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Apoteótico Milton

Lorena Filgueiras

Milton Cunha não é um entrevistado comum. De jeito nenhum! A começar pela simplicidade com que conversamos [com destaque para o vocativo “irmã”, que ele usou para pedir que ligasse para ele]. Se ‘simples’ é um adjetivo que não orna com nosso entrevistado de capa desta edição, paradoxalmente é o que melhor define o Milton Cunha – o homem, não seu personagem. Pé no chão, ele não teve papas na língua no decorrer de nosso bate-papo. Falou sobre Belém, uma cidade que habita um pequeno pedaço de seu coração infantil; sobre o enclausuramento que sentia, as incontáveis surras que levou dos pais, que não aceitavam um filho gay e sobre seu destino – que ele traçou ainda menino, quando se apercebeu que seu lar era o mundo e que a capital paraense era pequena demais para ele. Com todas as razões para ver o mundo cinzento, eis que ele decidiu que seria cor, vida e brilho! Saiu de Belém com quase nada no bolso e uma mala de papelão na mão, em direção ao Rio de Janeiro. Passou fome, perrengues, mas não tinha plano B ali: era vencer ou vencer... e ele venceu, cresceu e dá uma aula de humanidade, ao rever tudo isso no retrovisor de suas recordações.

Troppo + Mulher: Quando vens a Belém, o que é prioridade para ti? Sentes falta da cidade?
Milton Cunha: Sempre que eu volto, é um “bate-rebate”. Eu vou lá, no que eu olhava, e comparo aqui. Aí, as praças já não são tão grandes... as avenidas já não são tão fabulosas... porque você já viajou, já cresceu e você já viu as esplanadas mundiais das grandes metrópoles e tal. Aí você pensa “nossa, isso tudo era a minha referência no mundo e nem é tão grande, né?”. Mas é grande no meu coração de criança! Voltar é voltar para o abraço afetivo! Agora, a cidade não me faz falta, porque o meu lugar no mundo é este aqui, onde eu estou agora [no dia da entrevista, Milton estava no Rio de Janeiro, onde mora há quase 40 anos]. Eu saí da cidade porque ela não me bastava, ela não me definia, nem me completava! Eu queria mais! Outras coisas! Ela é um pedaço do meu coração, mas não é meu coração todo. É uma parte emocionada, cheia de recordações agradáveis e desagradáveis... mas, sobretudo... A liberdade que eu queria não tinha na cidade! Eu queria o mundo mais liberto! E a cidade era enclausurada em pequenas bobagens, cobranças da existência que eu não queria que tivessem comigo e aí eu fui buscar essa liberdade e a encontrei aqui, no Rio, que é o meu lugar no mundo. Belém é uma doce lembrança no meu coração.

T+M: A Belém de hoje te traz que tipo de sentimento, Milton? Como foi anunciar que sairias de Belém? Aliás, quando te deu o estalo “tenho que ir embora daqui”?!?
MC: Sair de Belém era um plano desde criança. Olhava a vizinhança, meu pai, minha mãe, minhas avós, os colégios... e dizia “ih, aqui não vai dar pra mim não! Sou maior que isso! Quero outras coisas! Nesse esquadro aqui, eu não me meço!”. Eu queria estudar rapidamente, me formar rapidamente pra colocar o diploma debaixo do braço, né? Eu sonhava com uma cidade com muito mais teatros, muito mais cinemas! Queria uma cidade onde se filmasse muito, onde tivessem muitos eventos em rua, na praça pública! Queria algo fervendo e sabia que lá pro Sul maravilha, o bicho pegava, né? Sair de Belém foi um plano que durou 19 anos! Desde que eu nasci... cada surra que eu levei [ele gargalha]... cada surra que eu levei, foi um estímulo a mais para pegar o ônibus e ir embora! E era um planejamento consciente: “olha, tu vais passar fome, sabes que vai ser difícil à beça, vai ser duro, apertado... olha, tu vais ter que aceitar coisas bem difíceis, mas tu vais ser livre!”. Isso só me motivava a preparar a grande ida. “Tenho que sair daqui” foi uma frase que eu repeti ao longo de 19 anos. Era claríssimo! Uma conclusão de vida! Daí, com 19 anos, já com o diploma da Psicologia... se eu fosse preso, já iria pra uma cela especial [ele gargalha novamente]... E eu me mandei! Meu irmão me disse: “todos que vão, voltam”. E respondi pra ele: “Eu não sou todo mundo, querido! Sou Milton, sou único e tenho luz dentro de mim!”. Voltar não era um plano. Aliás, nem plano B tinha! Voltar, jamais!

image Milton Cunha (Rafaela Cassiano/Rio de Janeiro)

“Enfrentei todo tipo de barra pesada! Pode colocar aí: tudo! Pode escrever: suruba, que tá tudo dentro!”

T+M: Chegaste ao Rio muito novinho, inexperiente. O que levaste contigo, digo, de bagagem física e bagagem emocional? Hoje se fala muito de assuntos que eram tabus quando ao sudeste chegaste - sofreste preconceito por ser nortista? Gay? Passaste por alguma situação delicada como assédio?
MC: Quanto eu saí de Belém, os assuntos tabus estavam sendo dissolvidos pelo Rio de Janeiro. Quando desembarco no Rio, a Eloína dos Leopardos [atriz e travesti que fez sucesso, na década de 80, com um show de strippers masculinos para adultos] tá com um show gay que era o maior sucesso na cidade! Caetano Veloso estava na plateia. Então, por exemplo, ser gay, em 80, em Belém, era uma desgraça total! Eu via o João Alberto e o Walter Bandeira passarem uma miséria por causa de preconceito e discursos homofóbicos! No Rio, a coisa era bem jogada na cara, bem merda no ventilador! Aí, o Rio, para artistas gays, era mais fácil! Talvez não fosse para advogados e policiais gays, né? Pra mim, eu não entendia, não compreendia a clausura do tabu em Belém! “Essas pessoas sofrem por coisas que são!”, eu pensava. Tem que aceitar, não tem como obrigar alguém a ser o que não é! Muito novinho, eu tinha umas certezas, sabe? Sabia o que eu queria e o assédio era total! Eu, estudado, saía dele, das drogas... tava tudo lá! Todas as coisas do mundo, que complicariam meu futuro, estavam lá e eu saí fora! Queria ser livre, trabalhar e ganhar dinheiro! Para todas as facilidades que me ofereciam, eu sabia que não iam dar em nada! Porque fácil, a vida não é. Eu tava pronto pra lutar! Pelo meu futuro e assim o fiz! Enfrentei todo tipo de barra pesada! Pode colocar aí: tudo! Pode escrever: suruba, que tá tudo dentro!

"Durmo psicólogo, produtor de moda, Teatro... e acordo carnavalesco da Beija-Flor! – sobre seu começo no Carnaval".

T+M: Como foi que “desembarcaste” no Carnaval?
MC: Eu fazia Teatro amador, fazia produção de moda pro Chico Recarey [empresário espanhol naturalizado brasileiro e que, nas décadas de 70 e 80, era considerado o rei da noite carioca, dada a quantidade de estabelecimentos que lhe pertenciam], nas casas dele, como a Garota de Ipanema. Esse foi logo o meu primeiro trabalho, depois de um ano batendo cabeça no Rio. Em 82, eu bati muita cabeça. Em 83, conheci o Relações públicas do Recarey, o Clóvis Schneider e aí virei produtor de moda e comecei a trabalhar toda noite nas boates Circus, Zoom, Scala, Help... Trabalhava em todas elas e comecei a fazer concursos, produzia, ganhava meu dinheirinho e tava na noite! Um dia, trabalhando, vejo o Maurício Sherman, grande diretor [falecido em outubro de 2019], dirigindo Watusi, Grande Otelo... com figurinos de Markito [estilista brasileiro que foi referência da moda brasileira na década de 70], coreografia do Berardi [coreógrafo argentino, que morava no Rio] e pensava: “Nossa, eu to no mesmo Teatro que essa gente, né?”. Trabalhamos por oito anos fazendo esse show. Aquilo ali era um início fabuloso do show business, né? Via orquestra, carnaval, vedetes, elevador hidráulico, Rolls-Royce com mulatas nuas! Pensei: “Eita, aqui é o meu mundo! Cheguei! É aqui que eu quero viver, morar e ser feliz!”. Do show, o Anísio Abraão [presidente de honra da escola de samba Beija-Flor], em 93, me conheceu e perguntou: “tu não queres fazer um concurso lá na Beija-Flor?” e eu topei! Fiz, fiquei em quinto lugar! O Carnaval caiu no meu colo, com força, com a Beija-Flor. Durmo psicólogo, produtor de moda, Teatro... e acordo carnavalesco da Beija-Flor! ‘Medo’ é uma palavra que não existe no meu dicionário! Sou a pessoa mais destemida que eu conheço! Eu sempre acho que tudo vai dar certo, que eu tenho mais é que me jogar e aí eu fiz a Beija-Flor com todo meu know-how de Teatro, de show! Aí, é muito engraçado porque as referências do Teatro de Belém eu carrego todas comigo! Tudo que eu vi do Grupo Experiência, do Geraldo Salles... tudo que eu fiz aí, em Belém, entrou na Beija-Flor de 93 para desfilar em 94. Sou muito grato ao Teatro, por todas as referências: o de Belém, do Rio, o Scala! Somando todos eles, tinha a Margareth Mee, a dama das bromélias [enredo de 1994 da escola de Nilópolis]!

T+M: Foste carnavalesco, agora comentarista e, sobretudo, um estudioso do Carnaval - como comentarista, é impressionante como nasceste pra fazer isso! Qual a tua fórmula para enfrentar o nervosismo do ao vivo e como se dá essa preparação para esse teu lado?
MC: Quando eu cheguei ao Rio, eu vi que o Carnaval era uma importantíssima janela de expressão do artista popular brasileiro pro mundo! Foi quando decidi estudá-lo. Em Belém, eu tinha sido jurado do Quem São Eles, quando estava ainda na faculdade. Mas eu não entendi a grandeza da narrativa e no Rio pensei, “nossa, que janela cultural linda!”. Virei carnavalesco e aí decidi: “Vou me preparar para daqui a vinte anos, eu virar comentarista”, porque eu não queria morrer no barracão e, tampouco, carnavalesco! Meu plano sempre foi a Comunicação, a TV, o Teatro, o Cinema, o Rádio. Queria falar! Fui estudando: fiz Mestrado, Doutorado e continuava no barracão. Mas fui fazendo o programa da Leda Nagle [Sem Censura], Rádio com o [Roberto] Canázio. Fiquei vinte anos observando os grandes professores, como eles, fazendo Comunicação. A Band me chamou para fazer o Boi de Parintis por cinco anos e tudo isso me preparou para a grande TV Globo. Eu era animador das quadras das escolas de samba que eu estava: se eu era carnavalesco da Ilha, eu animava a quadra da Ilha. Então, eu fiquei esse tempo todo com microfone, brincando com todo mundo, fazendo o que eu faço hoje na frente das câmeras! Minha fórmula foi viver intensamente o Carnaval! Conheci todo mundo: velha guarda, baianas... Eu sempre tô pronto para brincar com todo mundo! Para viver aquilo que vivo há 30 anos... então a câmera é só mais uma coisa. Então não tem nervosismo. Tudo é uma só continuação!  

T+M: Tens esse brilho, algo que te destaca em meio à multidão - a que atribuis isso?
MC: O que é o carisma? Quem tem? Isso não é pra artista, não! É pro mundo, pra vida! Existem vovozinhas que são carismáticas – não são artistas, nem vedetes. Há senhorzinhos e crianças carismáticas! Energia, magneto... que imã é esse?!? É inexplicável! O que e posso te explicar é que desde muito cedo, eu tenho uma certeza de que eu não sou uma cópia de nada e de ninguém. Desde muito cedo, eu tenho clara confiança de que eu devo seguir a minha intuição e os meus instintos e isso me levaria ser notado! Uma das coisas que eu posso enumerar como característica do carisma é a pessoa ter confiança no seu taco! No sentindo de que ela não precisa dar a mesma resposta que todo mundo, não precisa seguir a moda! A pessoa é consciente de si, de sua grandeza! Então, exercitando essa individualidade absurda, a certeza fabulosa de que “eu sou maravilhoso, porque eu sou eu!”, essa noção de unicidade... e isso, é desde criança que eu tenho, viu? Desde criança que eu sou o “rei da cocada preta” pra mim mesmo! E isso não significa desfazer ou humilhar o outro. Isso significa que quando eu tenho consciência do meu eu, eu me abro pra vocês! Desde que compreendam a força do meu eu, estarei aberto para vocês. É característica do carismático a consciência do brilho próprio e energia individual. Quando a gente percebe que determinada pessoa tem o brilho verdadeiro, que aquilo não é fingimento, você se apaixona. Pode até não concordar, mas se apaixona! 

Felicidade é poder viver todo o meu potencial e, desta forma, eu também preciso da felicidade dos meus semelhantes. Eu não consigo ser feliz com crianças magrinhas na chuva, vendendo bala no sinal.

image Milton Cunha (Rafaela Cassiano/Rio de Janeiro)

T+M: O que é felicidade pra ti, Milton?
MC: Felicidade é poder viver todo o meu potencial e, desta forma, eu também preciso da felicidade dos meus semelhantes. Eu não consigo ser feliz com crianças magrinhas na chuva, vendendo bala no sinal. Não consigo! Isso me choca, me comove e me entristece! A minha felicidade passa pela expressão total da minha individualidade e pela felicidade coletiva. Então vou te dizer, que a felicidade não é uma constante. Eu sou feliz nos momentos em que eu sou a explosão do meu eu! E sou muito infeliz quando caminho e vejo quão difícil é o mundo. O mundo é cruel, terrível, é muita desigualdade, preconceito, dor, racismo, homofobia! São muitas oportunidades divididas de maneira desigual. Então, felicidade num mundo que parte do pressuposto do valor, da cor da pele, da escolaridade, religião... qualquer privilégio que venha de classe social e sexualidade... não dá pra ser feliz num mundo assim. Felicidade é algo bom que você sente de vez em quando, por você ter uma história pessoal bacana, por ter feito as escolhas certas. A geral, sempre eterna não existe. Viver é perigoso, heavy metal e não consigo olhar o mundo e dizer que “está tudo okay”, porque não está!

T+M: És casado e, em algumas entrevistas que li, declaras que és muito mais caseiro e tranquilo do que as pessoas supõem - o que o casamento trouxe para ti?
MC: O casamento é um desafio maravilhoso! É fabuloso! Como ajustar histórias individuais, bagagens e universos individuais sob um teto duplo?!? Isso é maravilhoso! É maravilhoso dizer pro teu companheiro ou tua companheira: “Olha, diante disso, eu sou assim. Daquilo, eu sou de outro jeito”. E teu companheiro dizer: “Mas, assim, eu reajo de outra forma. E lá, eu reajo daquela forma”. Esse ajuste, esse amálgama que vai naturalmente se juntando – ou se separando – é um desafio fabuloso! Se o amálgama se ajusta, cada ano que passa, o casamento cresce e fica melhor. As coisas vão ficando mais poderosas: o apoio, a cumplicidade, o colo. E quando você entra na solidão do show, do palco, do artista, essa solidão linda que você exercita como luz, personagem, câmeras... essa solidão é feliz, porque você sabe que depois que o diretor grita “corta!”, você volta pra vida, pro colo e companheiro que te apoia. Um casamento de 13 anos [Milton é casado com o professor de Educação Física Eduardo Costa] é maravilhoso porque ele me atrai ao lar! Ele me puxa pra dentro de casa. Adoramos ver filmes juntos, comentar, falar sobre a luta diária contra o racismo, a homofobia. A luta dele é a negritude. A bandeira dele é tornar o mundo menos racista. Você imagina que eu, solidário, ao combate ao racismo, conheço o olhar desprezível que se dirige à negritude. Dividir a dor, a luta, a noção de que estamos construindo um caminho de liberdade e trilhar esse caminho, é a mão dada, né? O casamento me deu a mão dele e, assim, vamos! Temos histórias muito parecidas, porque éramos dois meninos pobres, sendo dois gays: um negro e o outro, branco. Nessa junção, o amor cresce tanto quanto a luta por valores bacanas, além da noção de família... Família é onde tem amor! Família é onde tem respeito! Família não tá no gênero, tá no amor e na construção cotidiana para um planeta melhor!

T+M: Quais são os teus planos para o futuro?
MC: Meu plano é ser muito, muito feliz! E ser um velhinho sassariqueiro! E ser uma luz de cabeça branca! Quero fazer meu segundo Pós-Doutorado na Escola de Belas Artes, sobre o Boi de Parintins e começo já agora, em março. Quero montar uma peça de teatro, chamada “O mordomo esquisitão de Madame Mocreia”. Tô procurando uma atriz bem louca e alucinada pra ser Madame Mocreia – eu serei o mordomo esquisitão! Continuo nos projetos internacionais de carnaval. Já assinei contrato com Boston, Londres, Lausanne, Toronto... farei todos eles! Estou escrevendo meu terceiro livro, que será sobre semiologia da escola de samba... é isso!

T+M: Por fim, o que está em alta e o que é over no Carnaval?
MC: Em alta, no Carnaval, a liberdade. Usar o carnaval como vitrine e janela pra dizer “não! Não à discriminação!”. Em baixa, as fantasias que reforçam preconceito e horror, né? Então, tem que ter cuidado com os discursos de Carnaval, valorizar todos os segmentos e de todas as etnias. O Carnaval deve ser um tambor de ressonância para dizer: “Sejam livres! Sejam vocês fabulosas pessoas! Vivam e deixem viver! Para de ficar vigiando o espírito do outro e vigia o teu espírito! Viva o Carnaval e viva a liberdade!”.

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