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Aíla: Luta, arte e música presentes no bairro da Terra Firme

Lorena Filgueiras
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Ela nasceu na periferia de Belém, em um bairro marcado por desigualdades, mas igualmente "reconhecido por ser um bairro artístico", ela ressalta. Criada e educada numa família só de mulheres, formou seu caráter e valores. Apaixonada pela mãe, a quem se refere inúmeras vezes ao longo da entrevista, foi por ela que a jovem também começou a cantar na noite: para extravasar o talento e garantir mais recursos. E foi assim que Aíla adentrava ao universo artístico, onde se encontrou e fez sua morada. O enredo da vida de nossa entrevistada poderia ser igual ao de tantos outros jovens que, tal como ela, nasceram em bairros muito estigmatizados e que decidiram reinventar-se. Aquela menina colorida e romântica, como ela mesma define, usou suas cores para ir à luta. Mais madura e segura, Aíla conversou conosco sobre a carreira, a memória afetiva de Belém, o amor à mãe e sobre preconceito - papo que vocês conferem a partir de agora.

Troppo + Mulher: Do Trelelê para cá, o que mudou na Aíla?
Aíla: Quando eu lancei o Trelelê, que foi o meu primeiro trabalho, a minha vontade era muito 
de misturar essas referências da música popular do Pará, lambada, carimbo, brega, guitarrada com a música pop. É um disco muito de intérprete. Naquela época, em 2012, quando lancei, eu ainda não tinha essa vontade, esse ímpeto de mostrar as minhas composições. Como eu te disse, é um disco de intérprete, que eu adoro, mas bem performática, teatral no palco e tenho muito orgulho de ter gravado compositores como a Dona Onete, além de outros compositores da Amazônia e Região Norte. É um disco que reflete muito esse meu encontro com o Pará e com a música da Região mesmo. Foi um trabalho que me abriu muitas portas. Em 2015, eu decidi mudar pra São Paulo, com o intuito de expandir a circulação do meu trabalho. Nesse mesmo ano, eu passei num outro edital, que seria para a produção do meu segundo disco e achei que era o momento de me conectar com o resto do Brasil. São Paulo é muito isso, né? Assim que você chega, você encontra pessoas de todos os cantos do país e as conexões são muito importantes para gerar novas composições, novos conceitos. Então, eu fui: com a cara e a coragem (risos), mas com muita esperança de que as coisas iriam se expandir e aí comecei a compor coisas para o segundo disco [Em cada verso, um contra-ataque] e a primeira música que surgiu, foi uma parceria com a Roberta Carvalho – que além de ser minha mulher, é artista visual e tinha escritos muito interessantes. A canção se chama “Rápido” e fala sobre a velocidade frenética da vida, em que tudo é demasiado, acelerado e a gente mal se fala direito. A partir dessa música, que entrou no meu disco, fui compondo outras músicas com outros parceiros, como Lesbigay, que escrevi com a Dona Onete e é uma lambada eletrônica, bem dançante e que traz essa mensagem sobre amor: onde amor é amor, seja do jeito que for. Compus também uma música sobre assédio sexual no metrô, que é um assunto muito latente, infelizmente, nas lotações. O disco traz ainda uma música inédita do Chico César, que escreveu pra mim e que gravei. Foi um disco em que eu tentei ser ainda mais pop, porque quis trazer temas contemporâneos, no entanto, a poesia mudou muito! Antes, era romântica, mais colorida e passou a ser mais artivista, que é uma onda de fazer o povo dançar e pensar ao mesmo tempo. 2016 tive uma mudança muito forte no conceito do meu trabalho e ali eu me encontrei como cantora, compositora, como artista que veio da periferia e que podia reverberar também assuntos importantes e fazer uma música pop. Agora, em 2019, eu lanço o primeiro single de uma série de singles que vou lançar até o fim do ano e que se chama ‘Treme Terra’, uma música minha, em parceria com dois nordestinos. Treme Terra é essa vontade, ainda muito vibrante em mim, de fazer uma música que seja radiofônica, pop e que traga uma certa ironia ali na letra. Enfim, de 2012, quando lancei meu primeiro disco, para cá, em 2019, muitas coisas mudaram e faz parte também esse processo de conhecer o país também, né? De se encontrar e conectar com outros artistas. Aquela artista, que fazia aquela música vibrante e colorida, ainda existe aqui, mas agora a intenção é fazer o povo refletir sobre questões importantes, do agora.    

T+M: Se pudermos voltar um pouco, gostaria de saber como foi esse teu começo na música?
Aíla: A música sempre fez muito parte da minha vida, mas eu nunca tinha enxergado como profissão, naquela época. Meu sonho era ser diplomada (nossa entrevistada ri timidamente) e o curso mais parecido que eu encontrei, na universidade pública, com Relações Internacionais, foi um curso que tinha acabado de surgir na Universidade do Estado do Pará era Secretariado Executivo Trilíngue, que fazia parte de Letras. Entrei no curso, na UEPA e me formei. No entanto, no meio do curso, para poder ajudar financeiramente a minha mãe, e para ter grana para fazer algumas coisas de maneira independente, comecei a estagiar... mas ainda não era suficiente e decidi cantar na noite, por uma questão de conseguir mesmo um extra. Comecei a cantar na Estação das Docas, naquele palco deslizante... que ninguém presta muita atenção na gente, mas foi um palco muito importante para que eu pudesse me entender como artista e me conectar ali com o público. Daí, vários outros espaços começaram a abrir oportunidades para a gente tocar e, neste começo de carreira, vários violonistas me acompanharam, dentre eles, o Renato Torres, o Felipe Cordeiro. Foi muito legal. Isso era 2008 ou 2009 e foi o que me possibilitou conhecer vários compositores, que me convidaram a participar de vários festivais, de mostras competitivas, que existiam na época. Ganhei várias premiações e me mantive conectada à música paraense. No meio disso, comecei a produzir o meu primeiro trabalho [o Trelelê]. A minha história é muito parecida com a de tantas outras pessoas que cantam na noite. A música sempre esteve muito presente na minha vida, de várias maneiras. Tinha músicos também na minha família, tanto pelo lado lírico, erudito, quanto para o lado popular... e isso influenciou minhas escolhas. No momento em que eu percebi que podia viver de arte e que aquilo trazia um significado, foi muito importante. Me formei, mas larguei a profissão porque entendi que podia ser uma artista a transformar o planeta de alguma maneira, através da minha música.

T+M: O teu trabalho é, sobretudo, ativista. Como enxergas esse momento atual para a cultura do país? Ao teu ver, por que foi (e é) tão imprescindível levantar bandeiras?
Aíla: Eu nasci numa periferia de Belém, que é a Terra Firme e sempre tive uma vida bem difícil, como a maioria das pessoas que nascem numa periferia do país. Fui criada só por mulheres: minha mãe, minhas duas tias-avós e minhas tias-avós partiram. Desde pequena fui criada só pela minha mãe, então ter vindo da Terra Firme tem todo um significado na minha obra também. Hoje eu percebo o quanto eu conseguir escapar dessas estatísticas negativas inspira outras pessoas. Não falo só da Terra Firme: há muitos outros bairros de periferia que têm a arte muito presente em projetos de Teatro, de Música, de Cultura popular... e a gente quase não vê essas notícias circulando. Quase sempre vemos as periferias marginalizadas, com altas estatísticas de crime e não entende, não percebe e não reverbera essas outras informações que existem e sempre existiram. A Terra Firme é associada à Arte, ao cinema, projetos como “Tela Firme”, educação... professoras como a Lilian Melo, que hoje modifica esse pensamento dos jovens da Terra Firme. A Lilian é uma professora muito revolucionária. Hoje, quando eu olho para trás, faz muito sentido; é muito real e verdadeiro ter saído da Terra Firme e entendido meu papel na música como uma cantora que pode transformar e influenciar pessoas que vieram do mesmo lugar que eu vim.

T+M: Nossa entrevista ocorre alguns dias depois de o prefeito Marcelo Crivella mandar recolher um livro de HQ com um beijo gay e teu clipe Lesbigay traz um beijo teu em tua esposa, a Roberta. Tens receio da repercussão? Tens receio de censura, Aíla?
Aíla: Então... É muito absurdo um político proibir, mandar recolher livros numa Bienal do Livro que tenham beijos entre pessoas! Enfim, é um retrocesso absurdo! Homofobia é crime no Brasil e foi determinado pelo STF recentemente! Depois de muitas décadas e anos de luta, a gente conquistou esse direito: homofobia é crime! Racismo é crime! LGBTfobia é crime no país. É muito absurdo, no meio de tudo isso, uma atitude dessa, criminosa e o político não ser preso, porque a gente lida muito com isso como se fosse permitido... e não é! Que bom que não é e que bom que essa repercussão toda, essas ações de artistas, influenciadores, como o Felipe Neto, que comprou todo o estoque e distribuiu gratuitamente foi sensacional! A gente precisa agir, agir nas redes sociais e no dia-a-dia. Não tenho medo de censura. Fui criada, boa parte da minha vida, enquanto os governos eram de esquerda – logo, nunca tinha passado por censura escancarada como essa. Acho que cada vez mais a censura tem um retorno, uma volta. Quanto mais o amor é censurado, que as liberdades são censuradas, mais isso volta, mais vai ter gente se mostrando, assumindo que é gay, lésbica. Que bom que a gente não se cala diante de ações como essa e acredito mesmo: essa repercussão foi muito positiva, no sentido de mostrar como a gente precisa se reagir em situações como essa.  

T+M: Enquanto o terceiro disco não chega, estás rodando o Brasil com um show que já apresenta esses novos singles e recentemente estiveste em Belém. Como foi essa acolhida? Nessa troca de energia, o que ouviste dos teus fãs e admiradores?
Aíla: Ah, foi muito especial fazer esse show em Belém, na Feira do Livro, essencialmente. Eu decidi estrear essa turnê porque o singles novos já ia começar a ser lançados e eu queria experimentar essa sonoridade no palco, então essa turnê nova tem músicas do meu primeiro disco, do segundo; músicas novas, que acabei de lançar, inéditas, releituras e a gente acabou de fazer esse show no Rio de Janeiro, no Festival Levada, e, em seguida, em Belém. A acolhida foi muito especial porque a gente tinha acabado de lançar o primeiro single, o Treme Terra, que dá nome à turnê e as pessoas já sabiam cantar a música no show! Foi uma troca de energia muito arrebatadora pra mim, fiquei bem impressionada! Enfim, eu acho que tocar em casa é muito especial e tocar nesse evento [Feira do Livro], nessa nova fase do movimento cultural da cidade, foi muito legal. Tive um retorno positivo e fiquei bem feliz!

image A cantora Aíla (Estúdio Tereza & Aryanne)

 

T+M: Como foi teu processo criativo nestes singles? De onde buscaste inspiração?
Aíla: Sinto sempre essa necessidade de me mover, de sair do lugar e a ideia de fazer esse novo single ‘Treme Terra’ era experimentar: dos novos formatos de produção musical, novos sons, novos cruzamentos de referências e influências... e eu queria mergulhar nos ritmos periféricos do Brasil, não só do Pará. Quis experimentar Brega, Arrocha, Modão, Tecnobrega e o primeiro single é resultado disso! Até o fim do ano, a ideia é lançar uma série de singles que apontam nessa direção mais pop do meu trabalho. A nova turnê é também um espaço de experimentação no palco. Tirei a bateria e a guitarra do show, que eram duas coisas muito importantes e bem roqueiras e substituí por beats eletrônicos, sintetizadores, percussão eletrônica. Enfim, tudo bem sintetizado e este é o momento de arriscar novos resultados. Acho que o processo de construção do novo disco já se iniciou e todos os singles fazem parte do que virá ano que vem, o terceiro álbum. A inspiração para os próximos singles é esse diálogo com os ritmos pop que surgem na periferia, que são a cara dessa música pop brasileira. Além do som, penso que a ideia seja também ter feats [participações especiais, colaboração] e quero também ter participações com cantores que dialoguem comigo, seja na origem ou nas causas. Questões de gênero, feminista e sobre amor... esse amor que liberta. Já tô na fase de pré-produção desses singles e, em breve, virá muita coisa boa!

T+M: Nestes reencontros com Belém, quais são tuas prioridades quando aqui chegas?
Aíla: Então... quando chego em Belém, tenho, de fato, algumas prioridades: ver minha mãe, família. A segunda, ver o sol e senti-lo! Gosto de ver o pôr do sol. A terceira, é tomar o tacacá do Nilson, ali em Canudos/Terra Firme.... e na minha opinião, é o melhor de Belém! Ah, também comer todas comidas que só Belém possibilita! Muito peixe, açaí. Quando a gente mora fora, em outro estado, a gente sente muita saudade da culinária, do calor, da música da periferia... ouvi muito carro som, lambada, tecnobrega. Minhas necessidades são nesse nível do afeto, da saudade. Em primeiro lugar, vem tudo isso na minha cabeça e no meu coração.

T+M: Por fim, quero falar daquele VHS incrível que recebi de presente. Aliás, muito obrigada! É incrível!
Aíla: Ah, então, é o VHS é um pendrive audiovisual, que tem sido super comentado porque traz meus últimos 5 clipes e traz também todos os making of inéditos, que nunca lancei nem online, à exceção de Lesbigay. Fiz a primeira prensagem, de 150 unidades, que esgotou muito rápido. Estamos na segunda prensagem e também já está se esgotando. Adorei conectar o passado ao futuro, em um projeto gráfico todo pensado pela Roberta Carvalho, artista visual do Pará. Temos esse encontro sempre de imagem com sons no meu trabalho. 

Para saber mais:
@ailamusic

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