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Lia, joia rara

Lorena Filgueiras

Todo diamante já foi carvão. É o que afirma a Ciência, a respeito do carbono que, sob altíssima pressão do magma terrestre e depois de alguns (muitos) séculos torna-se uma das pedras preciosas de maior valor da humanidade. Até que se possa contemplar a beleza dessa joia da natureza, saiba que o percurso é longo: os especialistas dirão que a lapidação da pedra bruta agrega enorme valor, por valorizar a luz que – sozinha – emana. 

Não, este não é um tratado sobre joalheria ou gemologia, entretanto, o assunto é brilho próprio e dele entende bem a cantora Lia Sophia. 

Nascida na Guiana Francesa, para onde os pais rumaram visando um futuro melhor, mas sem muito êxito, a menina, batizada em homenagem à Santa Sofia, vivenciou privações enormes, como a de alimento e da falta de um teto. De volta ao Brasil, a família foi morar no Amapá, onde a vida melhorou, e, posteriormente, em Belém – onde Lia decidiu prestar vestibular para Psicologia. Em busca da própria sobrevivência, a menina de sorriso generoso e, ao mesmo tempo, tímido, ganhou a vida da maneira que era possível: foi frentista, vendeu livros de porta em porta e cantou em bordel.

Por tudo isso, Lia Sophia é diferente. Mas espere até que ela comece a cantar para confirmar o que eu digo. Sua voz a levou a destinos que ela jamais sonhara e conquistou alguns de seus ídolos, que se tornaram seus admiradores. Neste bate-papo, nossa entrevistada especial abriu o coração para falar dos planos adiados momentaneamente, em função da grande pandemia da Covid-19: dentre eles, revela com exclusividade, ter um filho com a esposa Taísa. Mesmo assim, ela continua fazendo planos, além de relembrar das várias fases de sua carreira.  

Troppo + Mulher: A pandemia colocou em compasso de espera muitos planos, ao mesmo tempo em que o isolamento tem proporcionado (ainda que de maneira inesperada e nada convencional) a possibilidade de fazer novos. O que você teve de adiar um pouco e o que pretende fazer no futuro? 
Lia Sophia: Esse momento de crise pegou a todos nós de surpresa. E para mim, além de vários shows adiados, indefinidos e cancelados, alguns planos foram junto. O primeiro – e mais importante para mim – era o plano de ter um filho, algo que eu e Taísa vínhamos planejando e adiando há algum tempo, mas que desde o final do ano passado nos organizamos para que esse fosse o ano... o que não mais será. Outro plano era ir a Portugal no meu aniversário, além da gravação de um novo clipe em Alter do Chão. Bem, tudo isso terá que esperar. Mas sei que ter esses planos e, na verdade, aumentar a lista de desejos e sonhos, me faz ter força e coragem para atravessar esse momento tão difícil para todos nós. 

“Dar certo significa ter sucesso financeiro? Significa ter fama? Significa ter satisfação pessoal? Para mim, o sucesso é algo muito particular, ele depende do objetivo, da meta que cada um se impõe”

T+M: Você fez Psicologia, vendeu enciclopédia, trabalhou em um posto de gasolina e – surpreendentemente – num bordel. Como a música entrou na sua vida? Em que momento você percebeu que era o que queria fazer? Especificamente no bordel, como essa experiência mexeu contigo?
LS: Eu venho de uma família em que a música sempre esteve presente. Minha mãe foi cantora de rádio, meu pai toca violão, meus irmãos também sempre cantaram e tocaram algum instrumento. Assim, aos meus 9 anos de idade, a minha mãe me presenteou com um violão porque ela queria realizar esse sonho através de mim. Ela sempre disse isso. E eu odiei essa ideia na época! [ela ri] Machucava os dedos e o meu professor era super exigente e eu, uma criança não queria tamanha responsabilidade. Eu já cantava na igreja (evangélica), desde muito pequena e quando toquei a primeira música no violão foi uma paixão absoluta. Mas, até então, nunca havia pensando nisso como uma profissão. Já passei por muitos altos e baixos na minha vida pessoal e na minha carreira. Comecei a tocar na noite dos bares da cidade de Belém aos 17 anos de idade, por necessidade de independência financeira mesmo. Não queria ser cantora. Meu sonho era ser psicóloga! Mas a necessidade de me manter financeiramente me empurrou para o trabalho com a música. Antes disso, acabei tentando outras maneiras, aí fui vender livros nas escolas... isso parece tão antigo! [ela cai na gargalhada] Também trabalhei num posto de serviços para carros. O primeiro lugar onde trabalhei cantando foi num bar-bordel. Eu achava que era um bar comum, mas com o tempo, percebi o movimento dos homens que frequentavam o lugar com as meninas que estavam sempre lá. Até que um dia, a proprietária do lugar quis taxar em 20% as gorjetas que eu ganhava sempre que atendia os pedidos de músicas dos clientes. Eram gorjetas boas, às vezes ultrapassavam o cachê que eu ganhava lá: 50 reais na época – para tocar durante 2 horas. Em muitas noites eu saía de lá com 400, 500 reais. É claro que me recusei ser taxada e não demorou muito eu saí de lá. Mas aprendi muito sobre como me relacionar com o público, sobre o poder da música na vida das pessoas e sobre como negociar o meu trabalho... enfim, foi uma boa experiência. Me formei em Psicologia pela Universidade Federal do Pará e nunca exerci propriamente, mas com certeza faço uso de todo o aprendizado nas minhas composições. Penso e clinicar um dia. Quem sabe... 

T+M: Mas sua mãe não queria que fosses artista, né? Como foi conduzir isso à época e em que momento ela aceitou que era tua vocação? E teu pai, como ele reagiu?
LS: O sonho da minha mãe era saber tocar violão, mas ela não conseguiu realizá-lo: realizou através de mim, como ela diz. Mas nunca desejou ou projetou que isso se transformasse numa profissão pra mim, sempre foi claramente contra. Ela e o meu pai sempre sonharam que eu fosse advogada e eu queria ser psicóloga. Mas as minhas escolhas acabaram me levando justamente para o caminho da arte. Quando eles viram que a minha vida ia caminhando bem com a música, passaram a respeitar a minha escolha e viveram boas emoções com as minhas conquistas. 

T+M: Qual foi o grande divisor de águas na sua vida, Lia? Digo, em que momento você sacou que estava no caminho certo e que daria certo? Foi aí que “aconteceu” a música “Ai Menina”?
LS: Eu entendi que a música era uma missão pra mim quando, logo no início, os meus shows lotavam e o feedback das pessoas eram “essa sua música fala de mim”, “ela marcou a minha história de amor”, “eu fico mais feliz quando te ouço cantar”. Isso me fez ter certeza de que o que eu fazia era bom, fazia bem para os outros e para mim. Isso foi bem antes da música “Ai Menina”. Já a certeza que isso “daria certo” envolve outras perguntas. Dar certo significa ter sucesso financeiro? Significa ter fama? Significa ter satisfação pessoal? Para mim, o sucesso é algo muito particular, ele depende do objetivo, da meta que cada um se impõe. Trabalhar com música para mim sempre foi de uma imensa satisfação pessoal e junto com isso eu tive a sorte de conquistar notoriedade e o meu sustento financeiro. Então, o sucesso existiu em alguns momentos e em outros, não, o que é normal. As metas, os sonhos, as exigências vão mudando com o tempo e o sucesso alcançado, já não satisfaz mais. Sempre se quer mais. 

T+M: És muito exigente, Lia? 
LS: Sempre faço um exercício de olhar a minha trajetória: quantas barreiras já superei, quantas conquistas, quantas pessoas são felizes com o meu trabalho, assim sou menos dura comigo e com o futuro. Me considero uma vencedora e sei que ainda tenho muito caminho pela frente e muito o que aprender. Posso citar alguns momentos marcantes para mim durante essa minha trajetória e que foram me sinalizando para seguir nesse caminho. Meu primeiro show no Teatro Margarida schivasappa, em Belém, [ocorreu em] uma noite de chuva forte que achei que não teria ninguém, mas fui espiar pela cortina e você não saberia dizer o que era cadeira e o que era chão, de tão lotado que estava! Belém me adotou como cantora paraense e tenho muito orgulho disso!!! Cantar com Nilson Chaves, Lucinha Bastos, Marhco Monteiro, Vital Lima, Pinduca, Fafá de Belém, Felix Robatto... Quando o Nelson Motta indicou na newsletter meu segundo disco “Castelo de Luz”, para os assinantes, com super elogios e tocou minha música na rádio. A repercussão positiva do meu disco Amor Amor com os clássicos do Brega. Ah, sem dúvida “Ai menina” na novela e minha participação numa cena. Quando estreitei meus laços de amizade com Nelson Motta que participou como produtor informal do meu quarto disco “Lia Sophia”. A ida ao Jô Soares... Nossa que emoção! Que sonho realizado! Ter sido indicada ao 28º Prêmio da Música Brasileira, na categoria Melhor Cantora Regional, em 2018. Tenho muito orgulho de tudo que conquistei, especialmente do meu amor, a Taísa, e dos amigos que a música me trouxe. Venci!!!!! [ela cai na gargalhada]

T+M: Preciso revelar algo para você: teu CD “Amor Amor” tocou tanto na minha casa (e embalou tantos sonhos e desilusões amorosas), que ele anda pulando as faixas (risos). Decidi falar dele, porque tive a nítida sensação, à época, e continuo tendo até hoje de que este trabalho contribuiu enormemente para valorizar o Brega, para mostrá-lo como parte importante e indissociável da cultura popular. Essa estética ainda é parte do teu repertório? 
LS: Tá vendo? Esse tipo de feedback me faz saber de que segui no caminho certo. Eu concordo que esse trabalho foi importante na época que o lancei em Belém [em 2010]. Recebi várias críticas de fãs e amigos quando eu comecei a falar que lançaria um CD com releituras de bregas. As pessoas que se achavam sofisticadas musicalmente, torciam o nariz para essa ideia. Mas eu sempre segui a minha intuição em relação à música e essas canções românticas fizeram parte da minha memória musical de infância. Lembro de como elas emocionavam as pessoas. Então eu sabia que tinham algo de especial. Falavam de forma simples sobre o amor. E isso não é fácil de fazer! Além disso, depois que passei a pesquisar sobre o Brega, para compor o repertório do disco, descobri a importância desses compositores e artistas, que fizeram parte desse movimento em Belém. Eles foram responsáveis por nossa música tocar, hoje em dia, nas rádios da cidade. Foi a partir do sucesso deles, que as rádios foram obrigadas a tocar o que já era sucesso no meio do povo: a música brega! No álbum [Amor Amor], fica bem claro o meu trabalho como intérprete. Mesmo sendo compositora, desde quando eu tocava nos bares, interpretar músicas de outros artistas me levou a um aprendizado importante como intérprete: de como fazer aquela música ser minha naquele momento. Essa estética faz parte do meu trabalho de intérprete. 

T+M: Pegando carona nessa pergunta, li uma entrevista recente tua em que rechaças o rótulo de cantora de música paraense – como é conduzir e tentar universalizar ritmos que são tão próprios nossos?
LS: Sobre ser chamada de cantora paraense é algo que me orgulha muito. O Pará me abraçou como filha e foi em Belém que me desenvolvi como artista profissional. O que rechaço é ser colocada numa caixinha de “música regional” por jornalistas de veículos nacionais. Por que quando se fala de samba, de forró, de axé, não se fala em música regional? Eu entendo a importância desse conceito para um momento específico da história da música produzida no Pará. Quando as rádios paraenses só tocavam músicas de artistas nacionais e internacionais, houve a necessidade do surgimento de um movimento musical, envolvendo principalmente compositores que exaltassem as belezas, as riquezas, os ritmos locais, com o intuito de chamar atenção para a produção musical local. Isso foi importante localmente. Mas hoje, com as notoriedades que a música e a cultura paraense, de uma forma geral, tomaram em âmbito nacional, esse título é muitas vezes usado de forma preconceituosa, principalmente por veículos nacionais. Prefiro dizer que faço música brasileira produzida na Amazônia, na Região Norte.

T+M: Mesmo depois desse tempo de estrada, sentes dificuldades? De que ordem?
LS: Muitas barreiras já foram superadas. Tanto junto ao público e empresários locais, quanto em âmbito nacional. Mas ainda há muito o que se fazer para que a música produzida no Norte seja reconhecida universalmente como música brasileira e ponto. As dificuldades vão sempre existir em relação à arte, de um modo geral. Você sempre vai precisar convencer as pessoas (público, empresários e poder público) da importância da arte no mundo, na história, no futuro de todos. É claro que estou falando de maneira filosófica, metafisicamente. Porém, em termos práticos, o setor cultural ocupava, em 2018, mais de cinco milhões de pessoas, entre formais e informais, de acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), representando 5,7% do total de ocupados no Brasil. É indiscutível a importância do setor cultural para a economia local e nacional. E não falo só de música, mas do Cinema, Teatro, patrimônio histórico, museus, etc. E, para além dos números, a capacidade de a arte gerar empatia, reflexão crítica e a possibilidade de enxergar o outro. Infelizmente com essa pandemia, sofreremos novos desafios e muito maiores que os anteriores, já que a nossa grande coluna de sustentação, o público, agora não pode nos aplaudir pessoalmente. 

T+M: Você já foi eleita por Nelson Motta como revelação; já foi assunto da Billboard... onde mais você quer entrar/chegar que ainda não chegou?
LS: Ah! Ser gravada por Maria Bethânia ainda é um sonho pra mim! Já pensou ela interpretando uma música minha? Eu já vivi uma emoção parecida quando o Ney Matogrosso cantou comigo uma composição minha no meu CD “Não Me Provoca”. Me senti realizada. Cantar no Blue Note em Nova York me inspira também. Mas meu maior sonho é algo que vai além de mim: é ver o Carimbó e o Marabaixo [ritmo do afro-amapaense] sendo reconhecidos nacionalmente como o samba ou forró. Tocando em todas as rádios e embalando festas por todo o Brasil. 

T+M: Como se deu a travessia de cantora para compositora? O que te inspira?
LS: Na verdade as coisas aconteceram meio que juntas. Quando comecei a cantar, eu já tinha algumas composições, mas não levava muito a sério esse lado. Mas resolvi incluir músicas minhas no repertório que eu apresentava nos bares: foi então que eu percebi a boa receptividade do público e isso reforçou, naquele momento inicial, o meu lado compositora. Hoje em dia, componho mesmo sabendo que nunca vou gravar ou mostrar para o público essas canções. É um prazer pra mim. A inspiração é algo com o qual eu não posso contar sempre. [ela ri] Pra mim, a composição é muito mais transpiração do que inspiração. Eu trabalho algumas horas do dia para escrever, para criar uma melodia. Às vezes, isso acontece junto, letra e música. Outras vezes, não. Mas eu sempre aproveito histórias diárias que a vida me apresenta, livros que leio, algum tema que me interessa para definir sobre o que escrever. 

T+M: Percebo também que és muito reservada sobre tua vida pessoal e a gente vive um momento em que o público cobra posicionamento dos artistas, ao mesmo passo em que há uma enorme distorção e inversão a respeito do papel do artista no Brasil. Como enxergas tudo isso? 
LS: Já fui muito mais reservada em relação à minha vida pessoal. Hoje em dia me permito opinar sobre várias coisas, sempre com muito cuidado e até fazer declarações de amor à minha esposa nas redes sociais. Mas confesso que não sou de redes sociais. Reconheço a importância delas para nos conectarmos com o mundo. Mas, ao mesmo tempo, nos conectar com o mundo exige muito tempo da nossa vida e, por vezes, deixamos de nos conectar no nosso mundo real e próximo. Há uma exigência por felicidade e beleza nas redes sociais, o que não reflete a vida real. Então, às vezes, passo alguns dias sem postar nada. [ela ri] Posto o que acho relevante ou o quero informar para o meu público sobre o meu trabalho e, é claro, às vezes quando estou feliz e bonita também. Mas não acho que tenho que ter opinião sobre tudo e sempre ter que dizer o que penso. Muitas vezes é melhor ficar calado mesmo. É uma pena que o artista no Brasil seja tão desvalorizado. Ninguém vive sem arte. Todo mundo tem uma música que já marcou a sua vida, um livro, um filme. São exceções as pessoas que não gostam de dançar. Ainda assim as pessoas duvidam da importância dos artistas no mundo? É muito triste. 

T+M: O que tem se mostrado em teu horizonte, para além da Pandemia?
LS: Esse momento vai trazer muitas mudanças para o setor cultural como um todo. Provavelmente, o streaming, plataformas digitais como o YouTube, Spotify, Netflix e canais de TV pagos, se tornarão o novo normal para o consumo de arte. Desde a música, passando pelo Cinema, até visita a museus e patrimônio histórico, devem passar pelas plataformas virtuais. E isso vai mudar o modo de produção dos artistas também. Pensando nisso, o foco agora, mais do que nunca, são produções que possam ser lançadas nessas plataformas. Eu projeto intensificar os shows ao vivo nesses meios, além de novos clipes, que já estavam nos planos, e um CD só de Carimbó, que já faz tempo que quero fazer. Tenho um projeto lindo ao lado do grande Poeta Paes Loureiro, que, se tudo der certo, em 2021 sai. Tem o Bloco Carimbolando, no maior Carnaval de Rua do Brasil, em São Paulo, que quero realizar em Belém também. Um documentário sobres as mulheres do Carimbó... Mil planos...

T+M: Em relação a bens de consumo: sei que você teve uma infância difícil e teus pais lutaram muito. O que a carreira te proporcionar? Qual sonho de consumo você já realizou? Em termos profissionais, ser cantora de aproximou de algum ídolo? Se sim, quem? Qual sonho ainda não foi realizado, mas pretendes fazê-lo em breve?    
LS: Ah, tenho tanto o que agradecer à música. Com ela eu consegui comprar o meu apartamento, meus instrumentos e equipamentos musicais, conheci lugares no mundo que nunca pensei antes – tanto a passeio, quanto fazendo shows, como Nova York e Londres. Fiz parcerias com artistas incríveis. A música me aproximou do amor da minha vida. É claro que ainda quero poder levar a minha música para vários lugares no mundo e fazer muitas outras parcerias artísticas. Recentemente realizei um sonho de gravar um Clipe em Alter do Chão [Em Santarém, no Oeste Paraense]. A música chama-se FESTA DA VIDA e fiquei emocionada com o resultado e, mais uma vez, com a beleza daquele lugar. Que magia! Assistam no meu canal do Youtube, tá?

Para conhecer mais:
@liasophia

Troppo