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Jane Duboc: 'Tudo em Belém me faz bem!'

A cantora paraense fala de projetos, saudades de Belém e da amizade com Raul Seixas

Por Lorena Filgueiras

A paraense Jane Duboc ganhou o mundo muito cedo. Sua voz, melodiosa, e o talento para instrumentos a projetaram para um universo, cujo caminho seria muito natural – tanto que foi eleita uma das cem maiores vozes da música brasileira, pela Rolling Stone Brasil. Apaixonada por crianças, nossa entrevistada de capa, fala sobre sua longa relação com os pequenos, os projetos que abraçou, inspirações, ao mesmo tempo em que rememora a vida nos Estados Unidos, Natal e Belém, onde nasceu e da qual sente tantas saudades. De quebra, relembra a amizade com Raul Seixas.

Troppo + Mulher: Aproveitando que estamos em Outubro, mês dedicado às crianças, em qual momento você se deu conta de que queria escrever para elas?

Jane Duboc: Comecei a escrever para crianças no final da década de 70. Lancei meu primeiro livrinho no começo da década de 80, “Jeguelhinho”. Depois lancei “Bia e Buze” e, posteriormente, “Lian, o surfista da pororoca”. Montamos peças, fomos para escolas públicas e teatros daqui, do Rio de Janeiro. Foi maravilhoso! Eu adoro conviver com criança!

T+M: Em comum, seus livros falam de natureza, sustentabilidade. O que te fez abordar esses aspectos?

JD: Sim, por eu ser da Amazônia, meu primeiro compacto, que foi feito em 1971, produzido pelo Raul Seixas, falava de poluição... e eu ia ser presa, porque o povo do DOPS [O Departamento de Ordem Política e Social foi um órgão criado durante o Estado Novo e cujo ápice de atuação deu-se durante a Ditadura. Cabia a ele a repressão aos movimentos contrários e censura] invadiu o estúdio dizendo que eu não podia falar sobre isso. Tava tudo riscado em vermelho, vetado! E eu perguntei: “Mas, esperem aí, o que vocês estão entendendo disso?”. Aí o Raul me respondia: “Calma, menina, tenha paciência!”. E os caras lá, usando jaquetas de couro, numa postura amedrontadora realmente. Respondi: “Tô falando que se a gente não cuidar da nossa natureza... Vivi e morei em Belém do Pará e ia para o interior de canoa. Naquela época, já via plástico nos rios. Isso vai piorar e vai voltar pra gente, porque a natureza é parte da gente! Temos que cuidar”. Minhas peças falam sobre inclusão social, sustentabilidade, que é um dever do cidadão e essa conscientização precoce. Eu faço meus personagens, que são animais, sofrerem com a poluição, mas de uma forma bem lúdica e que fica na cabeça das crianças. Vejo as mães me mandando vídeos mostrando que as crianças entendem: “A Jane falou que não pode isso!”. Recebo vídeos das crianças limpando lixos na praia. Isso é muito bonitinho! As crianças de hoje já são muito mais conscientes, mas é importante esse trabalho junto a elas.

T+M: Sentes falta do Raul? Já se vão mais de trinta anos que ele se foi e em quais momentos ainda o sentes presente? Qual o maior aprendizado da amizade de vocês dois, uma vez que Raul também tinha um trabalho lindo com crianças.

JD: O Raul era um amigo muito querido. Foi ele quem gravou meu primeiro disco. Depois ele casou com a irmã do meu ex-marido, pai do meu filho, então não saía de casa lá nos Estados Unidos. Ele tinha uma loucura por mim! Eu era a irmã dele. Conversávamos muito e trocávamos muita coisa. Infelizmente, ele enveredou por um caminho sem volta. Eu brigava muito com ele, mas tem uma hora em que a pessoa mergulha nesse mar escuro, de bebida, drogas... É muito triste, eu fico triste porque ele tinha um gás ainda para queimar. Raul morreu muito cedo. Ele virou meio que virou da família depois que casou com a Gloria e teve a Scarlet. Lembro que quando nos apresentamos no Chacrinha, eu tinha aquele cabelão enorme, loiro, e eu toquei o piano. Chacrinha berrava: “bota essa menina loira na frente!”. [ela cai na gargalhada] Morro de saudades do Chacrinha – ele me ajudou muito. Estou misturando um pouco as histórias, porque, no fim, estamos todos interligados. Somos todos irmãos nesse planeta. Vejo o céu azul, as árvores e flores e penso em Deus. Sinto tanta gratidão por tudo, tudo o que vivi, por fazer música! 

T+M: Li uma entrevista sua em que você diz que virou a “vovó mais bacana do seu condomínio”. Achei um barato saber disso. Como é tua relação com a infância, com as crianças e como foi que esse contato ficou em função da pandemia?

JD: Sempre gostei muito de andar com as crianças. Quando meu filho [o também cantor e ator Jay Vaquer] era criança, andávamos o tempo todo com uma prima. Os colegas da escola dele passavam muito tempo lá em casa, inclusive. A garotada da vizinhança também sempre estava junto. Meu carro era sempre bem grandão e os levava para piscina, patinação no gelo, piquenique no Jardim Botânico, teatros. Todo final de semana, era aquela cambada de moleques no Teatro-Cinema. Depois a gente saía para jantar ou lanchar e conversávamos sobre o que eles haviam absorvido das peças e filmes. Adorava ouví-los. Engraçado perceber que meu filho já tinha um entendimento muito grande sobre Teatro. Hoje ele escreve, faz peças... é maravilhoso! Na pandemia eu senti uma enorme vontade de dar um abraço virtual, viu, Lorena? Então eu tinha esse projeto, o “Ilustre Criança – Desenhando a canção”, em que eu humanizo toda essa coisa tecnológica. Tenho um sonoplasta que é músico e um ilustrador, que foi quem ilustrou o “Lian, surfista da Pororoca”, que é um audiobook, recomendado pelo Toquinho, que, inclusive, fala no fim. Toquinho foi meu parceiro por muito tempo. Viajamos muito o mundo inteiro: América do Sul, Europa e Brasil inteiros. Inclusive, na época do Arca de Noé [projeto infantil assinado por Toquinho e Vinícius], eles me mostraram muito antes de ser lançado. E eu gravei “O Girassol”, né? Sempre estive muito envolvida com projetos infantis.

image "Vejo o céu azul, as árvores e flores e penso em Deus. Sinto tanta gratidão por tudo, tudo o que vivi, por fazer música!" (Jane Duboc) (Murilo Alvesso)

T+M: Mas o “Ilustre Criança” é diferente. Como funciona?

JD: Esse ilustrador ensina a desenhar os personagens da estorinha que conto. São narrativas breves, com intervenções do meu sonoplasta. Interpreto 3, até 4 personagens, mudando de voz e atitude. São 45 minutos, em média. Tive a sorte de o Mesa 2 [escritório cultural] ter acreditado no projeto e eles o mostraram ao Teatro Porto Seguro, que simplesmente adorou. Aí, nós fizemos apresentações através da plataforma do Porto Seguro. O ingresso custou 20 reais e o valor foi repassado às pessoas que trabalham com cultura e estão sem dinheiro: técnicos de som, camareiras, iluminadores. Foi realmente gratificante ver a criançada participando e desenhando com a gente. Abrimos uma página no instagram (veja no fim da entrevista), onde são postados os desenhos! A gente, Lorena, manda as revistinhas das estorinhas por e-mail! Eles recebem em casa, com outras atividades recreativas. Em pauta: sustentabilidade, inclusão, respeito às diferenças...  

T+M: Tens uma longeva relação com esse universo lúdico-infantil. Qual projeto/ideia falta concretizar?

JD: Ah, eu queria fazer um filme do Lian, o surfista da Pororoca. A estorinha se passa em Soure, no Marajó. Fala sobre a comunicação entre os ecossistemas. É muito bonitinho! A gente tem o carangueguejo, que é um caranguejo gago; um peixe-boi; o Netuí, que é um índio sábio. O Lian é filho de um arqueólogo que vai trabalhar em Soure. O Lian se comunica com o Porquê Poraquê, um peixe curioso sobre tudo e que ensina a criançada através de suas perguntas. Tem também a Rendinha, que é a espuma do mar e do rio e a Pareci, que é uma indiazinha. São vários personagens interessantes! Tudo é muito fofinho e há várias músicas que falam sobre isso.

T+M: Diz-se comumente que adultos que curtem essa relação com crianças foram, por sua vez, crianças felizes. Como foi tua infância, Jane?

JD: Tens toda razão, Lorena! Tive uma infância muito feliz. Muito feliz mesmo! Nós passamos a infância no Rio Grande do Norte, em Natal. Meu pai era médico da Marinha e diretor do Hospital Naval. Morávamos numa base naval que tinha quadras poliesportivas, quadra de tênis, piscina, um parque enorme com coqueiros para todo o lado! Havia muitas outras árvores frutíferas e uma criançada... Brincávamos o dia inteiro! Depois que voltei para Belém, na pré-adolescência, continuei sendo crianças. Minha casa sempre foi aberta a todos! De todas as raças, classes, idades. Meu pai ensinava muito! A convivência harmoniosa entre as pessoas foi uma aula diária na minha vida, além do respeito e de ser feliz. Havia muita música em casa e sempre foi sinônimo de harmonia. Por isso gosto tanto de música, acima de qualquer coisa! Música une! Isso é muito bonito! Esporte e Música deveriam ser matérias obrigatórias em escolas públicas. O esporte tem o senso da coletividade, de equipe, tal como na música. Se você não for tocar, aprende a ser plateia, como se comportar, respeitar e admirar. 

image "A convivência harmoniosa entre as pessoas foi uma aula diária na minha vida, além do respeito e de ser feliz" (Jane Duboc) (Murilo Alvesso)

T+M: Eu gostaria de voltar um pouco: como foi que se deu teu caminho até a música?

JD: Meu caminho começou cedo! As famílias da minha mãe e de meu pai eram muito musicais. Meu avô paterno era maestro! Meu avô materno era violonista clássico! Toda a família tocava piano, cantava. Engraçado você perguntar isso, porque a música era muito natural e parte diária. Lembro de ouvir muito a Ella Fitzgerald, de quem a minha mãe era muito fã e tinha inúmeros cadernos com as letras. Julie London. Meu pai ouvia Duke Ellington, Count Basie, Glenn Miller, Benny Goodman. No rádio, eu ouvia Luiz Gonzaga! Em Natal, ouvíamos muita música nordestina, que eu adoro. Misturávamos tudo: samba, jazz, chorinho, música clássica, sem julgamentos. Criança tem essa coisa, que eu amo, de não julgar. Depois que cresce, que entra em grupos, começa a achar que só aquilo do grupo é o que está certo. Isso é muito chato, porque é um horror: precisamos respeitar mulçumanos, índios, tribos africanas. Temos que respeitar tudo e todos! Por isso é tão importante passar para nossos pequenos que família é onde tem respeito, diálogo. Não interessa se nessa família o avô tem três filhos ou se há duas mães sob o mesmo teto. Pra mim, o que interessa é o carinho, verdade e a não-violência. 

T+M: Como tens vivido esse período pandêmico, Jane?

JD: Resolvi reagir e fiz uma única live, pelo Sesc. Fiz sozinha, tocando violão e da minha casa. Lógico que fiquei preocupada porque veio uma produtora, um técnico e eu tive que cantar sem máscaras. Essa pandemia é algo muito sério. Nós estamos brigando com um inimigo invisível. Adorei fazer essa liveque teve 12 mil espectadores e fiz o “Ilustre Criança – Desenhando a canção”. A gente fica com receio porque as contas e os boletos continuam chegando os artistas sem show. Darei aulas só em janeiro – ministro sempre oficinas. Essa próxima será em Jaraguá do Sul. Trabalho muito para conseguir minhas coisinhas! Tô aqui cuidando de mim, cozinhando direitinho, fazendo yoga. Quando eu posso, vou lá no térreo pegar um solzinho. Tenho falado com os amigos por ligações. Agora o que realmente tá exagerado é esse negócio de live! Todo dia tem live! Falo por mim: tenho que ajeitar o cabelo, me maquiar, correr com meus afazeres domésticos. Mas é isso: estamos vivendo uma pandemia e temos muita sorte de ter um teto, comida e precisamos pensar no próximo, ajudando da maneira que for possível.

T+M: Como sairá a Arte e os artistas desse momento? Como este período te fez ver (ou rever) a relação com teus fãs/internet?

JD: Quem tem músicas nas rádios, nas novelas ou gravadoras com dinheiro, consegue um patrocínio legal nas lives. Quem não tem, como alguns amigos meus, cobra um valor simbólico, como 20 reais, por exemplo. Ainda há quem reclame de pagar, argumentando que há muitas outras lives. Fica essa distância, digamos assim. Está difícil para muitos conhecidos e amigos meus. No futuro, quem sabe... A música pelas plataformas digitais rende pouco, a não ser que você venda muito! Do contrário, é um pouquinho aqui; outro pouquinho ali e, no final, é pouco. A gente tem que se reinventar. Eu me reinventei com esses projetos infantis, porque não faço ideia de quando poderei fazer show! Eu já sou uma velhinha, né? [ela ri novamente] Não dá pra sair e cantar sem máscara. Em relação aos fãs, eu já me reuni umas duas vezes com eles pelo zoom. Foi muito legal! 

T+M: Você é uma das cem maiores vozes da música brasileira - além de ser uma artista versátil e multifacetada. Quais projetos a pandemia adiou, ainda que momentaneamente? Quais são teus planos para quando for seguro sair de casa?

JD: Adiei o disco novo e os shows todos! Assim que for possível, faremos isso!

T+M: Seu filho, Jay Vaquer, também é cantor, compositor. Essa influência foi sua? Em qual momento você percebeu que ele tinha talento? Como foi que se deu essa descoberta e desenvolvimento dele?

JD: Vivemos durante muitos anos nos Estados Unidos e lá eu já percebia o jeito dele. Ele brincava de carrinho cantando músicas do ChickCorea [pianista – e ela balbucia o som que Jay fazia]. Aquilo era tão complexo para a idade dele! Eu ia para a aula de flauta e o levava junto comigo. Ele gostava de ficar ouvindo e desenhando. Sempre estudou canto e instrumentos, mas nunca o forcei. Fez vestibular e se formou em Publicidade. Também é formado em Teatro, ator formado e diretor. Uma vez ele chegou pra mim e disse: “mãe, tô tocando num lugar”. Ele tocava em todas as casas noturnas de São Paulo e eu não fazia ideia. Um dia eu fui vê-lo e não acreditei no que vi: tinha fã-clube cantando músicas inéditas! Ele fez o teste pro Casa de Cazuza [musical] e virou protagonista! Fiz o CD e produzi a peça, que representou a retomada dos musicais no Brasil. Fiz [produziu] o primeiro disco do Jay e o disco do Casa de Cazuza. Quando comecei a ler as músicas que ele compunha, concluí que era dom! O pai dele era músico. Meu pai era escritor e eu escrevo. Jay é um cronista da atualidade, além de ser muito bem quisto pelos músicos e pé no chão. É quieto, na dele, mas um compositor de mão cheia!  

T+M: Percebo uma enorme discrição sua no que tange à sua vida privada - uma postura bem na contramão do que se habitualmente vê no universo artístico. Foi algo intuitivo ou você traçou isso para si?

JD: Ah, eu sou reservada. Meus computadores, celular... todos sabem as senhas deles. Nada tenho a esconder, mas não gosto dessa coisa quase narcísica que rola hoje. Isso é meio esquisito. É uma necessidade que muita gente tem de dizer que está vivo, respirando... Uma hora isso vai melhorar, porque tá exagerado! Cada um tem um jeito de ser. Eu respeito quem quer aparecer, mas é uma coisa invasiva. Não sei julgar isso. Não gosto de me expor. Minhas redes sociais são administradas pela produtora. Mas é isso: cada um é cada um! Eu respeito, mas acho engraçado [ela cai na gargalhada].

T+M: Em qual lugar emocional Belém está, digo, dentro do seu coração?

JD: Como eu passei dos 13 aos 17 aí, justamente a fase em que você é, às vezes, um pouco irresponsável, engraçada, faz sapecagem... nada sério, né? Tipo subir no telhado, sair de jipe com o primo, sem rumo e sem horário. O que mais a gente lembra da vida são essas coisas engraçadas. Lembro de irmos para Salinas passar as férias, o primeiro namorado. Estudei no Gentil Bittencourt e participava dos campeonatos de tênis de mesa. Jogava com os amigos, a família, que era muito animada sempre! Belém tem a melhor comida do universo! Eu fugia para a Cairu para tomar sorvete de tapioca, que eu amo! Belém é de uma beleza... com aquele verde, os rios, a mata... Amo Belém! Quando vou aí, choro só de ver as mangueiras; choro com a Basílica. Tenho muitas saudades! Tudo em Belém me faz bem!

T+M: Da saudade que sentes, o que te faz mais falta quando pensas na cidade?

JD: Sinto saudade da minha família e dos meus amigos, porque eles são muito animados!

Para conhecer mais:
@janedubocoficial
@ilustrecrianca_comjaneduboc

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