Desconstruir para edificar

Por Lorenna Filgueiras

O que faz a diferença nos seus dias de quarentena? Ler, conversar, escrever, cozinhar? Neste momento em que estamos recolhidos dentro de nós mesmos em estreito contato com nossas mentes, muitos têm se dedicado ao exercício do autoconhecimento. Sairemos diferentes? Depende de como estamos lidando com as dúvidas e certezas de nossas vidas; da desconstrução do que éramos, antes deste mundo novo, e de nossas reconstruções. Essa grande experiência coletiva foi tema do bate-papo que tive com o Padre Fábio de Melo na última quarta-feira. Entre pensamentos e momentos muito marcantes, nosso convidado especial abriu as janelas de sua alma, se emocionou e nos presenteou com uma entrevista delicada, permeada de afetos e lembranças do Círio de Nazaré. 

Troppo + Mulher: Padre Fábio, como o senhor tem vivido esse período de pandemia, já que é impossível falar em rotina neste momento?

Fábio de Melo: Na verdade, eu já havia me planejado, no ano passado, para viver um ano diferente. Tinha compromisso de parar com a música, com os shows, as viagens. Eu me dedicaria mais aos estudos este ano. Aí, acho que o mundo ficou com inveja e todos decidiram fazer a mesma coisa. [ele ri] Para mim, não tem sido muito diferente do que eu havia planejado, de ter uma vida mais reclusa, com um tempo voltado à leitura e a algumas coisas que eu já queria ter visto, estudado, mas que nos últimos vinte anos, em função da minha correria, acabei não tendo oportunidade. Uma pandemia não deixa de ser uma pandemia. Estou em comunhão, é claro, com todo o sofrimento que há, com tudo aquilo que eu possa intervir: as campanhas que aderi, os movimentos que assumi como meus, para poder levar um pouco de alento, de ajuda às pessoas que estão sofrendo. Minha vida pessoal tem sido com mais quietude, mais silêncio e mais recolhimento.  

T+M: Essa sua decisão, de um ano recolhido, tem a ver com o momento de desconstrução? Compreendo que seja momento de desapegar do mundo que existia para uma adaptação ao novo mundo. É isso mesmo?

FM: Acredito que todo mundo, todo ser humano precisa viver essa época da desconstrução. Nós nunca estamos prontos. Seria muita pretensão nossa dizer que já alcançamos o que podemos de nós mesmos. Mas, ao mesmo tempo, para chegar ao que podemos ser, a esse ser que podemos ser e que está em nós, em potencial, nós vamos precisar desconstruir. Nem sempre somos fieis à nossa essência. Às vezes permito em mim algumas alterações que não me dizem respeito – são frutos de projeções alheias, de expectativas e, por não ter a consciência ou lucidez necessária, acabo permitindo tais modificações em mim. Então chega um momento em que a gente precisa retirar, desconstruir; para a gente poder ficar com o que de fato, nos importa. Acredito que todo processo de sofrimento seja de desconstrução, em um primeiro momento, porque parece que a gente perde as referências, perde o chão, mas, depois, ergue-se naturalmente com a nova edificação. 

T+M: Há aproximadamente dois anos, o senhor concedeu uma entrevista para nós, da Troppo + Mulher e, à época, disse algo que me tocou muito sobre fé: que tê-la não era certeza de passar incólume por alguns sofrimentos – mas sobre a convicção de percorrer esse sinuoso caminho com uma boa companhia. Diante de tantas perdas e desigualdades, que ficaram mais evidentes com essa crise, como lidar com o abalo na fé? Pergunto ainda: qual o papel dela em nossa vida?

FM: A fé é um movimento existencial. Ela provoca profundas alterações na nossa existência, Toda vez que eu creio, evidentemente alimento esperas e esperanças. O “crer” nunca é dissociado da esperança. Por isso, uma fé que não conhece esperança, é um processo de alienação, porque esperança não é esperar sentado que algo aconteça. O sentido de esperança só é válido, quando é compreendido a partir da operação: é uma esperança operante. Enquanto espero, construo aquilo que espero. A fé é esse movimento que me faz acreditar que em mim há recursos para construir o que espero. Acredito que neste momento que estamos vivendo, de tanto sofrimento, medo, desolação e perdas, a fé a esperança funcionem como um ponto de equilíbrio. Mesmo aqueles que não têm a fé transcendente, que não creem em Deus, se já acreditarem em si, é um passo maravilhoso! Às vezes temos uma fé em Deus que não se desdobra em fé em nós mesmos – acho que essa fé tem pouco poder de nos transformar! A fé transcendental, essa que te coloca em conexão com o que há de mais sagrado, necessariamente implica em ter fé em nós. “Creio em Deus”, é fácil de dizer. Agora dizer “creio que Deus crê em mim” ou “creio em mim” são expressões que exigem um pouco mais de amadurecimento humano.

image Padre Fábio de Melo (Kleber Alepereira)

T+M: Outra coisa sobre a qual falamos da última vez foi a respeito da volatilidade das relações, dos amores líquidos. Neste momento em que temos confrontado, quase que diariamente, a finitude da vida, o senhor acredita que isso vai interferir nos relacionamentos? Eles sairão diferentes da pandemia?

FM: Olha, tenho falado muito sobre isso. Eu não tenho uma visão romântica de que esse período de pandemia, de afastamento e distanciamento social, possa nos transformar em pessoas melhores. Necessariamente, não é porque passamos por isso, que seremos melhores. Agora eu acredito que quem, de fato, estava vivendo o incômodo de relações líquidas e volatilidade emocional, certamente acelerará, em si, o processo de mudança, de transformação e ressignificação dos vínculos. A visão romântica de que sairemos melhores, eu não tenho, mas a visão realista de que, quem quiser sair desse invólucro tão frágil, sem sustento ou fundamento, será uma excelente oportunidade. De maneira madural, racional e equilibrada, quem sabe. 

T+M: Também falamos sobre depressão, condição que o senhor atravessava e que o fez se manifestar publicamente. O tema, embora mereça essa luz, esse debate desmistificado, ampliado e amplificado, quase sempre é um tabu. Há algo, entretanto, que não perguntei à época e que gostaria de perguntar agora: o senhor foi criticado, justamente por ser um homem de fé, e admitir a doença? Aproveito para saber como está agora e o que dizer para as pessoas que estão atravessando esse “deserto” neste momento e que se encontram meio desesperançados?


FM: Não, não recebi nenhuma crítica. De verdade. Não chegou a nada mim que pudesse fazer uma referência daquela construção, também romântica, de que um padre não pode ter problemas e falar de suas fragilidades. Tenho chegado à conclusão, Lorena, que a verdade é o melhor caminho para qualquer situação. Quando somos verdadeiros, especialmente com as pessoas que nos acompanham ou quando eu, como líder religioso, ouso tocar publicamente nas minhas feridas, tenho muito mais adesão que rejeição. Acredito que as pessoas, hoje, queiram ficar onde há verdade. Acho que o que elas mais esperam de um líder religioso, é coerência. Não faz sentido ir para o púlpito falar de uma coisa que eu não vivo, que não experimento ou dar conselhos que não pratico. A partir do momento em que tenho coragem de falar que eu estou em construção e que, em algum momento desse processo, estou mais frágil do que aquele que me escuta, acredito que é aí que se estabeleça a mais bonita comunhão, que é a fraternidade, a solidariedade, a empatia... a misericórdia, que é a gente sentir a dor do outro. Então, por incrível que pareça, o meu discurso e a minha condição estimularam muitos a fazer o mesmo: muitos padres, pastores que também enfrentavam o mesmo momento e que tinham medo de dizer. Faz parte dessa visão equivocada de que depressão é falta de Deus no coração. Não é não! As tristezas mais profundas nós experimentamos acompanhados! Ter fé em Deus não nos livra dos conflitos! Inclusive, uma das últimas falas de Jesus foi justamente isso. “Pai, por que me abandonaste?”. E Ele era Deus! Tinha certeza, convicção da presença do Pai, em Si. Mesmo assim, o momento histórico que Ele viveu foi tão cruel, tão doído que, naquele momento, algo falhou dentro dele, do ponto de vista humano. Imagine, Lorena, se Jesus teve direito de viver isso, por que eu também não posso?

T+M: Essa passagem me toca muito, Padre, por saber que Jesus mostrou ali sua face mais humana, mais próxima de nós. 

FM: Justamente!

T+M: Toda vez que alguém a menciona... [eu paro. Fiquei realmente emocionada. Sempre me emociono quando leio ou falo sobre a face mais humana de Cristo. Silencio por algum momento e o Padre Fábio percebe]

FM: É bonito, Lorena, porque a gente se aproxima de Deus e O sente como a gente. Acho que o mistério da encarnação, a presença de Jesus entre nós, é tão bem expressa na festa Círio de Nazaré... Achei tão enigmático aquilo, quando vi pela primeira vez [ele também pausa] uma mulher carregando um menino no colo. [ele pausa novamente] O Círio de Nazaré é isso: uma mãe levando seu menino no colo e uma multidão atrás dizendo “nós amamos essa mulher porque o filho Dela nos falta!”. Eis o significado do Círio para mim. É a festa religiosa que mais me tocou na vida! É a tradição religiosa que mais falou ao meu coração, porque eu sempre compreendi que o mistério da encarnação é o que há de mais sofisticado no Cristianismo e, ao mesmo tempo, é o mais simples! É uma sofisticação simples! É a gente olhar para um Deus, que quis ser menino, que quis crescer como nós, provar nossos sabores, experimentar nossas dores, alegrias. Isso é muito significativo! Por que eu vou ter medo daquilo que é humano? Não faz sentido temer isso.

T+M: Padre, eu preciso lhe pedir desculpas por ter travado. Deixei minha emoção me dominar na pergunta. Travei aqui!

FM: [ele ri carinhosamente] Eu também travei! Me emocionei muito aqui.

T+M: Deixe eu me recompor falando do perfil digital do Padre Fábio de Melo. Acho divertidíssimos seus posts envolvendo bichinhos de estimação e crianças – mas suas reflexões e pensamentos são ainda melhores. Como o senhor consegue encontrar a palavra perfeita ao momento das pessoas?

FM: [ele ri] Olhe, eu sempre digo para mim que a comunicação nos tempos de hoje demanda muito esforço e nem sempre, as pessoas estão dispostas aos textos longos, aos vídeos muito compridos, de modo que a gente precisa encontrar a objetividade. Como dizer algo importante, que não seja superficial e longo demais? Claro que eu não gostaria que fosse assim! Eu sou adepto dos discursos e vídeos longos. Paro para ler assim: gosto de ler coisas demoradas, longas, complexas, mas sei que no meu dia a dia e como comunicador, preciso me utilizar de formas mais rápidas. Fico muito motivado em perceber que hoje dá certo. Para você ter uma ideia, no início do meu instagram, naquelas informações que eu só eu tenho acesso a respeito de que me repercutiam minhas postagens, as historinhas que construía e que construo com bichinhos geralmente estavam em primeiro lugar. Hoje, não. De um tempo para cá, o que mais tem sido compartilhado e curtido são as reflexões – assim, eu sinto que alcancei o que eu queria: de alguma forma atrair as pessoas. “Aqui tem bom humor, tem gente de verdade, gente normal, que se alegra, se entristece. Mas tem também um cara que gosta de conduzir as pessoas ao melhor lugar”. Essas pílulas diárias fazem muita diferença! 

T+M: Para encerrar, Padre, tenho uma curiosidade e preciso perguntar por qual razão o senhor celebra suas missas/lives descalço? 

FM: [ele cai na gargalhada] É porque eu só calço sapato para sair! Não tenho hábito de calçar sapatos. Ficar descalço me faz voltar a ser o que sou de verdade, sabe? Sapato é um acessório que não pertence! Eu uso por uma convenção social, então toda vez que tenho a oportunidade de não usar... O fato de transmitir a missa/live descalço tem a ver com me sentir em casa, à vontade. 

T+M: O que o senhor pretende fazer assim que a pandemia passar?

FM: Pretendo ir à Brasilândia [bairro da periferia de São Paulo] visitar a vó Tutu [moradora do bairro que mantém, com seus poucos recursos, um projeto social e mata fome de milhares de pessoas], que é uma mulher que foi um presente que a pandemia me trouxe. Desde que a conheci, meu maior desejo é ir lá pessoalmente.

Para conhecer mais: 
@pefabiodemelo

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