. A flexão das profissões, para diplomas, começou a vigorar em 2012. Antes da lei as instituições utilizavam o gênero masculino para denominar profissão ou graduação. Essa discussão de gênero no direito é muito recente. As leis, o Estado e as políticas operam sob a lógica binária, a sociedade não.

T+M: Antes de eu entrar na questão do gênero, que é um assunto importantíssimo, gostaria de saber quais foram as principais conquistas da Comissão [que Natasha preside] desde que ela foi criada?
NV: Estou na Comissão desde fevereiro de 2018 e acho que o principal progresso é a desmistificação em torno do feminismo, de políticas feministas e de uma Advocacia feminista. Quando as pessoas me dizem que “o pior inimigo é o machismo” eu pondero essa máxima, dizendo que nosso maior inimigo é desconhecer os nossos direitos, capacidades e possibilidades. Tá certo que o machismo opera dentro desse sistema que quer fazer parecer que o Direito e as Instituições operam numa certa imparcialidade – ou como diz Elizabeth Souza-Lobo, “opera com categorias sexualmente cegas”. Mas não! A Comissão, nessa perspectiva, traz para a classe e sociedade civil, um outro olhar sobre o feminismo e que operacionaliza seus conceitos e métodos a partir de um diálogo com a sociedade, com instituições e com movimentos que integram essa luta coletiva de mulheres que querem mudar essa estrutura.

Para conhecer mais:

politicaparamulheres
https://benfeitoria.com/canal/naoenao

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